Capa da publicação Estimativa de preço na nova Lei de Licitações: o mito dos três orçamentos
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Estimativa de preço na nova Lei de Licitações:

é possível superar o mito dos três orçamentos?

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26/09/2021 às 14:45

Resumo:


  • A prática de obter o preço de referência em licitações a partir de cotações com apenas três fornecedores é vista como um mito que não reflete os reais preços de mercado e aumenta riscos de ilícitos.

  • A nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) encoraja a utilização de múltiplas fontes para a formação do preço de referência, como painéis de preços, contratações similares anteriores, notas fiscais eletrônicas e sítios eletrônicos especializados.

  • O artigo 23 da nova Lei de Licitações indica que a regra é a consulta a várias fontes, e a utilização de um único parâmetro, como cotação com três fornecedores, é exceção e deve ser justificada quando as características do objeto licitado assim exigirem.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Examinamos a tradição de obter o preço de referência ou valor estimado das licitações com base na cotação de três orçamentos e as perspectivas desse procedimento à luz da Lei 14.133/2021.

1. Práticas tradicionais para a estimativa do preço de referência nas licitações

Quando tratamos de compras públicas, sabe-se que a Constituição Federal preconiza que, ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações da Administração Pública serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações (artigo 37, inciso XXI). Essa mesma sistemática foi também adotada em relação ao regime de concessão ou permissão para a prestação de serviços públicos (artigo 175, caput).

Para dar concretude a esse comando, o texto constitucional atribuiu competência privativa à União para legislar sobre normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios (artigo 22, inciso XXVII). Como desdobramento, foram editadas ao longo dos anos diversos diplomas, entre os quais: a Lei nº 8.666/1993, que estabeleceu normas gerais sobre licitações e contratos administrativos; a Lei nº 10.520/2002, que tornou o pregão modalidade licitatória para a aquisição de bens e serviços comuns; a Lei nº 12.462/2011, que instituiu o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC); a Lei nº 13.303/2016, que dispôs sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, disciplinado as suas licitações; e, mais recentemente, a Lei nº 14.133/2021, que veio a revogar as três primeiras leis mencionadas e prescrever novas normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

A despeito desse arcabouço normativo, até a edição da nova Lei de Licitações, as regras existentes foram bastante genéricas ao tratar da pesquisa na fase preparatória (ou interna) do processo licitatório para formar o preço de referência (ou orçamento estimativo) de bens e serviços que serão objeto de contratação. A Lei nº 8.666/1993, nesse aspecto, limitou-se a dizer que “as compras, sempre que possível”, deveriam “balizar-se pelos preços praticados no âmbito dos órgãos e entidades da Administração Pública” e ser processadas por meio de sistema de registro de preços – este “precedido de ampla pesquisa de mercado” e submetido à estipulação prévia do sistema de controle e atualização dos preços registrados, os quais, de qualquer modo, não obrigariam a Administração “a firmar as contratações que deles poderão advir, ficando-lhe facultada a utilização de outros meios” (artigo 15, incisos II e V, § 1º, § 3º e § 4º). Mais adiante, referiu que a licitação deveria ser processada e julgada com observância da “verificação da conformidade de cada proposta com os requisitos do edital e, conforme o caso, com os preços correntes no mercado ou fixados por órgão oficial competente, ou ainda com os constantes do sistema de registro de preços” (artigo 43, inciso IV).

Como resultado da interpretação conferida à abstração dos termos se possível, ampla pesquisa de mercado e outros meios, consolidou-se no âmbito da Administração Pública, notadamente nos Municípios, a praxe de se obter o preço de referência das licitações apenas com base na cotação de orçamentos realizada com três potenciais fornecedores. Por meio dessa prática, o ente licitante solicita a três pessoas jurídicas que comercializam o objeto do certame que encaminhem suas propostas de orçamento para fornecer o produto ou prestar o serviço, as quais servirão de parâmetro para a futura aquisição ou contratação.

