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A relevância do relato da vítima com a Lei Maria da Penha

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Agenda 09/05/2019 às 16:38

4 A CARGA PROBATÓRIA DO RELATO DA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

O depoimento da ofendida consiste no seu relato dos fatos que deram origem à denúncia oferecida pelo Ministério Público. Via de regra, entende-se que a sua palavra – de forma isolada – não pode ser utilizada como única prova para embasar um juízo condenatório. Em suma, o objetivo deste capítulo será explorar a importância dada ao depoimento da vítima nas infrações regidas pelas disposições da Lei Maria da Penha, averiguando os efeitos processuais da insuficiência probatória, de eventual conciliação entre as partes e da vítima que, quando ouvida em Juízo, inocenta o réu.

4.1 Valoração da palavra isolada da vítima no processo penal brasileiro

O processo penal está intimamente ligado à atividade probatória, com vistas a alcançar a efetiva prestação jurisdicional. Para Magno (2012, p. 421), “a atividade probatória assume relevantíssima importância no processo, pois é a partir dela que o juiz poderá aplicar a lei ao caso concreto”. Dessa forma, dispõe o art. 155 do Código de Processo Penal que:

O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. 

Pode-se dizer, portanto, que a finalidade das provas produzidas no decorrer da instrução probatória é, basicamente, buscar a verdade processual, a que o magistrado deverá ser ater na hora de proferir uma sentença. De acordo com Nucci (2016, p. 309), “a verdade processual emerge durante a lide, podendo corresponder à realidade ou não, embora seja com base nela que o magistrado deve proferir sua decisão”. Outrossim, ainda consoante Magno (2012, p. 436), “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação [...]”. Assim, não estando o juiz vinculado a qualquer prova produzir, deverá ele “[...] formar sua convicção livremente, após a análise percuciente dos elementos coligidos aos autos”.

A vítima não pode ser considerada testemunha (uma vez que seu relato seja colhido sem o dever de “dizer a verdade”), embora suas alegações constituam meio de prova. Demercian e Maluly (2011) referem que a ofendida não presta o compromisso de dizer a verdade e, por isso, não pratica o crime de falso testemunho, razão pela qual suas declarações devem ser apreciadas com reserva, uma vez que sua narrativa tende a carregar tendenciosidade. Além disso, conforme ensina Nucci (2012, p. 396):

Por certo que a vítima não pode ser considerada testemunha. As razões são várias: a) a vítima está situada, propositadamente, em capítulo destacado daquele que é destinado às testemunhas; b) ela não presta compromisso de dizer a verdade, como se nota pela simples leitura do caput do art. 201; c) o texto legal menciona que a vítima é ouvida  em  “declarações”,  não  prestando,  pois, depoimento (testemunho); d) o ofendido é perguntado sobre quem seja o autor do crime ou quem “presuma ser”(uma suposição e não uma certeza), o que é incompatível com um relato objetivo de pessoa que, efetivamente, sabe dos fatos e de sua autoria, como ocorre com a testemunha (art. 203, CPP); e) deve-se destacar que a vítima é perguntada sobre as provas que possa indicar, isto é, toma a postura de autêntica parte no processo, auxiliando o juiz e a acusação a conseguir mais dados contra o acusado; f) a vítima tem interesse na condenação do réu, na medida em que pode, com isso, obter mais facilmente a reparação civil do dano (art. 63, CPP).

No que diz respeito à valoração das provas produzidas nos autos, Alferes et al. (2016, p. 51) salienta que “deve-se ter sempre em mente não só a proteção da vítima, que muitas vezes sofre a violência isolada, sem qualquer testemunha, mas os princípios constitucionais, ou constitucionais processuais penais”. Da mesma forma é o posicionamento de Lopes Jr. (2016, p. 377), ao tecer considerações acerca do valor probatório da palavra da ofendida:

Deve-se considerar, inicialmente, que a vítima está contaminada pelo “caso penal”, pois dele fez parte. Isso acarreta interesses (diretos) nos mais diversos sentidos, tanto para beneficiar o acusado (por medo, por exemplo) como também para prejudicar um inocente (vingança, pelos mais diferentes motivos). Para além desse comprometimento material, em termos processuais, a vítima não presta compromisso de dizer a verdade (abrindo-se a porta para que minta impunemente).

Os dois autores supracitados concordam tão somente no que diz respeito ao fato de que a vítima possua fundo comprometimento com os fatos, e que sua fala deva ser analisada com cautela. Nucci (2012) conclui que a palavra da ofendida pode sim escorar um decreto condenatório, ainda que isolada, desde que resistente e harmônica com as demais circunstâncias angariadas no decorrer da instrução processual. Lopes Jr. (2016), por sua vez, argumenta que a ausência de motivos que indiquem a existência de falsa imputação por parte da ofendida, bem como o cotejo com o restante do conjunto probatório, ainda que frágil, têm sido aceitos pelos Tribunais para embasar uma sentença de condenação.

Alferes et al. (2016) pontua que as regras de processo, via de regra, não podem ser subvertidas, ou seja, não se pode inverter a premissa de presunção de inocência e atribuir especial valor à versão da vítima. Entretanto, em âmbito de violência doméstica, quando a sua palavra se mostrar firme, coerente e harmônica com o contexto probatório, assume importância apta a comprovar a materialidade e autoria delitiva. Lopes Jr., por sua vez, assevera que, embora a vítima faça parte do caso penal e por ele esteja “contaminada”, devem ser feitas duas ressalvas no que diz respeito aos crimes contra o patrimônio – cometidos com violência ou grave ameaça – e crimes sexuais:

Nesses casos, considerando que tais crimes são praticados – majoritariamente – às escondidas, na mais absoluta clandestinidade, pouco resta em termos de prova do que a palavra da vítima e, eventualmente, a apreensão dos objetos com o réu (no caso dos crimes patrimoniais), ou a identificação do material genético (nos crimes sexuais) (LOPES JR., 2016, p. 377).

Ao seu turno, o entendimento majoritário da jurisprudência atual (citando-se, como exemplo, o julgamento da Apelação Crime nº 70075976134, na Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do RS) é no sentido de que, em crimes envolvendo violência doméstica e familiar, devido à natureza da infração, a narrativa da vítima possui valor especial, pois tais delitos são geralmente praticados no recinto privado e sem a presença de quaisquer outras testemunhas. Conforme salientado pelo relator Desembargador Rinez da Trindade, no julgamento da Apelação Crime n.º 70075350934, ocorrido em 13 de dezembro de 2017, “sabe-se que, em situações de violência doméstica, à palavra da vítima é atribuído especial valor, sobretudo quando aliado aos demais elementos de prova colhidos nos autos, sendo suficiente para ensejar um juízo condenatório”.

