3. O papel das controladorias internas municipais
É cediço que, na vigência do Estado Democrático de Direito, em que o poder emana do povo e somente em seu proveito será exercitado (artigo 1º, da Constituição Federal), não se concebe a inexistência de controle dos atos daqueles que detém o poder-dever de gerir a coisa pública. Assim, é possível afirmar que “um Estado sem controle navega contra a ideia de democracia, porquanto não há transparência para aferição de sua atuação, vigorando a completa submissão de seus governados”.16
O controle da Administração, amplamente considerado, é a fiscalização exercida pelo Poder Público ou pelo cidadão quanto à atuação dos diversos órgãos da Administração direta ou indireta, de qualquer esfera federativa ou de qualquer Poder.
Segundo leciona José dos Santos Carvalho Filho, a função de controle tem relação intrínseca com o instituto da garantia jurídica, na medida em que, embora caiba à Administração a tarefa de gerir o interesse coletivo, não é ela livre para fazê-lo, devendo atuar em conformidade com os padrões fixados na lei e buscando, sempre, o interesse da coletividade. Sendo assim, é por meio do controle que os administrados e Administração podem aferir a legitimidade ou a conveniência das condutas administrativas, e essa possibilidade reflete uma garantia para ambos.17
Sua natureza jurídica é a de princípio fundamental da Administração Pública, consoante expressamente previsto no estatuto da reforma administrativa federal (Decreto-Lei n.º 200/1967), em seu artigo 6º,18 que pretendeu considerar o controle como indispensável à execução das atividades administrativas do Estado, não podendo ser recusado por nenhum órgão administrativo.
É pertinente correlacionar a ideia de controle com o conceito de accountability, cuja origem remonta ao ato do Rei William I, da Inglaterra, por meio do qual impôs aos proprietários de seu reino que prestassem contas de todos os bens possuídos, com o principal objetivo de obter o juramento de lealdade ao detentor do poder e estabelecer as bases da governança real. Entretanto, posteriormente, a referida relação se inverteu, de maneira que os gestores públicos passaram a submeter-se à accountability, cabendo-lhes o dever de prestar contas aos cidadãos.19
A accountability está ligada à ideia da institucionalização legal da desconfiança política e remete ao princípio da legalidade, segundo o qual tanto os cidadãos quanto as autoridades públicas estão submetidos às disposições legais e sujeitos a sanções em caso de descumprimento. Traduz, portanto, ideia de responsabilidade, de obrigação e de exigência de prestação de contas segundo os parâmetros da lei, com a possibilidade de sanção pelo descumprimento dos comandos normativos aplicáveis.20
Dentre as espécies de controle, sob o ângulo da forma de sua atuação, está o controle interno, que é aquele exercido pela Administração Pública sobre si mesma, possuindo força normativa na Constituição Federal e prescindindo de lei expressa. Assim dispõe seu artigo 74,21 que traz em seus incisos as funções precípuas do sistema de controle interno.
Merece destaque, dentre as funções precípuas elencadas no supracitado artigo, a previsão de apoio aos órgãos de "controle externo no exercício de sua missão institucional", razão pela qual a implantação e atuação eficiente de instâncias administrativas de controle interno são essenciais para otimizar o desempenho das funções constitucionais de órgãos do controle externo da Administração, como os Tribunais de Contas do Estado e da União, assim como o próprio papel do Ministério Público e do Poder Judiciário.
Sobreleva notar, nesse ponto, que a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA) – que consiste na articulação de mais de 80 órgãos e entidades das três esferas estatais –, estabeleceu a Ação n.º 02, de 2017, cujo escopo é o de “Desenvolver ações que permitam apoiar a implementação do sistema de controle interno nos estados e municípios”.
Esse controle interno é realizado, via de regra, pelo sistema de auditoria, que acompanha a execução do orçamento, verifica a legalidade da aplicação do dinheiro público e auxilia o Tribunal de Contas no exercício de seu papel constitucional.22
Hely Lopes Meirelles, em sua obra “Direito Municipal Brasileiro”, explica que a espécie de controle em comento abrange os controles da legalidade, da fidelidade e da execução:
A fiscalização financeira e orçamentária atribuída ao Executivo (controle interno) compreende os controles da legalidade, da fidelidade e da execução. O controle interno da legalidade é exercido sobre os atos pertinentes à arrecadação da receita e à realização das despesas, bem como sobre os que acarretem ou possam acarretar nascimento ou extinção de direitos e obrigações; o controle interno da fidelidade visa à conduta funcional dos agentes responsáveis por bens e valores públicos; o controle interno da execução tem por objetivo o cumprimento do programa de trabalho do governo, considerado em seus aspectos financeiros, de realização de obras e prestação de serviços (Lei 4.320/1964, arts. 75 e 76).23
Nesse contexto, o legislador constituinte previu expressamente aos Municípios a implantação de sistemas de controle interno (artigo 31 da Constituição Federal), cujas atribuições foram desde logo fixadas pela própria Carta Política, dentre as quais a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do próprio ente político e dos órgãos e entidades da Administração Indireta a ele vinculados (artigos 70 e 74 da Constituição Federal). No mesmo sentido prescreve a Lei de Responsabilidade Fiscal, em seu artigo 59, ao dispor que o sistema de controle interno de cada Poder e do Ministério Público fiscalizarão o cumprimento das normas da referida Lei Complementar, com ênfase, dentre outros, ao “cumprimento do limite de gastos totais dos legislativos municipais, quando houver” (inciso V).
