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Mistanásia: uma breve análise sobre a dignidade humana no Sistema Único de Saúde no Brasil

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Agenda 06/08/2018 às 15:28

A mistanásia – morte infeliz é a realidade vivenciada no Brasil pelos que recorrem ao SUS. O Estado justifica sua ineficiência na reserva do possível, entretanto realiza gastos desarrazoados em atividades que não têm primazia diante da dignidade humana.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. – Direito de morrer com dignidade: diferença entre mistanásia, eutanásia, distanásia e ortotanásia 3. Breve análise sobre a mistanásia no Sistema Único de Saúde: o reflexo da desigualdade econômica e social – 4. – Considerações Finais .


1.INTRODUÇÃO

A palavra mistanásia advém do vocábulo grego mis (infeliz) e thanatos (morte), significando, portanto, uma morte infeliz. O termo é utilizado para se referir à morte de pessoas que, excluídas socialmente, acabam morrendo sem qualquer ou apenas uma precária assistência de saúde. Assim, podemos afirmar que as vítimas da mistanásia são as pessoas que não dispõem de condições financeiras para arcar com os custos advindos dos tratamentos da própria saúde, ficando na dependência da prestação de assistência pública.

Na Paraíba, observamos diversas demandas judiciais visando compelir o Estado à prestação de saúde minimamente digna, seja no âmbito da prestação de serviços ou no tocante ao fornecimento de medicamentos e insumos imprescindíveis à tutela da vida.

De acordo com informações colhidas junto ao site da Secretaria de Estado da Saúde da Paraíba, a Paraíba conta com 29 (vinte e nove) hospitais públicos e segundo relatórios de fiscalização do Conselho Regional de Medicina, muitos destes não obedecem às normas mínimas sanitárias, carecendo de insumos, equipamentos, medicamentos e mais, sem o necessário número de profissionais de saúde.

Não obstante o Estado afirmar que não dispõe de recursos financeiros a fim de atender com eficiência a demanda, o que se observa é a ausência de uma política social séria que efetivamente atenda a missão constitucional conferida ao Poder Público, por meio da receita de alta carga tributária paga pelos contribuintes, a fim de ofertar uma saúde igualitária a todas as pessoas.

Ademais, o Conselho Econômico e Social (ECOSOC), órgão coordenador do trabalho econômico e social da ONU, das Agências Especializadas e das demais instituições integrantes do sistema das Nações Unidas, defende que é indispensável a garantia mais plena possível do direito à saúde e, em que pese a limitação orçamentária, o acesso aos serviços não pode ser discriminatório.

Diante desse panorama, o presente artigo visa apontar, sem esgotar o tema, alguns fatores que contribuem para a banalização de vidas que dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde.


2 MORRER COM DIGNIDADE: DIFERENÇA ENTRE EUTANÁSIA, ORTOTANÁSIA, DISTANÁSIA E MISTANÁSIA

A Constituição Federal, em seu art. 5º, caput, traz a inviolabilidade da vida como um dos direitos fundamentais do ser humano, garantindo-se a todos a igualdade perante a lei, sem qualquer distinção.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]1

Assim, conscientes de que a vida é o maior bem que o ser humano pode ter, razão pela qual a Constituição Federal ressalta sua inviolabilidade, o nosso ordenamento jurídico fixou diversas formas de proteção e garantia à vida desde o momento de sua concepção, como observamos no âmbito penal com a proibição do aborto, ou mesmo no âmbito civil, garantindo-se ao nascituro os alimentos gravídicos.

Não obstante a vida ser considerada um valor supremo em nossa sociedade, não se pode ignorar que, assim como ela recebe no nascimento a proteção das mais variadas formas em respeito à dignidade do ser humano, a morte igualmente merece a devida tutela, sendo necessária a distinção de termos que parecem semelhantes, mas refletem situações concretas bem distintas a respeito da morte.

A eutanásia, sendo prática vedada pelo ordenamento pátrio, consiste na realização de atos a abreviar a vida de uma pessoa com uma enfermidade incurável. Tal prática é considerada no Brasil como homicídio, na esfera criminal, sendo também expressamente vedada no âmbito do Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução nº 1.931/2009, in verbis:

É vedado ao médico:

[…]

Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.

Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.

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Notamos, contudo que diferentemente de abreviar a vida de um paciente, poderá o médico oferecer todos os cuidados paliativos ao necessário conforto a quem padece de doença incurável, amenizando o sofrimento na evolução natural de uma patologia irreversível, o que redunda na denominada ortotanásia.

De outra sorte, a distanásia apresenta-se como uma situação inversa da encontrada na ortotanásia, sendo inclusive vedada, pois se caracteriza pelo prolongamento excessivo da vida de pessoas que se encontram em processo de morte, ferindo a dignidade dos pacientes e daqueles que com ele também sofrem, em geral, seus familiares2.