APELAÇÃO CRIME. VIAS DE FATO. ART. 21, DO DECRETO-LEI Nº 3.688/1941. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. SUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. CONDENAÇÃO MANTIDA. I - Na esteira do entendimento desta Corte, não há que se falar em aplicação do princípio da insignificância em infrações penais praticadas com violência ou grave ameaça à pessoa. II - Materialidade e autoria delitiva consubstanciada no registro de ocorrência, bem como na prova oral. A prova da autoria, embora sucinta, não comporta dúvida. III - Nos delitos de violência doméstica e familiar, alcança relevo a palavra da vítima, que deve ser considerada e constitui elemento suficiente de prova quando verossímil, coerente e razoável no contexto, especialmente se amparada em outros elementos probatórios. PRELIMINAR AFASTADA. RECURSO DEFENSIVO DESPROVIDO. (Apelação Crime Nº 70073620502, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rogerio Gesta Leal, Julgado em 19/10/2017)

Ainda no mesmo sentido, veja-se:

APELAÇÃO CRIME. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LESÃO CORPORAL. AMEAÇA. PROVA ROBUSTA. PALAVRA DA VÍTIMA. DESCLASSIFICAÇÃO PARA A CONTRAVENÇÃO DE VIAS DE FATO. IMPOSSIBILIDADE. ATIPICIDADE DA CONDUTA. INOCORRÊNCIA. 1. Consabido que a palavra da vítima assume especial relevância no contexto de violência doméstica, ainda mais quando amparada por outros elementos, no caso, a prova testemunhal, o auto de exame de corpo de delito, bem como a confissão parcial do réu, no tocante à lesão corporal, admitindo ter desferido três "coices" nas pernas da vítima. Assim, não há falar em escassez probatória para ensejar a condenação do acusado. 2. A pretensão defensiva subsidiária, de desclassificação para a contravenção penal de vias de fato, não merece acolhimento. In casu, a agressão praticada pelo acusado gerou lesão na vítima, conforme se depreende do auto de exame de corpo de delito. Demonstrada, portanto, a existência da lesão sofrida, deve ser mantida a condenação, nos termos da sentença. 3. Quanto ao pedido de atipicidade do delito de ameaça, a alegação de que a ameaça não intimidou a vítima não merece prosperar. O delito restou consubstanciado, pois demonstrado o temor da ofendida, uma vez que representou contra o acusado. Ainda, o fato de Rosangela não recordar os exatos termos empregados na ameaça não se presta a esmaecer seu relato, tampouco o temor sentido. RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Crime Nº 70074245838, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jayme Weingartner Neto, Julgado em 18/10/2017)

Dentre os doutrinadores que também seguem essa corrente, destaca-se Nucci (2012), que sustenta que a palavra da vítima, mesmo que isolada e sem demais testemunhas para confirmá-la, pode embasar uma condenação criminal, desde que esteja em sintonia com as demais circunstâncias colhidas no decorrer da instrução probatória.

APELAÇÃO CRIME. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. AMEAÇA. SUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. ATIPICIDADE DO DELITO. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS. PREQUESTIONAMENTO. Não há que se falar em insuficiência probatória a ensejar absolvição, pois, estando demonstradas a materialidade e a autoria do delito pelos coerentes relatos da vítima, corroborados pela prova testemunhal, imperativo o juízo condenatório. Em se tratando de fatos relativos à Lei Maria da Penha, a palavra da ofendida assume especial relevância probatória, sendo suficiente, se coerente, para ensejar a condenação. O delito de ameaça, por se tratar de crime formal, consuma-se independente do resultado, devendo, todavia, ser comprovado o temor da vítima, o que, in casu, vem demonstrado. Conforme termos do art. 44, inciso I, do CP, a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos não se afigura possível, haja vista ter sido o delito cometido com grave ameaça. Prequestionados os arts. 44, inciso I e 147, caput, ambos do Código Penal e o art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal RECURSO DEFENSIVO IMPROVIDO. (Apelação Crime Nº 70071684484, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rosaura Marques Borba, Julgado em 11/04/2017)

Em outras palavras, desde que o relato da ofendida se mantenha firme e coerente, indo ao encontro daquilo que foi informado perante a autoridade policial anteriormente, pode a sua palavra isolada ser considerada suficiente para embasar uma condenação criminal, corroborando a autoria e materialidade delitiva. A Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Kenarik Boujikian, em artigo escrito em 27/11/2013 acerca da credibilidade da palavra da vítima como prova de violência sexual, manifestou-se no sentido de que, desde que não possua qualquer vício que possa maculá-la, a palavra da ofendida possui valor exponencial:

Os processos de crimes sexuais, sabidamente praticados de forma clandestina – pois a violação da dignidade da mulher geralmente ocorre em locais fechados, sem possibilidade de presença de testemunhas -, têm na palavra da vítima a viga mestra. Por certo ela não está isenta dos requisitos de verossimilidade, coerência e plausibilidade. Mas, nestes delitos, a declaração coerente da vítima deve ter valor decisivo.

Por certo que a prova pericial tem grande relevo, mas nem todos os crimes sexuais deixam vestígio. Nestas situações, a maior atenção deve ser voltada para as declarações da vítima e, caso ela tenha fornecido dados coesos e harmônicos, não há razão alguma para afastar de credibilidade referida prova (BOUJIKIAN, 2013, texto digital).

Segundo Ishida (2010), na hipótese de um crime de estupro (art. 213, caput, do Código Penal), por exemplo, a materialidade do tipo penal poderá ser comprovada por exame de corpo de delito; no entanto, caso não realizado ou não constatado, admite-se a palavra da vítima como meio de prova, sendo que no caso específico, caberá ao juiz sopesar a credibilidade do relato da ofendida molestada. Neste mesmo sentido é o posicionamento de Delmanto (2010), que sustenta que o relato da vítima é a viga mestra das provas, de modo que suas imputações, desde que firmes e seguras, podem dar sustento à condenação do agressor.

Sabe-se que, contudo, é “muito comum que o acusado, para demonstrar sua inocência, torne a vítima alvo de sua defesa, tentando desmerecê-la. Aliás, [...] o ofendido é quase sempre objeto de avaliação no processo criminal, pois o seu comportamento influi na análise de responsabilidade do réu” (FERNANDES, 1995, p. 215). Em outras palavras, conforme ponderado por Fernandes (2015), a vítima se torna objeto de prova em muitos processos, de modo que é apontada pela defesa como alguém descontrolada, ciumenta e desestruturada, sendo a conduta do agressor justificada e atribuída à responsabilidade da vítima.

4.2 Insuficiência probatória e o princípio do in dubio pro reo

A insuficiência probatória representa um dos principais motivos que conduzem à absolvição do réu. A título exemplificativo, uma das hipóteses que podem fundamentar a decisão absolutória é a inexistência de outras provas que deem credibilidade ao relato da vítima, de modo que finda a instrução processual, este acaba por restar este isolado nos autos (e muitas vezes de forma conflitante com a negativa do acusado).

No caso do estudo realizado na presente monografia, a absolvição do réu foi pautada especificamente na inexistência de prova da autoria delitiva, justamente devido às incongruências entre os depoimentos ouvidos em juízo. Alferes et al. (2016, p. 51) explica que, quando “a palavra da ofendida mostrar-se isolada, não encontrando respaldo nos demais elementos probatórios existentes nos autos, ou com relevantes divergências”. Neste sentido, para Gomes et al. (2016, p. 159), “a ausência ou insuficiência de prova constituem os fatores mais recorrentes na justificação do arquivamento dos processos por violência doméstica. Sobressaem, neste domínio, a prova testemunhal e a prova pericial”.

