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Justiça restaurativa: De porta de acesso à justiça mais eficaz no deslinde dos conflitos para obtenção da pacificação social

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3 Diferenças entre Justiça Restaurativa e Justiça Retributiva

A Justiça Retributiva tem um conceito restrito do crime, ou seja, é conceituado como violação da Lei Penal, e dever do estado em demandar a Justiça Criminal.

Já a Justiça Restaurativa, por sua vez, tem um conceito amplo de crime, sendo o mesmo o ato que afeta a vítima, o próprio autor e a comunidade causando-lhe uma variedade de danos, bem como uma Justiça Criminal participativa. A Justiça Restaurativa trata o conflito de modo diferente da Justiça Retributiva, pois enxerga o conflito como uma situação emocional, a qual é por excelência uma relação multiplexa, de vários fatores, muito maior do que uma lide de um processo. A Justiça Restaurativa deve resolver o conflito, buscando a pacificação social, que é o mesmo interesse do Poder Judiciário, mas que este vem fracassando. Isto só pode ser alcançado, segundo BACELLAR[7]:

Analisando apenas os limites da “lide processual”, na maioria das vezes não há satisfação dos verdadeiros interesses do jurisdicionado. Em outras palavras, pode-se dizer que somente a resolução integral do conflito como um todo (lide processual + lide sociológica) conduz à pacificação social. Não basta (nossa posição) resolver a lide processual - aquilo que é levado pelos advogados ao processo - se os verdadeiros interesses que motivaram as partes a litigar não forem identificados e resolvidos. (BACELLAR, 2016, p. 75).

Ademais, seguem outras diferenças entre os dois modelos:

Ademais, com relação aos procedimentos, se destaca o ritual solene e público da Justiça Retributiva, com indisponibilidade da ação penal, contencioso, contraditório, linguagem e procedimentos formais, autoridades e profissionais do Direito como atores principais, processo decisório a cargo de autoridades (policial, promotor, juiz e profissionais do Direito) contrapondo-se ao ritual informal e comunitário, com pessoas envolvidas, com oportunidade, voluntário e colaborativo, procedimento informal com confidencialidade, vítimas, infratores, pessoas da comunidade como atores principais, processo decisório compartilhado com as pessoas envolvidas (multidimensionalidade) típico da Justiça Restaurativa. (JUSTIÇA RESTAURATIVA, <http://justicarestaurativa.weebly.com/origem.html/>).

Mas o que realmente diferencia a Justiça Restaurativa dos outros métodos de resolução de conflitos não-estatais é a sua fundamentação em valores e princípios como o respeito, a honestidade, humildade, responsabilidade, esperança, empoderamento, interconexão, autonomia, participação, busca de sentido e de pertencimento na responsabilização pelos danos causados. 

Tais objetivos são alcançados através da prática do Círculo Restaurativo, no qual reunidas as pessoas diretamente envolvidas no conflito, familiares, amigos e a comunidade, orientados por um coordenador, num ambiente confortável e seguro, seguem um roteiro pré-determinado com objetivo de relatar o problema e discutir possíveis soluções futuras. Esse momento de discussão é dividido em três etapas: o pré-círculo, preparação para o encontro com os participantes; o círculo, a própria realização do encontro e o pós-círculo que é o acompanhamento das futuras ações do indivíduo. No Círculo não há a visão de apontar o culpado e a vítima, mas demonstrar de que forma nossas ações influenciam e afetam a vida dos outros e a nossa, e que somos responsáveis pelos seus efeitos[8].

É importante ressaltar também a diferença entre esse método de abordagem restaurativa, que visa a resolução do conflito através da responsabilização do indivíduo em suas ações futuras, e a abordagem da Justiça Retributiva, que prega a vingança e a crença de que o sofrimento é um método pedagógico para a adequação de comportamentos. Teoria esta que já está ultrapassada, pois não se reduzem os índices de criminalidade e reincidência, proporciona um aumento na violência e na exclusão social do indivíduo infrator.

No que diz respeito aos efeitos para a vítima, frise-se que na Justiça Retributiva há pouquíssima ou nenhuma consideração, ocupando lugar periférico e alienado no processo. Já na Justiça Restaurativa, ao revés, a vítima ocupa lugar de destaque, com voz ativa e controle sobre o que passa. Com relação ao infrator, na Justiça Retributiva este somente tem posição passiva, de defesa no processo judicial; na Justiça Restaurativa, é visto no seu potencial de responsabilizar-se pelos danos e consequências do delito, interage com a vítima e com a comunidade, vê-se envolvido no processo, contribuindo para a decisão. (JUSTIÇA RESTUARATIVA, <http://justicarestaurativa.weebly.com/origem.html/>).

