1. INTRODUÇÃO
O legislador constituinte originário, ao estabelecer normas relacionadas à saúde pública, foi explícito ao compelir o dever integral à prestação de serviços de saúde aos usuários de todos os entes da federação – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios – sistematicamente vinculados ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito à saúde pública. Cabe destacar que os entes federativos devem obedecer aos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais relacionados à saúde pública, sempre com o objetivo de atender aos comandos constitucionais.
2. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O DIREITO À SAÚDE PÚBLICA
A dignidade da pessoa humana é um princípio constitucional que está disposto no art. 1º, inciso III da Constituição da República Federativa do Brasil (CR) de 1988. É importante ressaltar que a aplicação dos Princípios Constitucionais é imediata nos termos do parágrafo 1º do art. 5º da CR/88. Nesse sentido, o legislador originário reconheceu a efetividade da dignidade da pessoa humana e, mais, atribuiu-lhe valor fundamental, pois está posto topograficamente no capítulo dos direitos fundamentais: “É indissociável a vinculação entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais já constitui, por certa, um postulados [sic], nos quais se assenta o direito constitucional contemporâneo” (SARLET, 2001, p. 26).
O legislador constitucional, ao redigir os direitos relacionados à saúde pública, elegeu como direitos sociais, conforme o art. 6º da CR/88, in verbis:
São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (BRASIL, 1988, grifo meu).
Deveras, pode-se dizer que todos os demais artigos da referida Constituição são desdobramentos dos artigos que dizem respeito aos direitos fundamentais. Assim, os princípios servem de base para solucionar conflitos, de forma que, diante de colisão entre os próprios princípios, aplica-se a prevalência, ou seja, numa escala axiológica de valores, um deles sobrepõe-se ao outro e, nesse caso, afasta-se o princípio de menor valor. Isto é, ao utilizar a proporcionalidade e a razoabilidade, na lição de Robert Alexy (2008, p. 93), aplica-se o sopesamento entre os princípios.
No caso de regras, não há essa possibilidade de prevalência, pois a elas se aplica a exceção. Desse modo, diante de duas regras-normas, o intérprete concretiza uma e, por isso, a outra se afasta. No dizer de Ronald Dworkin (2007, p. 39), “é tudo-ou-nada”.
3. HÁ INAPLICABILIDADE DA TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL E A PREVALÊNCIA DO FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS À CONTRATAÇÃO DE SERVIÇOS E AQUISIÇÕES?
Primeiramente, é importante esclarecer que a teoria da reserva do possível, cuja origem é alemã, entende que os direitos subjetivos estão sujeitos a esse princípio. Portanto, para efetivá-los, o Estado precisa de disponibilidade de recursos. Assim, os administrados ficam à mercê dos respectivos recursos públicos, de modo que as limitações de recursos relativizam o cumprimento das políticas públicas, inclusive a de saúde.
Friso que a questão está ligada aos direitos fundamentais e, diga-se de passagem, tem aplicação imediata. Então, deve o gestor público agir de forma positiva, a fim de efetivar as políticas públicas relacionadas à saúde pública de uma forma geral, devendo ser rechaçada essa teoria do nosso ordenamento jurídico.
Gregório Assagra de Almeida explica que:
A análise doutrinária da denominada reserva do possível geralmente é feita em duas dimensões: a) uma fática, que se liga à análise da possibilidade material para a implantação do direito – nesse caso geralmente é aferida a falta de condição econômica do Poder Público para cumprir determinados direitos; b) outra jurídica, que é a referente à alegação da necessidade de prévia dotação orçamentária como limite ao cumprimento imediato de decisões judiciais relativas às políticas públicas (ALMEIDA, 2007, p. 458, grifo do autor).
O renomado autor deixa claro seu posicionamento a respeito dessa questão. Segundo suas palavras:
Não concordamos com essa exigência de reserva do possível nessa dimensão jurídica pertinente à alegação de previsão orçamentária como condição para a implementação de políticas públicas [...]. Não há na Constituição brasileira fundamento jurídico que impeça a efetivação dos direitos sociais fundamentais com base simplesmente na falta de previsão orçamentária. Não é razoável, nem constitucional, que o Poder Público deixe de fornecer medicamentos e, assim, salvar vidas de pessoas, sob a alegação de falta de reserva orçamentária (p. 458).
Por isso, entendo que, com tal intensidade, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não podem alegar a falta de recursos orçamentários e, por consequência, mitigar a extensão da efetivação dos direitos fundamentais, em especial o direito a medicamentos, sob pena de violarem as garantias constitucionais. Logo, deve o gestor público garantir o mínimo existencial à vida humana. Nesse caso, a disponibilidade de medicamentos independe da existência de normas infraconstitucionais. É incumbência dos entes públicos garantir de maneira eficaz o fornecimento de medicamentos aos seus usuários.
Essa garantia à saúde também está disciplinada nos arts. 196 e 198 da CR/88, in verbis:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
[...]
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
[...]
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
[...]
§ 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes.
§ 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre:
I - no caso da União, a receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro, não podendo ser inferior a 15% (quinze por cento);
II - no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios;
III - no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º (BRASIL, 1988, grifo meu).