Gravíssimo erro é cometido por numerosa doutrina (e rançosa jurisprudência), ao afirmar que à defesa incumbe a prova de uma alegada excludente. Nada mais equivocado. A carga do acusador é de provar o alegado; logo, demonstrar que alguém (autoria) praticou um crime (fato típico, ilícito e culpável). Isso significa que incumbe ao acusador provar a presença de todos os elementos que integram a tipicidade, a ilicitude e culpabilidade e, logicamente, a inexistência das causas da jurisdição (LOPES JR., 2016, p. 190).

De outra banda, existem correntes que discordam da especial relevância dada à palavra da ofendida como fundamento para a condenação, defendendo a ideia de que a condenação baseada na simples palavra da vítima seria uma inversão do ônus da prova em favor da defesa e, consequentemente, uma contradição à garantia constitucional prevista no inc. LVII do art. 5º da Constituição Federal de 1988. Para Cavalcanti (2014, texto digital), “sustentar uma condenação tão somente com a palavra da vítima é algo idêntico a tratar o acusado como culpado pelo crime, pois o ônus de provar por parte da acusação torna-se algo absolutamente descartável”.

Além disso, de acordo com o entendimento do autor no que se refere à aparente pulverização do princípio do in dubio pro reo, “a Lei Maria da Penha é uma norma processual penal infraconstitucional, não sendo nenhuma exceção à regra no que toca à observância dos princípios constitucionais, devendo, do mesmo modo que outras normas da mesma estatura, respeitar a mesma sistemática acusatória delineada mais acima”. Esta posição sustenta que a palavra da ofendida sempre conterá uma carga emocional, de modo que sua “a falta de credibilidade poderá, portanto, conduzir absolvição do acusado, ao passo que a verossimilhança de suas palavras será decisiva para um decreto condenatório” (GRECO, 2010, p. 473). Nesse mesmo sentido, Manzano (2012) alega que, embora mereça maior credibilidade, a palavra da vítima, isolada, não pode servir para alicerçar uma sentença condenatória.

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No que diz respeito à possibilidade de eventual insuficiência probatória conduzir à absolvição do acusado, o voto da Desembargadora Nilsoni de Freitas na Apelação Crime n.º 20140310250943, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, julgada em 18 de fevereiro de 2016, se posicionou afirmando que “no sistema processual penal brasileiro, vige o princípio do in dúbio pro reo, segundo o qual a dúvida sempre deve ser empregada em favor do denunciado”. Outrossim, sustentou que se as provas coligidas aos autos se mostrarem duvidosas e insuficientes, o direito de liberdade do indivíduo deve prevalecer em detrimento ao direito de punir do Estado. Por fim, conclui referindo que “ainda que a palavra da vítima tenha especial relevo, mormente em casos de agressões ocorridas no ambiente familiar, é necessário que seja corroborada na fase judicial por outros elementos de prova”.

Neste sentido, transcrevem-se abaixo ementas de decisões recentes do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul no tocante à insuficiência probatória, as quais reformaram condenações proferidas em 1º grau de jurisdição, absolvendo o réu:

APELAÇÃO CRIME. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LEI MARIA DA PENHA. VIAS DE FATO. ART. 21 DA LCP. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. SENTENÇA CONDENATÓRIA REFORMADA. Falecendo os autos de prova segura e conclusiva acerca da materialidade e autoria delitivas, impositiva a absolvição do réu, na esteira do princípio do in dúbio pro reo. Hipótese em que a vítima não confirmou as agressões relatadas na polícia, limitando-se a referir que o acusado jogou uma mochila em sua direção, mas sem esclarecer se foi atingida ou não, conduta que não basta para caracterizar a contravenção em comento. RECURSO PROVIDO PARA ABSOLVER O RÉU. (Apelação Crime Nº 70072644255, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Cristina Pereira Gonzales, Julgado em 18/12/2017)

RECURSO DE APELAÇÃO. CONTRAVENÇÃO PENAL. VIAS DE FATO. INCIDÊNCIA DA LEI MARIA DA PENHA. SENTENÇA CONDENATÓRIA REFORMADA. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. Remanesce dúvida quanto ao dolo do acusado, na medida em que a própria vítima afirma que foi atingida "sem querer". Assim, imperiosa a absolvição do acusado, com base no princípio do in dubio pro reo. APELO PROVIDO. UNÂNIME. (Apelação Crime Nº 70071425797, Sexta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Bernadete Coutinho Friedrich, Julgado em 27/09/2017)

Outra hipótese que pode vir a conduzir a não condenação do suposto agressor são as versões divergentes apresentadas pela vítima na fase inquisitorial e judicial, bem como diferenças entre os depoimentos prestados pela ofendida e acusado, quando ouvidos e inquiridos acerca dos fatos alegadamente ocorridos. Citando-se como exemplo o julgamento da Apelação Crime n.

º 70073758021, julgada pela Oitava Câmara Criminal em 31/01/2018, verifica-se que a absolvição do réu em 1º grau foi mantida, sendo negado o seguimento ao apelo ministerial sob o argumento de que ambos (réu e vítima) teriam confirmado que as supostas agressões se desencadearam “no calor de um desentendimento”.

A controvérsia no expediente in casu cingia-se a quem teria dato início às agressões, uma vez que o réu alegava ter empurrado a ofendida para se defender de um ataque, ao passo que esta referiu ter sido empurrada sem que tivesse investido qualquer ataque contra o acusado. No entanto, em que pese tenha sido frisado pelo ministro relator Desembargador Dálvio Leite Dias Teixeira que a palavra da vítima possui especial valor probante em delitos de violência doméstica, “no caso concreto, as versões discordantes apresentadas pela lesada nas fases inquisitorial e judicial dão lugar a severa dúvida acerca das circunstâncias em que se desenrolaram os fatos”.

Em suma, assim fundamentou o seu voto, mantendo a absolvição do acusado com fulcro no art. 386, inciso VI, do Código de Processo Penal[16]:

Assim, tenho que a vacilante narrativa vitimária, in casu, não se reveste da necessária força probante para afastar a plausível tese defensiva de que o apelante teria agido em legítima defesa, sobretudo porque a análise global da prova permite depreender que o contexto em que praticada a conduta era belicoso, inflamado, ainda, pela alteração dos ânimos em razão da alegada ingestão de bebida alcoólica por ambos. E como bem referido pelo Juízo a quo, embora a defesa também não tenha logrado comprovar plenamente a presença da excludente de ilicitude, a dúvida, em razão dos contornos particulares do caso, deve favorecer o réu.

Sendo assim, a prova carreada deixa dúvidas a respeito de quem, de fato, teria iniciado ou perpetrado as agressões, informação essencial à elucidação do feito, não se podendo afirmar, com a indispensável certeza, se o réu empurrou a companheira no sofá com vistas a agredi-la ou se, visando rechaçar uma investida da ofendida, terminou por afastá-la com um empurrão.

Diante do exposto, portanto, a dúvida quanto à presença da excludente de ilicitude pela legítima defesa mostra-se efetivamente insuperável, o que revela a insuficiência de elementos a amparar o decreto de condenação pretendida pelo órgão ministerial.