Não é difícil de se entender a ampla e inquestionável aplicação da Justiça Retributiva, tendo em vista que a sociedade espera que a pessoa que comete o ilícito penal não fique livre para cometer outros crimes, mesmo que esta medida implique no pagamento da sociedade, por meio de impostos, para a subsistência deste sistema falido, apesar de muito caro. Ou seja, a sociedade paga a conta para manter os infratores segregados, pois se sente mais segura desta forma, não aceitando outros termos para tal questão. É importante lembrar que esta situação explica muito bem que, é da natureza humana o inconformismo com o que considera injusto ou a inadequação aos seus interesses. Com bem observa ASSIS[9]:

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“O inconformismo arrebata homens e mulheres nas situações incômodas e desfavoráveis. Poucos aquiescem passivamente à adversidade. Envolvendo a rotina da condição humana conflitos intersubjetivos, resolvidos por intermédio a intervenção do Estado, a vida em sociedade se transforma em grandiosa fonte de incômodos. (ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. Pág. 31).


4 Aplicação da Justiça Restaurativa no Direito Brasileiro

A Justiça restaurativa primeiramente aflorou nos países que adotam o “commom Law”[10], isso porque em tais países o princípio da oportunidade inerente ao sistema de justiça é compatível com o ideal restaurativo. No caso do Brasil, porém, onde vigora o princípio da indisponibilidade da ação penal pública, não há essa abertura para a adoção de medidas alternativas.

Apesar disto, a Constituição Federal de 1988 e a Lei 9099/95, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, avançaram no sentido de permitir a aplicação da justiça restaurativa, mesmo que não explicitamente, nas situações onde vigora o princípio da oportunidade. Assim é que nos crimes de ação penal de iniciativa privada, sendo disponível e inteiramente a critério do ofendido a provocação da prestação jurisdicional, é possível para as partes optarem pelo procedimento restaurativo e construírem outro caminho, que não o judicial, para lidar com o conflito.

A lei 9099/95 prevê a composição civil (artigo 74 e parágrafo único), a transação penal (artigo 76) e a suspensão condicional do processo (artigo 89). Nos termos da citada lei, tanto na fase preliminar quanto durante o procedimento contencioso é possível a derivação para o processo restaurativo, sendo que, nos crimes de ação penal privada e pública condicionada (sem atuação do estado), há a possibilidade de despenalização por extinção da punibilidade através da composição civil e, nos casos de ação penal pública, utilizando-se o encontro para, além de outros aspectos da solução do conflito, se discutir uma sugestão de pena alternativa adequada, no contexto do diálogo restaurativo. Disso resulta que a experiência restaurativa pode ser aplicada na conciliação e na transação penal, a partir do espaço de consenso por ela introduzido, que permite o diálogo restaurativo, inclusive ampliado para contemplar outros conteúdos, como o lado emocional dos envolvidos.

De outra banda, por força do artigo 94, da Lei 10.741/03 (Estatuto do Idoso), o procedimento restaurativo nos crimes contra idosos, haja vista que o referido artigo prevê o procedimento da Lei 9099/95 para os crimes contra idosos cuja pena privativa de liberdade não ultrapasse quatro anos[11].

Por conseguinte, o Estatuto da Criança e Adolescente é um dos diplomas legais que podem ser utilizados para a implementação da justiça restaurativa ainda que parcialmente.

Dessa forma destaca-se que é procedimento do instituto em comento a conciliação, porém, de forma espontânea, sem qualquer espécie de coerção, sendo essencial a existência de voluntariedade por parte do menor infrator. A esta situação está o artigo 126[12]:

Art. 126. Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional. (BRASIL, <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>.)  

É importante destacar que a remissão não importa reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes para o menor infrator, mas permite a lei que seja cumulada com a aplicação de medidas socioeducativas ou protetivas.

Observa-se, portanto, a possibilidade, mesmo que tímida, da espécie de composição judicial em comento, no Juízo Especial da Infância e Juventude, no Poder Judiciário Nacional. Esse instituto pode ser utilizado, a fim de promover a participação do adolescente, de seus familiares e, inclusive, da vítima, na busca de uma efetiva reparação dos danos e de uma responsabilização consciente do menor infrator. 

Também o artigo 112, do Estatuto da Criança e do Adolescente[13], evidencia a prática da Justiça Restaurativa, pois faz o uso de medidas socioeducativas com a finalidade de recuperar o menor infrator aplicando as medidas abaixo:

Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:

I - advertência;

II - obrigação de reparar o dano;

III - prestação de serviços à comunidade;

IV - liberdade assistida;

V - inserção em regime de semi-liberdade;

VI - internação em estabelecimento educacional;

VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI. (BRASIL, <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>.)   