Sobre os termos, Javier Gafo leciona:

O prefixo grego dis teria o sentido de “deformação do processo de morte”, de prolongamento, de dificuldade. Por isso, a palavra distanásia significaria o prolongamento exagerado do processo de morte de um paciente e seria quase uma crueldade terapêutica, porque provocaria uma morte cruel ao doente. [...] O prefixo grego orto daria o sentido de “morte digna”. Ortotanásia tem o sentido da morte “a seu tempo”, sem abreviar propositadamente nem prolongar desproporcionalmente o processo de morrer. Essa ortotanásia é diferente da eutanásia - na nova terminologia que propomos -no sentido em que não pretende pôr termo à vida de um paciente. [...]3

Mistanásia, por sua vez, é o termo que denomina a morte de milhares de pessoas “sem nenhuma assistência, deixadas à própria sorte, em lixões, embaixo de viadutos, pontes, ruas e, principalmente, nos hospitais com corredores lotados, com pacientes moribundos e abandonados pelo Estado e por todos”4.

Sobre a mistanásia, Leonard M. Martin afirma que três categorias diferentes podem ser consideradas. A primeira refere-se à massa de doentes que, por motivos políticos, sociais e econômicos, sequer chegam a ser pacientes pois não conseguem ingressar no sistema de atendimento médico; a segunda reflete a realidade dos que, apesar de se tornarem pacientes, são vítimas de erro médico e a terceira diz respeito aos pacientes que acabam sendo vítimas de más práticas por motivos econômicos, científicos ou sociopolíticos5.


3 BREVE ANÁLISE SOBRE A MISTANÁSIA NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE: O REFLEXO DA DESIGUALDADE ECONÔMICA E SOCIAL

Cotidianamente, os noticiários jornalísticos trazem casos em que o cidadão, ao procurar postos de saúde ou hospitais, depara-se com negativas ou mesmo omissão em seu atendimento, situação que quando não gera a morte, provoca danos muitas vezes irreversíveis às pessoas.

A Constituição da República Federativa do Brasil prevê, em seu art. 196, caput, que “a saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos”, estabelecendo, outrossim, que o acesso à saúde deve ser universal e igualitário.

Ocorre que, em que pese a norma constitucional estabelecer de forma expressa o direito à saúde e a facilitação de seu acesso a todos os indivíduos, não raras vezes, observamos a inauguração de hospitais sem o mínimo de infraestrutura para a demanda exposta, a existência de elevado número de profissionais da saúde mal remunerados e com sobrecarga de trabalho, a ausência de leitos para cidadãos que aguardam atendimento nos nosocômios públicos, além dos incontáveis pleitos de liminares judiciais a fim de que haja uma mínima tutela à vida, exemplos da omissão estatal em uma área fundamental, a saúde.

No âmbito do Estado da Paraíba, muitas vezes é possível vislumbrar uma desorganização na gestão do sistema de saúde, o que exige do cidadão, já extremamente abalado com a enfermidade que o acomete, tenha que passar por uma via crucis para receber atendimento ou medicamento necessário, visando restabelecer sua saúde.

As denúncias que emanam de órgãos de fiscalização não param, especialmente dos Conselhos de Medicina, as quais, além de apresentarem a realidade dramática e cruel vivenciada pelas pessoas carentes doentes e o tratamento nada digno que lhes é ofertado pelo Estado, mostram a precariedade dos serviços experimentada pelos profissionais da saúde que laboram junto à rede pública, prestando serviços à exaustão física e psicológica, diante da falta de estrutura dos locais de trabalho.

Tais profissionais, ante o quadro de caos de muitos hospitais e postos de saúde do Brasil, chegam ao ponto de se tornarem verdadeiros “juízes” do destino da vida de pessoas, tendo que optar qual vida salvar, infelizmente atribuindo a prevalência de uma vida sobre a outra, situação em que se verifica a mistanásia.

Como salientado alhures, a mistanásia alcança sobremaneira aqueles que, em virtude de carência de recursos, sequer têm acesso aos serviços médicos básicos, restando sua prática em evidente violação a um dos fundamentos da República, previsto no art. 1º, III, da Constituição Federal, qual seja, a dignidade da pessoa humana por parte do Estado. A morte prematura de pessoas por ausência de um tratamento digno, lamentavelmente, acaba sendo banalizada.

Por oportuno, a exemplo, enfatizamos que, no início do ano de 2018, foi instaurado Inquérito Civil Público pela Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde de Bayeux, a fim de apurar a morte de três pacientes, em um período de um mês, por ausência de leitos em unidades de terapia intensiva do Estado6.

Apesar de todo caos noticiado amplamente pela mídia e vivenciado por todos aqueles que recorrem aos hospitais públicos, além das ações promovidas pelo Ministério Público, Defensoria Pública, bem como das decisões do Poder Judiciário, o Estado continua mantendo-se inoperante frente as demandas de pessoas carentes, permanecendo numa postura de nadificar os indivíduos que clamam, há décadas, por um tratamento minimamente digno, optando por justificar sua omissão com base na reserva do possível e olvidando do mínimo existencial.