Incidentes, no caso, portanto, os postulados constitucionais da presunção de inocência e da reserva legal em sua maior expressão, ao fundarem a absolvição do acusado, pela aplicação da máxima in dubio pro reo, em razão da fundada dúvida acerca da existência da excludente de ilicitude de legítima defesa.

Com essas considerações, deve ser mantida a absolvição do réu, mas por fundamento diverso, com base no artigo 386, inciso VI, do Código de Processo Penal.  

No processo penal, não há distribuição da carga probatória, estando ela nas mãos do acusador. Em outras palavras, conforme explicado por Lopes Jr. (2016, p. 298), “a partir do momento em que o imputado é presumidamente inocente, não lhe incumbe provar absolutamente nada. Existe uma presunção que deve ser destruída pelo acusador, sem que o réu [...] tenha qualquer dever de contribuir nessa desconstrução”. A garantia da presunção de inocência está prevista no inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, além de também estar estampado no art. XI da Declaração Universal dos Direitos Humanos[17], promulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU) no ano de 1948.

Assim ensina Lopes Jr. (2016, p. 299):

Ao lado da presunção de inocência, como critério pragmático de solução da incerteza (dúvida) judicial, o princípio do in dubio pro reo corrobora a atribuição da carga probatória ao acusador e reforça a regra de julgamento (não condenar o réu sem que sua culpabilidade tenha sido suficientemente demonstrada). A única certeza exigida pelo processo penal refere-se à prova da autoria e da materialidade, necessárias para que se prolate uma sentença condenatória. Do contrário, em não sendo alcançado esse grau de convencimento (e liberação de cargas), a absolvição é imperativa. Isso porque, ao estar a inocência assistida pelo postulado de sua presunção, até prova em contrário, essa prova contrária deve aportá-la quem nega sua existência, ao formular a acusação. Trata-se de estrita observância ao nulla accusatio sine probatione.

Havendo dúvida acerca da materialidade ou autoria do fato delituoso descrito na denúncia imputada ao réu, deve prevalecer a presunção de inocência, haja vista que “não se pode admitir que diante de um juízo de incerteza e fundada dúvida, alguém possa ser condenado e submetido   às agruras do cárcere” (Apelação Criminal n.º 0033935-38.2010.8.19.0014, da 1º Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, julgada em 17 de dezembro de 2013). Dessa forma, consoante a fundamentação do relator Desembargador Marcus Basílio, “faltando às provas a imprescindível certeza quanto à prática do fato descrito na denúncia e a culpabilidade do agente [...], a solução legal leva à absolvição”.  

4.3 Efeitos da posterior reconciliação entre as partes

Não é incomum que o casal, durante a fase de investigação ou ao longo do processo criminal, reconcilie-se ou resolva a desavença existente. Neste sentido, Amico (2007) entende que, na hipótese de haver uma reconciliação no curso da ação penal, o registro de ocorrência e ação penal anteriormente instaurados virá a ser mais um problema que irá provocar uma nova ruptura na vida conjugal. Além disso, o entendimento da Cartilha Da Lei Maria Da Penha (2013, p. 20) é de que a reconciliação do casal não impede o prosseguimento da ação penal anteriormente instaurada:

Com a Lei Maria da Penha ficou mais difícil a mulher perdoar seu agressor. Antes da lei entrar em vigor, era muito comum a mulher agredida perdoar seu agressor, bem como este voltar a agredir a vítima, quando esta retirava a “queixa” das agressões sofridas. Assim, se formava um círculo vicioso, com o homem agredindo a mulher, a mulher perdoando o agressor, que voltava a agredir a mulher, que muitas vezes o perdoava de novo. Hoje, a reconciliação da vítima com seu agressor não resulta na extinção das ações penais decorrentes de violência doméstica e familiar. O agressor poderá ser condenado pela agressão à mulher com quem se reconciliou e voltou a se relacionar e a conviver.

Trata-se, em suma, de alegação que vai ao encontro do posicionamento firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4.424, na qual a Corte decidiu que a ação penal relativa à lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é incondicionada à representação, ou seja, independe de qualquer manifestação por parte da vítima. No mesmo viés se manifesta o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), em recente julgamento da Terceira Câmara Criminal acerca do juízo de procedência da ação na hipótese de as partes se reconciliarem:

APELAÇÃO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LESÕES CORPORAIS. RECONCILIAÇÃO DAS PARTES QUE NÃO IMPEDE O JUÍZO DE PROCEDÊNCIA DA ACUSAÇÃO. PENA. 1. Está pacificado no âmbito dos Tribunais Superiores que a ação penal nos casos de lesões corporais praticadas no âmbito das relações domésticas, ainda que leves ou culposas, é pública incondicionada. Destarte, a reconciliação do casal não impede o juízo de procedência da pretensão acusatória deduzida pelo Ministério Público. Questão penal que transpassa o interesse privado dos envolvidos, nos casos de violência de gênero perpetrada no âmbito das relações domésticas. Precedentes. 2. No caso concreto, o conjunto probatório é convergente a demonstrar a existência do fato, sua materialidade e sua autoria. Confissão do acusado corroborada pela narrativa da ofendida e pela prova pericial. Condenação confirmada. 3. Adequada a fixação da pena em patamar pouco acima do mínimo legal, em razão da reprovabilidade da conduta, demonstrada essa pela desproporcionalidade entre o motivo da agressão e a conduta do acusado. RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Crime Nº 70075027862, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Miguel Achutti Blattes, Julgado em 18/10/2017).           

Também merece destaque o voto do Desembargador Rinez da Trindade, na Apelação Criminal n.º 70074351164, julgada pela 3º Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS) em 18 de outubro de 2017, no qual argumentou-se que “extinguir a punibilidade do acusado diante da reconciliação do casal seria desvirtuar e afrontar por via transversa decisão proferida pelo Supremo em controle concentrado de constitucionalidade, que ostenta eficácia vinculante erga omnes, devendo ser respeitada”. Resumidamente, a ementa do referido julgamento deixa claro que, dada à natureza incondicionada da ação, torna-se irrelevante a conciliação do casal no curso da ação, o que também é reafirmado por Fernandes (2015, p. 134), ao enfatizar que “ante a gravidade e cronicidade dessa violência, não se pode afirmar que a conciliação do casal resolve a questão, sob pena de se perpetuar a violação de direitos da mulher”.

O posicionamento de Silveira (2011, texto digital), promotora de justiça da Promotoria de Justiça Especializada no Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Belo Horizonte, é contrário ao arquivamento do processo em caso de conciliação das partes. Segundo ela expõe, embora a conciliação tenha aspecto positivo, no caso de lesões corporais ou ameaça, o trâmite processual deve chegar até o final mesmo quando a vítima comparecer dando notícias de sua reconciliação com o agressor, a fim de evitar que ele seja tão somente mais um expediente arquivado à espera da próxima agressão:

Vale ressaltar sempre o aspecto positivo da reconciliação. A justiça pode ter um papel de grande importância neste processo de libertação da mulher e fortalecimento da família. Entendemos que, no caso de lesão corporal ou ameaça, deve o processo criminal chegar ao seu final, mesmo que a vítima compareça para dar a notícia da reconciliação com o agressor. Não quer o Ministério Público que o agressor seja apenas condenado e cumpra pena de prisão, mas com a continuidade do processo, até seu final, há a possibilidade de absolvição pela fragilidade das provas, ou mesmo a condenação do acusado. Nestes casos, por hipótese, em que as lesões são leves ou se trata de ameaça, pode haver a condenação, com a consequente substituição condicional da pena corporal, inclusive podendo uma das condições a serem impostas implicarem na frequência do agressor a grupos de apoio e de fortalecimento e valorização da mulher e da família. Há exemplos vários de grupos que atuam neste sentido, que já deram um resultado bastante satisfatório atuando frente aos casos de violência doméstica, ainda sob a competência dos Juizados Especiais. 