Para que as ações de políticas públicas na área de Saúde sejam efetivadas, é imperioso que, mesmo diante da falta de dotação orçamentária ou financeira, os entes públicos, por meio de seus agentes políticos, façam remanejamento no limite permitido ou recorram ao Poder Legislativo, para autorização de crédito adicional, ou até mesmo deixem de executar serviços ou adquirir outros objetos, para que seja assegurado o fornecimento de medicamentos aos usuários.
4. A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PODERIA PRORROGAR CONTRATO ADMINISTRATIVO RELACIONADO AO FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS, NOS TERMOS DO ART. 57 DA LEI Nº 8.666/93?
Faz-se necessário demonstrar o conceito de contrato administrativo, por isso valho-me do conceito disposto no parágrafo único do art. 2º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993:
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se contrato todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada (BRASIL, 1993).
Na doutrina de Márcio Fernando Elias Rosa (2002, p. 85): “o contrato administrativo corresponde, pois, ao contrato firmado pela administração, segundo normas de direito público, com o propósito de solver sua necessidade” (ROSA, 2002, p. 85).
Nesse cenário, ao firmar o contrato administrativo, busca-se o propósito de atender à necessidade da administração pública quando o objeto estiver relacionado às atividades-fim e, por outro lado, garantir a eficácia dos direitos fundamentais, quando estiver relacionado aos direitos dos administrados.
Consta no inciso II do art. 57 da Lei nº 8.666/1993 a palavra “contínua”: “à prestação de serviços a serem executados de forma contínua, que poderão ter a sua duração prorrogada por iguais e sucessivos períodos com vistas à obtenção de preços e condições mais vantajosas para a administração, limitada a sessenta meses” (BRASIL, 1993), cuja classe gramatical é adjetivo, bem como tem significado e sinônimo de: consecutiva; ininterrupta; seguida; sucessiva; que se estende por um longo tempo; que se repete com frequência. Por outro lado, o antônimo de contínua é interrupta.
Assim, um dos requisitos para a prorrogação contratual é que ele deve ser de natureza contínua, sem interrupções, pois sua paralisação haverá prejuízos aos administrados.
Para Marçal Justen Filho, são contratos de execução continuada:
Aqueles que impõem à parte o dever de realizar uma conduta que se renova ou se mantém no decurso do tempo. Não há uma conduta específica e definida cuja execução libere o devedor (excluídas as hipóteses de vícios redibitórios, evicção, etc.). Assim se passa, por exemplo, com o contrato de locação. O locador deve entregar o bem locado ao locatário e assegurar-lhe a integridade da posse durante o prazo previsto (JUSTEN FILHO, 2012, p. 154).
E conforme o ensinamento de Ivan Barbosa Rigolin:
Serviço contínuo ou continuado significa aquela espécie de serviços que corresponde a uma necessidade permanente da administração, não passível de divisão ou segmentação lógica ou razoável em unidades autônomas, nem módulos, nem fases, nem etapas independentes, porém prestados de maneira seguida, ininterrupta e indiferenciada ao longo do tempo, ou de outro modo posto à disposição em caráter permanente, em regime de sobreaviso ou prontidão (RIGOLIN, 1999).
Dessa forma, ao fazer a interpretação literal do inciso II do art. 57 da Lei nº 8.666/93, as compras não estão contempladas, uma vez que no artigo consta prestação de serviços e, mais, desde que estes sejam de natureza continuada e estejam presentes os demais requisitos, a exemplo de vantajosiedade para a administração pública.
Não obstante, aos que advogam de forma diversa, esclareço que o Direito não é estático e, no caso em comento, não se trata de direito administrativo sancionador e direito penal, que exigem a legalidade em sentido estrito. Portanto, deve o intérprete buscar ajustar a norma à dinâmica social, isto é, dar-lhe maior ampliação para alcançar resultados positivos, nos casos em que fica patente a otimização de recursos públicos e tempo, e, com isso, evitam-se os retrabalhos.
Nessa esteira, busca uma interpretação extensiva do inciso II do art. 57 da Lei nº 8.666/93, a fim de contemplar que os contratos referentes às compras ou aquisições, na melhor das hipóteses, fornecimento de medicamentos, sejam prorrogados até o limite de sessenta meses.
Justifica-se essa possibilidade de prorrogação, porque esses contratos possuem, sim, caráter de essencialidade e continuidade, de modo que não pode o gestor público deixar de consignar a previsão de recursos destinados ao fornecimento de medicamentos nas peças orçamentárias, caso contrário, não cumprirá o princípio da dignidade da pessoa humana, nem mesmo os demais comandos constitucionais, ou seja, os arts. 6º, 196 e 198 da CR/88.