Uma vez compreendida a imperiosidade da implantação de um sistema de controle interno municipal, é forçoso reconhecer que a realidade estrutural dos Municípios brasileiros, aliada muitas vezes à desídia ou inabilidade de gestores públicos, raramente reflete o que impõe o texto constitucional. Não basta a existência de uma controladoria interna que, embora implementada, não cumpra efetivamente seu mister fiscalizatório, limitando-se a um agir pro forma ou dirigido a outros interesses que não puramente o interesse público.
Nesse aspecto, Helio Saul Mileski comenta sobre a alteração à Lei de Responsabilidade Fiscal, trazida pela Lei Complementar nº 131/2009, que amplia as normas de transparência destinadas à responsabilidade na gestão fiscal:
(…) ressalte-se, ainda, a importância da exigência (art. 48A, parágrafo único, III) dirigida para as Administrações Públicas quanto à obrigatoriedade de adoção de um sistema integrado de administração financeira e controle, que atenda a padrão mínimo de qualidade. Considerando que, de um modo geral, no âmbito dos Estados e Municípios, é precário ou inexistente o controle interno da Administração, nos moldes preconizados pelo art. 70 da Constituição Federal, o legislador, em boa hora, vem reforçar a determinação para que seja criado um sistema de administração financeira e controle, no sentido de que haja um acompanhamento regular dos atos que devem ser praticados pelo Administrador, no exercício da gestão fiscal.24
Somente o sistema de controle interno estruturalmente adequado, por meio de atuação técnica e efetiva, é capaz de conferir concretude ao princípio da eficiência administrativa, que nada mais é do que uma faceta de um princípio mais amplo, cunhado pelo Direito italiano como o princípio da “boa administração”.25
Indo além, Emerson Gabardo explana que referido princípio traz como atributos a racionalização, produtividade, economicidade e celeridade, sendo os três últimos decorrentes do primeiro. Por sua vez, a racionalização é entendida como um processo de busca do modo ótimo ou do melhor modo possível na realização do fim.26 Pode-se afirmar, nesse sentido, que o princípio da eficiência se concretiza por meio da atuação de uma controladoria interna racional, produtiva, econômica e célere, na medida em que, quanto mais eficiente sua atuação, mais a aplicação e gestão dos recursos públicos atingirão sua finalidade, que corresponde, em última análise, ao atendimento do interesse público. Além disso, a maior eficiência da controladoria interna resultará também na otimização do desempenho das demais instâncias controladoras.
Nesse rumo, não se pode olvidar que a atividade de controlador interno deve ser exercida por servidor investido em cargo de provimento efetivo, ou seja, previamente aprovado em concurso público.
Quanto ao tema, lembra-se que a Constituição Federal estabeleceu, em seu artigo 37, inciso I,27 o democrático princípio da ampla acessibilidade aos cargos públicos, e consagrou, em seus incisos II28 e V,29 o princípio do concurso público, excepcionado apenas nos casos expressamente previstos em lei, sendo um deles o provimento de cargos em comissão, nos quais são livres a nomeação e a exoneração. Tais cargos, cujo provimento dispensa concurso público, são aqueles destinados a serem ocupados em caráter precário por pessoa de confiança da autoridade competente para preenchê-los. Trata-se, repita-se, de exceção prevista pela Constituição Federal.
Assim sendo, para que um cargo seja previsto em lei como em comissão, deve ter atribuições que exijam confiança política. Isso porque, para o correto desempenho das funções inerentes a tais cargos, seu ocupante deve estar afinado com determinadas diretrizes políticas e programas de ação governamental, situação que revela a incompatibilidade com a seleção por meio de concurso público. Essa necessidade de confiança política somente ocorre em cargos com atribuições que contenham decisão política ou influência a decisões políticas, o que se retrata, nos exatos termos do inciso V, do artigo 37, em funções de chefia, direção e assessoramento.
O que caracteriza uma atribuição de direção, chefia e assessoramento não é definido pela Constituição nem pela lei, mesmo porque desnecessária, tendo em vista a melhor interpretação do dispositivo constitucional. No caso do controlador interno, à evidência, trata-se de atividade preponderantemente técnica, livre de ingerências políticas, especialmente porque se destina à fiscalização do cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, auxiliando também os órgãos de controle externo a cumprirem suas funções constitucionais. O exercício dessa atividade30 demanda, portanto, imparcialidade e segurança, não se coadunando com a natureza do cargo comissionado.
Esse entendimento, inclusive, já foi consolidado pelo Tribunal de Contas do Estado do Paraná, que, no Acórdão n.º 97, de 31 de janeiro de 2008, do Tribunal Pleno,31 fixou que as funções de controlador devem ser exercidas por servidor efetivo, destacando a fixação de lapso para o seu desempenho.
Na mesma linha de pensamento, o Acórdão n.º 265/2008,32 também do Tribunal Pleno, que, além de reforçar que o Controlador deve ser servidor público efetivo, acrescentou que ele deve possuir conhecimento técnico e formação específica na área.33
Oportuno registrar que o suprarreferido órgão passou a desaprovar as contas de órgãos públicos que nomearam servidores comissionados para exercer o controle interno, como foi o caso da Câmara de Vereadores de Araucária, que no ano de 2010 teve as contas consideradas irregulares por essa razão (Acórdão n.º 2314/2012, do Tribunal Pleno).34