De acordo com Peter Härbele, “o mínimo existencial possui, assim, uma relação com a dignidade humana e com o próprio Estado Democrático de Direito, no comprometimento que este deve ter pela concretização da ideia de justiça social”7.

Mister ressaltar que a teoria de origem alemã da “reserva do possível”, não pode ser utilizada como forma de justificar, apenas com singelas alegações, a omissão do Estado no cumprimento de seus deveres constitucionais.

Recorde-se que a teoria da reserva do possível surgiu em um contexto socioeconômico completamente diverso do brasileiro e seu critério norteador jamais foi exclusivamente o econômico, mas a razoabilidade e a proporcionalidade na realização de políticas públicas pleiteadas pela sociedade, razão pela qual é totalmente inaplicável em nossa realidade.

Aliás, sobre o assunto, o Colendo Superior Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba é enfático no sentido de que o mínimo existencial tem precedência frente a reserva do possível:

ADMINISTRATIVO. PROCESSO CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. REDE DE ESGOTO. VIOLAÇÃO AO ART. 45 DA LEI N. 11.445/2007. OCORRÊNCIA. DISCRICIONARIEDADE DA ADMINISTRAÇÃO. RESERVA DO POSSÍVEL. MÍNIMO EXISTENCIAL. 1. Cuida-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul objetivando o cumprimento de obrigação de fazer consistente na instalação de rede de tratamento de esgoto, mediante prévio projeto técnico, e de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente e à saúde pública. 2. Caso em que o Poder Executivo local manifestou anteriormente o escopo de regularizar o sistema de encanamento da cidade. A câmara municipal, entretanto, rejeitou a proposta. 3. O juízo de primeiro grau, cujo entendimento foi confirmado pelo Tribunal de origem, deu parcial procedência à ação civil pública - limitando a condenação à canalização em poucos pontos da cidade e limpeza dos esgotos a céu aberto. A medida é insuficiente e paliativa, poluindo o meio ambiente. 4. O recorrente defende que é necessária elaboração de projeto técnico de encanamento de esgotos que abarque outras áreas carentes da cidade. 5. O acórdão recorrido deu interpretação equivocada ao art. 45 da Lei n. 11.445/2007. No caso descrito, não pode haver discricionariedade do Poder Público na implementação das obras de saneamento básico. A não observância de tal política pública fere aos princípios da dignidade da pessoa humana, da saúde e do meio ambiente equilibrado. 6. Mera alegação de ausência de previsão orçamentária não afasta a obrigação de garantir o mínimo existencial. O município não provou a inexequibilidade dos pedidos da ação civil pública. 7. Utilizando-se da técnica hermenêutica da ponderação de valores, nota-se que, no caso em comento, a tutela do mínimo existencial prevalece sobre a reserva do possível. Só não prevaleceria, ressalta-se, no caso de o ente público provar a absoluta inexequibilidade do direito social pleiteado por insuficiência de caixa - o que não se verifica nos autos. Recurso especial provido. (STJ. REsp 1366331/RS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/12/2014, DJe 19/12/2014) (Destaques de agora)

Destarte, a morte prematura, por notória exclusão social, não pode ser banalizada em um Estado Democrático de Direito, que tem como um de seus princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana, recaindo sobre o Estado a responsabilização pela reiterada omissão em fazer cumprir o dever constitucionalmente estabelecido de fornecer saúde digna para todos os indivíduos.


4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A mistanásia, prática vedada pelo ordenamento jurídico pátrio, vai muito além de insuficiência financeira do Estado, ela é o resultado de um mau e cruel relacionamento humano, diante de um quadro de banalização da morte, mormente das mais carentes social e financeiramente, atingindo-se um processo de coisificação do indivíduo, em que sua vida não apresenta a devida relevância nem para o Estado, nem para a sociedade.

A ineficiência do Estado no âmbito da saúde pública resulta na institucionalização de um processo contínuo de mortes prematuras e desarrazoadas, as quais poderiam ser evitadas com os devidos cuidados médicos.

Para justificar as mortes por falta de um tratamento digno, o Estado utiliza-se da suposta impossibilidade financeira de arcar com os custos decorrentes de insumos, pessoal e tratamentos hospitalares. Contudo, observamos que tal tentativa de repelir sua responsabilidade constitucional se apresenta inverossímil, porquanto notamos que vultuosos valores são alocados em despesas que não possuem prioridade frente a vida humana, como é o caso de gastos com publicidade institucional.

Desse modo, torna-se imperiosa a mudança de postura gerencial de recursos públicos pelo Estado, a fim de que as pessoas que recorrem ao Sistema Único de Saúde não sejam vítimas da mistanásia, sobretudo por distinguir que esta, além de afetar a dignidade dos pacientes, atinge severamente os próprios profissionais da saúde em sua dignidade pessoal e profissional, já que submetidos a ambientes laborais com alto nível de estresse, bem como compelidos a optar por qual vida salvar, ante a ausência da estrutura material necessária.

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