Fernandes (2015, p. 136) pontua que “não processar o agressor em prol de uma transação penal é ignorar os danos da conduta do agente, não só para a mulher, como também para os filhos, em razão da repetição do padrão apreendido, e para a sociedade”. De acordo com a autora, a violência é sempre violência e desta forma deve ser tratada, uma vez que há muito a violência doméstica e familiar deixou de ser um problema de âmbito privado, passando a ser uma questão de ordem pública, de modo que rotular esta violência como “infração de menor potencial ofensivo” seria apoiar a conduta do agressor.

Em suma, no que diz respeito às razões pelas quais a ofendida viria a desistir da persecução criminal contra o réu, Fernandes (2014, texto digital) defende que são vários os fatos que conduzem ao silêncio da vítima, dentre eles a exposição de sua vida privada, a crença de que o parceiro irá mudar (fase conhecida como “lua de mel”), o medo de reviver o trauma, a revitimização, enfim:

É certo que a vítima retoma o relacionamento com o parceiro em razão do sentimento dúbio de amor e ódio, mas também pela falta de compreensão ou fragilidade. Contudo, essa reconciliação não significa em absoluta ausência de risco de morte. À pergunta “por que a vítima retoma o relacionamento com o parceiro” podemos responder: porque desconhece o risco de morte e não consegue reagir. Por isso, deve ser ouvida, acolhida e encaminhada. Ainda que esteja presa às amarras da violência, a informação pode surgir para a vítima como um sonho de liberdade.

Há, por outro lado, pensadores que defendem a conciliação entre o casal, como Saliba (2006, texto digital), segundo o qual “a conversa entre as partes é sem dúvida alguma o único e eficaz caminho para se combater a violência, não se apresentando a punição mais severa como forma de resolução dos conflitos”. Conforme ensina Karam (2006), ao acusar da prática de um crime e ameaçar o parceiro da mulher com uma pena privativa de liberdade, mesmo contra a sua vontade, estar-se-ia subtraindo da ofendida o direito de se relacionar livremente com a pessoa por ela escolhida. Em outras palavras, significa que lhe está sendo negado o direito à liberdade que é titular, tratando-lhe como se fosse uma “coisa” submetida à vontade do Estado, que pretende saber o que é melhor à vítima. Ademais, mister salientar o ponto de vista de Celmer e Azevedo (2007, p. 15):

Não há como pretender que prossiga a ação penal mesmo que tenha o juiz ou obtido a reconciliação do casal ou homologado a separação, com definição de alimentos, partilha de   bens, guarda de filhos e visitas. Às claras que a possibilidade de trancamento do inquérito policial em muito facilitará a composição dos conflitos envolvendo as questões de Direito de Família, que são bem mais relevantes do que a imposição de pena criminal ao agressor. A possibilidade de dispor da representação revela formas através das quais as mulheres podem exercer poder na relação com os companheiros.   

Dias (2012) explica que ao realizar a denúncia juntamente à delegacia de polícia, a vítima busca o apoio do Poder Judiciário com o fim de fazer cessar a agressão contínua, embora não seja a sua intenção, na maioria dos casos, fazer com que o agressor seja condenado criminalmente. Assim, conforme pontuado por Cunha e Pinto (2008, p. 130), “legislações muito rígidas desestimulam as mulheres agredidas a denunciarem seus agressores e registrarem suas queixas”, uma vez que o medo de que o esposo/companheiro, muitas vezes único provedor do núcleo familiar, seja condenado à pena de prisão, acaba vindo a contribuir com a impunidade.

Os arts. 29 e 30 da Lei n.º 11.340/06 preveem a criação de uma equipe de atendimento multidisciplinar, integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde, os quais oferecerão subsídios ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, através de laudos, desenvolvimento de trabalhos de orientação, etc., voltados à ofendida, ao agressor, aos familiares e às crianças e adolescentes. Segundo Bastos (2013, p. 149), a equipe multidisciplinar é “essencial para orientar o magistrado nas decisões mais complexas que envolvam questões atinentes a áreas de conhecimento diversas”.       

Art. 29.  Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que vierem a ser criados poderão contar com uma equipe de atendimento multidisciplinar, a ser integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde.

Art. 30.  Compete à equipe de atendimento multidisciplinar, entre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos adolescentes.

Em atenção à tal previsão, Junior (2016, texto digital) sugere uma interpretação extensiva da proposta, legitimando a equipe da área da psicologia a se manifestar acerca da imposição de medidas protetivas, ou ainda, permitindo-a que entreviste o agressor e vítima para poder elaborar uma avaliação de forma segura acerca da conveniência no reatamento da convivência do casal, acaso noticiada. Conforme explica, é obrigação da Justiça buscar uma solução adequada ao casal e sua prole, conhecendo não apenas o fato principal ensejador da agressão que veio a motivar o processo criminal, mas também as circunstâncias favoráveis que se deram posteriormente, as quais foram suficientes para melhorar o relacionamento entre vítima e companheiro, apagando a avença existente:

É importante e oportuna tal providência porque, distante da realidade processual, que tem o objetivo de seguir o devido processo legal, irá retratar o reconhecimento do eventual erro por parte do agressor, seu firme propósito no reatamento da relação e a vontade do casal em reconstruir a vida em comum, agora com maturidade para tanto, haja vista que o relacionamento entre as pessoas nem sempre vem lacrado com o selo da certeza da indissolubilidade e da convivência pacífica. Resultando bem sucedida a tentativa, o profissional relatará o atendimento ao juiz que, por sua vez, ouvirá as partes e definirá a situação processual, sem aplicação da pena, ou mesmo a previsão de uma suspensão condicional do processo (JUNIOR, 2016, texto digital).

Por fim, frise-se que, tal qual consigna Alferes et al. (2016), verifica-se que em muitos casos ainda não há Juizados específicos de violência doméstica ou familiar contra a mulher, razão pela qual vêm surgimento parcerias com organizações não governamentais, instituições de ensino privado ou pública, bem como outras esferas federativas. Isso se justifica, haja vista que o Poder Judiciário nem sempre terá condições orçamentárias, de recursos humanos, enfim, para manter uma equipe interprofissional ou interdisciplinar de forma eficiente, de modo que, quer seja mantida e organizada pelo Poder Judiciário ou com parcerias, a existência da aludida equipe, com vista a compreender a complexidade dos fatos e prevenir outros atos de violência doméstica, torna-se essencial.