Nesse contexto, o Tribunal de Contas do Distrito Federal editou a Decisão Normativa nº 3/99, que “Dispõe sobre a interpretação extensiva do disposto no inciso II do art. 57 da Lei nº 8.666/93, de 21 de junho de 1993”, da qual peço vênia para colar excerto:
Considerando o pressuposto de que a Lei nº 8.666/93, de 21 de junho de 1993, não tem por objeto inviabilizar as aquisições de forma continuada de materiais pela Administração, nem foi esta a intenção do legislador;
Considerando que, dependendo do produto pretendido, torna-se conveniente, em razão dos custos fixos envolvidos no seu fornecimento, um dimensionamento do prazo contratual com vistas à obtenção de preços e condições mais vantajosas para a Administração;
Considerando a similaridade entre o fornecimento contínuo e a prestação de serviços contínuos, vez que a falta de ambos "paralisa ou retarda o trabalho, de sorte a comprometer a correspondente função do órgão ou entidade" (BRASIL, 1999, grifos meus).
No tocante a esse debate, o Egrégio Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE/SP) já deliberou, ao julgar a matéria (Processo: TC-000178/026/06), cujo assunto consiste na interpretação extensiva do disposto no inciso II do art. 57 da Lei Federal nº 8.666/93 em sua atual redação, a fim de que as situações de fornecimento contínuo encontrem melhor forma de execução. Sendo assim, de acordo com o eminente conselheiro Eduardo Bittencourt Carvalho:
Após a análise de cada caso em particular, poderão ser reconhecidas situações em que há um contexto de fornecimento contínuo, nas quais poderá haver uma interpretação extensiva do art.57, II, da Lei de Licitações, para o fim de ser admitida a prorrogação de prazo prevista naquele dispositivo legal, desde que essas situações sejam devidamente motivadas pela Administração e que sejam atendidas as condições cujos aspectos foram desenvolvidos no corpo do voto do Relator (SÃO PAULO, 2006).
No mesmo sentido, o egrégio Tribunal de Contas da União (TCU) também se posicionou sobre essa questão por meio do Acordão nº 766/2010 da lavra do então ministro José Jorge. Vejamos excerto da decisão:
Conforme precedente deste Tribunal, ao qual farei referência adiante, as características necessárias para que um serviço seja considerado contínuo são: essencialidade, execução de forma contínua, de longa duração e possibilidade de que o fracionamento em períodos venha a prejudicar a execução do serviço. Manifesto minha anuência com a equipe de auditoria no sentido de que essas características encontram-se presentes nas contratações para entrega de fatores de coagulação.
Não tenho dúvida de que se trata de serviço essencial, pois qualquer interrupção no fornecimento de hemoderivados deixará à própria sorte indivíduos que dependem desses medicamentos para se manterem saudáveis.
Ademais, a duração dos contratos por períodos que não ultrapassam o ano civil, dentro, portanto, da vigência dos créditos orçamentários, é, com efeito, uma limitação à atuação do gestor. Ante as peculiaridades que se apresentam, ainda que todo o processo licitatório estivesse concluído em fevereiro de cada ano, considerando o prazo de 120 dias para a entrega do primeiro lote de medicamentos, toda a demanda anual deveria ser suprida em apenas 7 meses, o que pode ser considerado muito arriscado.
É patente que a solução de continuidade no fornecimento dos fatores de coagulação pode causar enormes prejuízos à saúde de seus dependentes. A adoção da medida sugerida trará, sem dúvida, maior segurança à classe de hemofílicos, além de satisfazer necessidade pública permanente e atender a obrigação constitucional. Portanto, é essencial, nesse momento, que o Tribunal admita que o Ministério da Saúde realize as compras dos medicamentos com base no art. 57, II, da Lei n.º 8.666/93.
A Unidade Técnica citou dois precedentes, um deles do Tribunal de Contas do DF – TCDF e outro deste Tribunal. Em que pese não se tratar de compras de hemoderivados, ou outros medicamentos de uso contínuo, nas duas situações restou demonstrado que a adoção de interpretação extensiva à aplicação do inciso II do art. 57 da Lei n.º 8.666/1993 veio permitir que os objetivos institucionais do órgão não fossem comprometidos.
Acredito que o então Relator, Ministro Marcos Vilaça, foi feliz ao transcrever lição do ilustre Marçal Justem Filho sobre o tema (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 10 ed., São Paulo: Dialética, 2004, PP. 492/493). Atrevo-me a repetir a citação, ante a semelhança da matéria, in verbis:
‘A identificação dos serviços de natureza contínua não se faz a partir do exame propriamente da atividade desenvolvida pelos particulares, como execução da prestação contratual. A continuidade do serviço retrata, na verdade, a permanência da necessidade pública a ser satisfeita. Ou seja, o dispositivo abrange os serviços destinados a atender necessidades públicas permanentes, cujo entendimento não exaure prestação semelhante no futuro.
Estão abrangidos não apenas os serviços essenciais, mas também compreendidas necessidades públicas permanentes relacionadas com atividades que não são indispensáveis. O que é fundamental é a necessidade pública permanente e contínua a ser satisfeita através de um serviço’ (BRASIL, 2010, grifos meus).
Diante das posições acima, é possível fazer interpretação extensiva do inciso II do art. 57 da Lei nº 8.666/93, com objetivo de prorrogar o contrato de fornecimento de medicamentos no limite de até sessenta meses, desde que haja vantajosiedade e economicidade para a administração pública.