Portanto, o Estatuto da Criança e do Adolescente, não tem somente cunho punitivo. Procura envolver dentro de um ambiente o jovem em conflito com a lei, juntamente com seus familiares com o intuito de promover a ressocialização daquele, no ambiente social. Tem como objetivo prevenir a reincidência, sendo desenvolvidas com a finalidade pedagógico-educativa.

Por fim, atualmente, no Congresso Nacional, tramita um Projeto de Lei, nº 7.006/2006[14], que infelizmente ainda está em fase burocrática, possui em sua ementa a proposta em facultar o uso de procedimentos de Justiça Restaurativa no sistema de justiça criminal, em casos de crimes e contravenções penais, com a perspectiva de criar núcleos restaurativos no Brasil. 

O que é possível interpretar é de que a futura lei busca dispor um modelo de restauração informal ao processo penal, de forma consciente e estrutural.O projeto de Lei nº 7.006/06, em sua proposta, condiciona mudanças ao Código Penal (Decreto-Lei 2848/40) e ao Código de Processo Penal, bem como na lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei nº 9099/95). Suas principais características são: 

1) modifica o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei 9.099/95 que trata do Juizado Especial Criminal para introduzir os procedimentos de justiça restaurativa; 2) o procedimento é opcional, depende da concordância de autor e vítima; 3) o procedimento consistiria em encontros conduzidos por facilitadores entre vítima e autor do fato delituoso e se apropriado outros membros da comunidade, visando o encontro de solução adequada para compor os traumas e consequências do crime, em locais adequados chamados núcleos de justiça restaurativa; 3) das reuniões pode-se chegar aos acordos restaurativos, em que as soluções deverão atender as necessidades dos envolvidos; 4) quando o juiz se deparar com um caso que pode ser resolvido pelo sistema restaurativo depois de ouvir o Promotor de Justiça pode remeter os autos para o núcleo; 5) o núcleo deverá ter condições pessoais e materiais para funcionamento, contando com uma coordenação, equipe técnica interdisciplinar e facilitadores (preferencialmente psicólogos e assistentes sociais ); 6) os atos do procedimento: consulta às partes (autor e vítima) quanto a concordância da instauração do procedimento; entrevistas prévias com os facilitadores, separadamente para esclarecimentos; encontros restaurativos para viabilizar a solução adequada; 7) deve ser observada a confidencialidade (sigilo de justiça); 8) o cumprimento do acordo restaurativo leva à extinção da punibilidade do autor do fato delituoso; 9) no período da homologação do acordo restaurativo até o seu efetivo cumprimento não flui o prazo de prescrição quanto ao delito; 10) no inquérito, no relatório, o Delegado de Polícia pode sugerir a instauração do procedimento restaurativo; 11) se as partes (autor e vítima) concordarem podem ser remetidos os autos de ação penal ou do inquérito para o núcleo restaurativo; 12) o Ministério Público pode deixar de oferecer denúncia, enquanto tramita o procedimento restaurativo, assim como o curso da ação penal já iniciada pode ser suspenso para aquela finalidade; 13) se a personalidade do autor, antecedentes , circunstâncias ou consequências do fato delituoso recomendarem, o juiz poderá remeter os autos para núcleo restaurativo visando cientificar os envolvidos sobre a possibilidade de opção pelo procedimento e para que façam a escolha por sua adoção ou o rejeitem; 14) o acordo restaurativo é homologado pelo juiz; 15) o projeto prevê a vacatio legis de um ano, visando a preparação dos núcleos restaurativos; 16) enquanto não for homologado o ajuste restaurativo, pode ocorrer a desistência do acordo . 17) propõem alteração da segunda parte do art. 62, da Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, onde dizia “objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade ”, passa a ter a seguinte redação “buscando-se, sempre que possível, a conciliação, a transação e o uso de práticas restaurativas ”. (CAMARA DOS DEPUTADOS, <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=397016&f>).

Como visto, apesar de estar ainda “engatinhando” no Brasil a prática da Justiça Restaurativa está presente em leis importantes, as quais afetam várias camadas da população, devendo sua aplicação no ordenamento jurídico passar a ser presente.  

Sobre os autores
Dalvo Werner Friedrich

Graduado em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), coronel da Brigada Militar do Rio Grande do Sul reformado, ex-Comandante do Comando Regional de Polícia Ostensiva Vale do Rio Pardo, um dos autores do livro “Justiça Restaurativa na Práxis das Polícias Militares: uma inter-relação necessária no atendimento às vítimas de crimes graves no município de Santa Cruz do Sul”, ed. Curitiba Multideia, 2009.

Ricardo Werner Friedrich

Graduado em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) e advogado atuante na Comarca de Santa Cruz do Sul/RS.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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