4.4 Estudos de caso

O presente estudo de caso foi feito mediante a análise minuciosa de dois processos criminais, regidos sob as normas da Lei n.º 11.340/06, que tramitaram junto à 2º Vara Judicial da Comarca de Encantado. A divulgação das informações obtidas foi autorizada pelo Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito Clóvis Frank Kellermann Junior, após a expedição de ofício pela Universidade do Vale do Taquari (UNIVATES), conforme documento que consta em anexo. Além disso, considerando que se tratam de processos que correram sob segredo de justiça, bem como a fim de preservar a integridade e intimidade de ambas as partes, foram utilizados nomes fictícios no decorrer da narrativa.

4.4.1 Condenação baseada na palavra da vítima

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL ofereceu denúncia contra JOÃO, imputando-lhe as sanções do art. 147, caput, do Código Penal, com a incidência da Lei n.º 11.340/06, pela prática, em tese, dos fatos delituosos ocorridos na data de 14 de outubro de 2015, na cidade de Encantado/RS.

Segundo narra a denúncia, na data dos fatos, o acusado teria ameaçado, por meio de gestos, de causar mal injusto e grave às vítimas MARIA e MARIAZINHA. Na oportunidade, a vítima MARIA teria pedido que o acusado não usasse drogas no banheiro da residência, pois queria dar banho nas suas filhas, sendo uma delas a vítima MARIAZINHA. Por esta razão, o acusado teria as ameaçado de morte ao sair do banheiro, dizendo à primeira vítima que ela podia ir “dar parte” se quisesse, mas que iria matá-la.

Considerando as disposições do art. 41 da Lei n.º 11.340/06, o Ministério Público deixou de oferecer a proposta de suspensão condicional do processo ao acusado.

O acusado foi preso em flagrante, sendo sua segregação cautelar convertida em prisão preventiva pelo Juízo.

A denúncia foi recebida em 12/11/2015 e o réu foi citado, apresentando resposta à acusação por intermédio da Defensoria Pública, ocasião em que alegou que o ônus probatório é exclusivo do Ministério Público. Em suma, reservou-se ao direito de exercitar a ampla defesa após a instrução criminal.

Não havendo hipóteses para a absolvição sumária, prosseguiu-se com a instrução regular, sendo designada audiência de instrução e julgamento. Na oportunidade, a primeira vítima foi inquirida e o réu foi interrogado. Na mesma oportunidade, o Juiz revogou a prisão preventiva de JOÃO.

Ultimada a instrução, os debates orais foram convertidos em alegações escritas. Em sede de memoriais, o Ministério Público requereu a procedência da denúncia, com o fito de condenar o acusado às sanções capituladas à peça inicial, pois suficientemente confirmadas a materialidade e autoria delitiva.

A Defesa técnica, a seu turno, requereu a absolvição do acusado, de vez que não comprovada a autoria e materialidade delitiva, postulando pela improcedência da ação penal, com fulcro no art. 386, inc. VII, do CPP.

Foram os autos conclusos para sentença, que foi prolatada em 17/08/2016.

Após o relatório dos atos praticados no decorrer da instrução, o magistrado consignou que o processo transcorreu regularmente, não havendo vícios ou nulidades a serem saneados, razão pela qual passou de imediato à análise do mérito.

De imediato, o magistrado consignou que tanto a existência do fato quanto a autoria delitiva restaram comprovadas pelo registro de ocorrência policial, pelo termo de declarações perante a autoridade policial, bem como pela prova oral colhida em juízo. A seguir, resumidamente transcreveu o que disseram as partes ouvidas durante a solenidade anteriormente aprazada:

A vítima MARIA disse que na data dos fatos, o acusado estava bastante drogado e usando entorpecentes no banheiro da residência, na presença das crianças. Sobre o incidente descrito na denúncia, disse que estava tentando dar banho em seus filhos, quando o acusado JOÃO apareceu e, ao pedir-lhe que saísse do banheiro, ameaçou-a, bem como a seus filhos, de morte. Embora negue ter sido agredida na ocasião, confirma ter sentido medo e temido por sua integridade física.

O réu JOÃO, por sua vez, confirmou que na data delituosa, estava embriagado e drogado, mas não lembra se chegou a ameaçar a vítima e tampouco sua filha. Ao final do interrogatório, comprometeu-se a manter distância da vítima e a não a procurar novamente.

Neste sentido, conforme salientado pelo magistrado, empregou-se maior valoração e relevância à palavra da vítima, que se mostrou segura e coaduna desde a fase policial até a data da audiência. Assim, em razão da embriaguez e drogadição do acusado, ele teria proferido ameaças de morte em desfavor de sua companheira na época, por motivo injustificável e de maneira desarrazoada.

Ademais, também foi afastada a tese de insuficiência probatória levantada pela Defesa do acusado, uma vez que as declarações da vítima foram descritas pormenorizadamente, além de o próprio réu ter confirmado que fazia uso de drogas e bebida alcoólica na época, com o que sequer lembrava se havia efetivamente ameaçado as vítimas.

Por todo o exposto, considerando que o delito de ameaça surtiu efeito intimidatório na vítima, causando-lhe grande temor, foi julgada procedente a denúncia, condenando JOÃO às sanções do art. 147, caput, do Código Penal, com a incidência da Lei n.º 11.340/06.

Por ocasião da dosimetria da pena, considerando as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal, em especial os antecedentes criminais e as circunstâncias do crime, fixou-se a pena base em 03 (três) meses de detenção. Em seguida, a pena foi exasperada em 01 (um) mês, considerando a agravante de reincidência, restando então provisoriamente fixada em 04 (quatro) meses de detenção, os quais foram tornados definitivos ante a ausência de majorantes ou minorantes.

Fixou-se o regime inicial semiaberto para início de cumprimento da pena, em razão da reincidência, com fulcro no § 3º do art. 33 do Código Penal.

Considerando que o crime foi cometido com violência à pessoa, nos termos do inciso I do art. 44 do Código Penal, não foi possível proceder à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Da mesma forma, em razão da reincidência, o magistrado deixou de conceder ao réu o benefício da suspensão condicional do processo previsto no art. 77, inciso II, do Código Penal.

Ao final, determinou-se a comunicação às vítimas da decisão proferida, na forma do artigo 201, § 2º, do Código de Processo Penal, deixando-se de fixar valor mínimo para a indenização, a teor do art. 387, inciso IV, do CPP, eis que o acusado não se defendeu de tal questão, além de não haver pedido específico na inicial.

Foi concedido ao réu o direito de apelar em liberdade, eis que nesta condição respondeu o processo. Outrossim, concedeu-se o benefício da gratuidade judiciária, isentando-os do pagamento das custas processuais.

O réu constituiu defensor e interpôs recurso de apelação, postulando a absolvição do acusado ante a insuficiência probatória. O aludido recurso foi desprovido, sendo a pena, de ofício, minorada para 01 (um) mês e 15 (quinze) dias de detenção, em regime inicial semiaberto.

Impende salientar que o motivo pelo qual a audiência prevista no art. 16 da Lei n.º 11.340/06 não foi realizada se deu ao fato de que a vítima não requereu a concessão de medidas protetivas, limitando-se a registrar um boletim de ocorrência e prestar as devidas declarações perante a autoridade policial, após a prisão em flagrante de seu companheiro. Dessa forma, considerando que o art. 41 da Lei n.º 11.340/06 afasta expressamente a aplicação das disposições da Lei n.º 9.099/95, o Ministério Público, na condição de titular da ação penal, prontamente ofereceu a denúncia, já que a vítima destacou a intenção de representar criminalmente contra o réu.

Neste sentido, ante o caráter procedência da sentença penal prolatada pelo magistrado, verifica-se que foram corroboradas as alegações tecidas na presente monografia, uma vez que, conforme visto no presente estudo de caso, a materialidade delitiva foi devidamente comprovada tanto pelo boletim de ocorrência policial registrado pela vítima, quanto pelo auto de prisão em flagrante posteriormente homologado pelo juízo. A autoria delitiva, ao seu turno, também foi devidamente demonstrada pela prova oral colhida, sobretudo em audiência de instrução e julgamento.

Com efeito, vê-se que a palavra da vítima, desde que se mostre verossimilhante e harmônica no decorrer da instrução processual, assume crucial importância e pode efetivamente sustentar uma condenação criminal. No mesmo sentido é o pensamento do autor Lopes Jr (2016, p. 378), segundo o qual “a palavra coerente e harmônica da vítima, bem como a ausência de motivos que indicassem a existência de falsa imputação, cotejada com o restante do conjunto probatório, têm sido aceitas pelos tribunais brasileiros para legitimar uma sentença condenatória”.

Na hipótese ora estudada, mesmo inexistindo demais testemunhas presenciais (o que é costumeiro em delitos desta natureza), e muito embora o réu tenha dito que não lembrava de ter praticado o crime a ele imputado, foi dada maior relevância à palavra da ofendida, que narrou com detalhes os acontecimentos ocorridos em 14/10/2015 e descritos na peça acusatória.

Frise-se que, para o reconhecimento do delito de ameaça, é necessário que se constante o efetivo temor da vítima diante de uma ameaça de mal injusto e grave. Neste caso, o mal injusto consistiu em ameaças de morte após a vítima, sua então companheira, ter pedido ao acusado que saísse do banheiro e não usasse drogas dentro de casa e na frente das crianças. Assim, nota-se claramente que MARIA se sentiu atemorizada diante da reação e ameaças proferidas pelo réu, tendo inclusive expressamente salientado que temeu, na ocasião, por sua integridade física.

O crime ora analisado – art. 147, caput, do Código Penal - é de natureza pública condicionada à representação da vítima, e, portanto, assim como as ações penais privadas, dependem da provocação da vítima, que deverá expressamente manifestar o interesse em representar criminalmente contra o acusado dentro do prazo decadencial previsto na lei. Logo, na hipótese, de acordo com o art. 16 da Lei n.º 11.340/06, a ofendida poderia “renunciar à representação” até o recebimento da denúncia, de modo que, recebida a peça acusatória pelo magistrado, não caberia mais qualquer manifestação posterior pelo arquivamento, independentemente de eventual reconciliação das partes.

Por outro lado, na hipótese de se tratar de um crime de ação penal pública incondicionada à representação (como uma lesão corporal, por exemplo), Dias (2012) ensina que, ainda que a reconciliação do casal venha a demonstrar uma tentativa de “retirar a queixa”, a instauração do inquérito e o desencadeamento automático da ação penal desempenham um papel pedagógico. Desse modo, assim como acima elucidado, mesmo que as partes houvessem se reconciliado após o recebimento da denúncia pelo magistrado, considerando que a infração foi cometida no âmbito doméstico, tal situação se mostraria irrelevante para fins penais (na forma dos arts. 102 do Código Penal e 25 do Código de Processo Penal), ou seja: não viria a tornar o fato atípico, tampouco extinguir a punibilidade ou considerar lícito o comportamento do acusado.

4.4.2 Absolvição com fulcro no princípio do in dubio pro reo

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL ofereceu denúncia contra ANDRÉ, imputando-lhe as sanções dos arts. 147, caput, e 129, § 9º, ambos do Código Penal, com a incidência da Lei n.º 11.340/06, pela prática, em tese, dos fatos delituosos ocorridos na data de 14 de maio de 2014, na cidade de Encantado/RS.

Segundo a peça acusatória, ANDRÉ teria causado à vítima, sua então ex-companheira, lesões corporais leves consistentes em “uma mancha de coloração violácea na região bipalpebral esquerda e uma mancha hiperemiada no bulbo ocular esquerdo”, o que foi atestado pelo Auto de Exame de Corpo de Delito realizado. Além disso, nas mesmas circunstâncias de tempo e local, o autor do fato também teria a ameaçado de causar mal injusto e grave, dizendo que “iria matá-la caso ela não ficasse com ele”.

Considerando as disposições do art. 41 da Lei n.º 11.340/06, o Ministério Público deixou de oferecer a proposta de suspensão condicional do processo ao acusado.

A denúncia foi recebida em 07/10/2014 e o réu foi citado, apresentando resposta à acusação por intermédio da Defensoria Pública, ocasião em que alegou que o ônus probatório é exclusivo do Ministério Público. Em suma, reservou-se ao direito de exercitar a ampla defesa após a instrução criminal.

Não havendo hipóteses para a absolvição sumária, prosseguiu-se com a instrução regular, sendo designada audiência de instrução e julgamento. Na oportunidade, a vítima foi inquirida e o réu foi interrogado.

Ultimada a instrução, os debates orais foram convertidos em alegações escritas. Em sede de memoriais, o Ministério Público requereu a procedência da denúncia, com o fito de condenar o acusado às sanções previstas nos arts. 147, caput, e 129, § 9º, do Código Penal, de vez que confirmadas a materialidade e autoria delitiva.

Ao seu turno, a Defesa técnica requereu a absolvição de ANDRÉ, com fulcro nos incisos II, V, VI ou VII do art. 386 do Código de Processo Penal. No mérito, reportou-se à insuficiência probatória e requereu, em caso de condenação, a aplicação da causa de diminuição de pena prevista no § 4º do art. 129 do Código Penal, devido à violenta emoção que acometeu o acusado quando da ocorrência do delito.

Foram os autos conclusos para sentença, que foi prolatada em 20/07/2016.

Após o relatório dos atos praticados no decorrer da instrução, o magistrado consignou que o processo transcorreu regularmente, não havendo vícios ou nulidades a serem saneados, razão pela qual passou de imediato à análise do mérito.

De imediato, o magistrado registrou que a pretensão acusatória contida na peça inicial não merecia prosperar, uma vez que existia dúvida insanável acerca da autoria delitiva dos fatos imputados ao réu. A título exemplificativo, transcreveu resumidamente os depoimentos tecidos pelas partes ouvidas:

A sedizente ofendida SABRINA, quando ouvida em juízo, disse que estava saindo de seu emprego quando o acusado apareceu de carro e pediu para que conversassem. Alega a vítima que se recusou, mas que ao insistir e entrar no veículo, o réu teria começado a agredi-la. Ainda, comentou que na época dos fatos, o casal já estava separado, e que ele sempre a ameaçou no decorrer da relação. Quanto ao motivo pelo qual se dera a desavença, explicou que ocorreu porque ela estava com um novo parceiro, o que deixou o acusado raivoso. Ao final, reafirmou ter sido ameaçada de morte pelo réu, o que a deixou com grande temor, levando-a a considerar a mudança para outra cidade.

Quando interrogado, o réu ANDRÉ prontamente negou a prática dos fatos, confirmando apenas que convidou a vítima para entrar em seu carro, mas que jamais a agrediu e que foi ela quem lhe ligou para que conversassem. Disse que na época o casal já estava separado, e que o novo companheiro da vítima usava drogas em frente aos filhos do casal, além de batê-la, tendo sido ele quem causou os machucados em SABRINA. Por fim, confirmou que o casal veio a relatar o relacionamento posteriormente, mas que a ofendida constantemente registra ocorrências na Delegacia de Polícia após qualquer discussão.

Após a análise da prova oral colhida, o juiz destacou que não havia dúvidas quanto às agressões em prejuízo da vítima, em especial devido ao exame de corpo de delito realizado. No entanto, a divergência pairava no que tange à autoria das aludidas lesões, já que o acusado as imputou ao atual companheiro de SABRINA, enquanto esta o responsabilizou pelo ocorrido.

Além disso, conforme exposto pelo magistrado, foram constatadas algumas divergências no termo de ocorrência registrado pela vítima perante a seara inquisitorial: naquela ocasião, ela teria informado que foi empurrada para dentro do veículo, e não que teria “entrado espontaneamente após insistência do réu para que conversassem”. Ao seu turno, o depoimento do acusado se mostrou coerente, crível e cristalino em ambas as oportunidades.

Por tais razões, verificou-se a existência de duas versões nitidamente antagônicas sobre os mesmos fatos, além de inexistirem testemunhas presenciais para valorar a palavra de ambas as partes envolvidas.

Especificamente quanto ao delito de ameaça, também foi dito que, embora se trate de crime formal e prescinda do real intento do agente de dar cumprimento à promessa de causação do mal, não restou devidamente comprovado o temor supostamente infundido à ofendida (que inclusive veio a relatar o relacionamento com o réu após os ocorridos, o que faz presumir que as ameaças não tenham surtido real caráter intimidatório).

Assim, o juiz considerou insuficientes as provas dos autos para amparar um édito condenatório, e embora a palavra da vítima mereça maior destaque nos delitos regidos pela Lei n.º 11.340/06, não foi possível valorar um testemunho sobre o outro, sendo ambos perfeitamente plausíveis. Correndo a presunção de inocência em desfavor do acusado, tornou-se impositiva a sua absolvição, com fulcro no princípio basilar do in dubio pro reo.     

O dispositivo, portanto, julgou improcedente a denúncia quanto às sanções previstas nos arts. 147, caput, e 129, § 9º, ambos do Código Penal, absolvendo o réu ANDRÉ, com fulcro no art. 386, inciso VII, do Código de Processo Penal.

Desta forma, constata-se que se a palavra da vítima, no caso ora estudado, mostrou-se duvidosa e contaminada por diversas incongruências desde a fase inquisitorial, o que enfraqueceu o valor da prova. O acusado, por sua vez, sustentou sua versão de forma uníssona do início ao fim, explicando de forma crível e plausível a sequência de acontecimentos que teriam levado a suposta ofendida a lhe imputar os crimes descritos na peça acusatória.

Embora sabido que o valor probatório do depoimento da ofendida, em crimes afetos à Lei Maria da Penha, seja reconhecido, o seu relato não é absoluto, e uma vez existente a dúvida insanável, impõe-se a absolvição do réu pelo princípio do in dubio pro reo. Consoante ensina Nucci (2016, p. 656), “[...] se o juiz não possui provas sólidas para a formação do seu convencimento, sem poder indicá-las na fundamentação da sua sentença, o melhor caminho é a absolvição”. Neste sentido, Lopes Jr. (2016, p. 35) também pontua que “é importante recordar que, no processo penal, a carga da prova está inteiramente nas mãos do acusador, não só porque a primeira afirmação é feita por ele na peça acusatória, mas também porque o réu está protegido pela presunção de inocência”.

Importante destacar que, nos termos do art. 5º, inc. LVII, da Constituição Federal de 1988, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Nas palavras de Lenza (2013), isso significa que o réu só poderá vir a ser considerado culpado quando não mais cabíveis recursos contra a sentença condenatória.

A presunção de inocência impõe um verdadeiro dever de tratamento (na medida em que exige que o réu seja tratado como inocente), que atua em duas dimensões: interna ao processo e exterior a ele. Na dimensão interna, é um dever de tratamento imposto – inicialmente – ao juiz, determinando que a carga da prova seja inteiramente do acusador (pois, se o réu é inocente, não precisa provar nada) e que a dúvida conduza inexoravelmente à absolvição; ainda na dimensão interna, implica severas restrições ao (ab)uso das prisões cautelares (como prender alguém que não foi definitivamente condenado?). Externamente ao processo, a presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu. Significa dizer que a presunção de inocência (e também as garantias constitucionais da imagem, dignidade e privacidade) deve ser utilizada como verdadeiros limites democráticos à abusiva exploração midiática em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial. O bizarro espetáculo montado pelo julgamento midiático deve ser coibido pela eficácia da presunção de inocência. (LOPES JR., 2016, p. 79).

Portanto, em atenção à presunção de inocência, bem como ao princípio do devido processo legal, igualmente esculpido no art. 5º, inc. LIV[18], da Constituição Federal de 1988, que prevê um procedimento previsto em lei para a apuração de toda a espécie de crime, pode-se dizer que, “não havendo, pois, prova suficiente da prática do crime, a absolvição deverá ser a única opção, sob pena de ser infringido o princípio do in dubio pro reo” (GRECO, 2010, p. 360). 

Frise-se que, conforme já salientado, as aludidas lesões causadas à ofendida foram suficientemente comprovadas, mas a sua autoria não (havendo diferentes relatos imputando a terceiros a responsabilidade pelo crime praticado). Da mesma forma, o bem protegido tutelado no crime de ameaça também não foi abalado, ou seja, não foi minimamente demonstrado, pelos depoimentos prestados pela ofendida, o temor e a crença de que algo de mal poderia lhe acontecer, de modo a lhe abalar a tranquilidade e a própria segurança.

Por fim, merece ser feita uma breve comparação dos depoimentos prestados pelos réus em ambos os processos analisados: no primeiro caso, no qual o réu JOÃO restou condenado às sanções do art. 147, caput, do Código Penal, o autor do fato expressamente assumiu que, à data dos fatos, estava embriagado e sob o efeito de substâncias ilícitas, de modo que não lembra ao certo se cometeu o delito a ele imputado. No segundo caso, por sua vez, o acusado negou prontamente o cometimento do fato delituoso, trazendo um álibi seguro dos acontecimentos, o que motivou a sua posterior absolvição.

Desta forma, em consonância com a lógica do in dubio pro reo, ao analisar o conjunto probatório, o magistrado optou pela absolvição do réu ANDRÉ pela ausência de provas suficientes para a condenação (art. 386, inc. VII, do Código de Processo Penal), enquanto que, na primeira hipótese, a vítima e o réu apresentaram depoimentos coerentes, sendo que o próprio acusado assumiu que não lembrava com precisão dos acontecimentos, dando maior credibilidade à palavra da ofendida.

Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Luísa. A relevância do relato da vítima com a Lei Maria da Penha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5790, 9 mai. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67992. Acesso em: 22 dez. 2024.

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