Especula-se que tal tradição para estimar o preço de mercado seja decorrente da atuação dos próprios órgãos de controle do setor público. Tem-se como exemplo a deliberação tomada pelo Plenário do Tribunal de Contas da União (TCU), em 1999, respondendo consulta formulada pela Comissão de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados sobre dispensa de licitação, na qual o colegiado consignou como boa prática a realização de pesquisa de preço com ao menos três orçamentos, utilizando por analogia o requisito mínimo de concorrentes previsto para a licitação na modalidade convite:

Assim, considera-se de bom alvitre a elaboração de uma pesquisa de preços, dotada de, pelo menos, três propostas, aliada à escolha de fornecedor idôneo. Embora a Lei em enfoque não preconize explicitamente tal procedimento, nos casos de dispensa de licitação, ao se perscrutar os veios mais profundos da mesma, não é difícil depreender, pela sua essência, a necessidade de um levantamento de preços de mercado, mesmo (e principalmente) nas circunstâncias em que o certame licitatório não se perfaz. A ideia de um mínimo de três propostas se fundamenta na definição que a norma adjudica à modalidade convite. Analogamente à situação de dispensa, no convite, o administrador é munido de certa discricionariedade para a escolha de fornecedor. Além disso, em se tratando da modalidade mais simples entre as definidas na Lei, o convite já determina o mínimo de três propostas, o que leva à conclusão de que tal exigência se constitui no mínimo necessário à realização do certame. Com efeito, o art. 22, § 3º, da Lei 8.666/93 assim prescreve: § 3º Convite é a modalidade de licitação entre interessados do ramo pertinente ao seu objeto, cadastrados ou não, escolhidos e convidados em número mínimo de 3 (três) pela unidade administrativa (Decisão 627/1999).

Seguindo essa lógica, o Tribunal de Contas da União (TCU) passou a determinar que o mínimo de três orçamentos fosse utilizado como regra para todas as licitações, dispensas e inexigibilidades de seus órgãos jurisdicionados, conforme se depreende de decisão dirigida à Indústria Nucleares do Brasil (Decisão 955/2002): “8.2.4. proceda, nas licitações, dispensas ou inexigibilidades, à consulta de preços correntes no mercado, ou fixados por órgão oficial competente ou, ainda, constantes do sistema de registro de preços, […] consubstanciando-a em, pelo menos, três orçamentos de fornecedores distintos”.

No contexto de uma Administração Pública cujo princípio norteador da eficiência demandou status constitucional por emenda para ser observado (Emenda Constitucional nº 19/1998), não é preciso grande esforço argumentativo pra se compreender que as deliberações dos órgãos de controle quanto à obtenção do número mínimo de três cotações de preços passaram, pelo costume administrativo, a ser entendidas como a obtenção do número suficiente de orçamentos para atender ao que determina a legislação infraconstitucional sobre o tema.

Porém, de forma paulatina, essa prática consolidada deixou de ser entendida como uma tradição amplamente aceita no âmbito dos processos licitatórios para nos dias atuais consagrar-se como um genuíno mito sob a perspectiva da boa governança pública, já que usualmente não caracteriza uma pesquisa que possa ser considerada ampla para alcançar o valor estimado do objeto licitado, nem reflete na maioria das vezes os reais preços praticados pelo mercado. Sua utilização, em verdade, majora riscos associados à prática de ilícitos contra a Administração Pública, que vão desde o sobrepreço ocasionado pela ausência de adequada cotação até condutas fraudulentas envolvendo o conluio com fornecedores e a falsificação de orçamentos.

Com relação ao sobrepreço – aplicado o significado conceitual trazido pela nova Lei de Licitações, que o diferencia de superfaturamento1 –, é inegável que sua materialização será fomentada pelo comportamento do mercado empresarial em face da realidade burocrática que permeia o setor público.

O preço do orçamento cotado, nessa perspectiva, pode ser superestimado por três razões principais.

A primeira porque o potencial fornecedor não tem interesse em estabelecer relação de compra e venda com a Administração Pública ou compreende que estrategicamente a cotação de preço nesta fase preparatória do processo licitatório não lhe tratá nenhum benefício financeiro. Pelo contrário, além de não ensejar nenhuma expectativa de contratação (que dependerá de sua participação na fase externa do certame), o envio de seu orçamento permitirá que este seja conhecido desde logo por agentes públicos e talvez ainda exposto aos seus concorrentes, vindo porventura a influenciar em sua competitividade no mercado.

As variáveis que envolvem o cálculo do preço de referência e as ofertas dos licitantes constituem a segunda causa: o empresário tem conhecimento de que o valor de seu orçamento será, na fase preparatória, englobado em uma média ou mediana com outros orçamentos para formar o preço estimado, ou poderá ainda, opcionalmente, figurar como o preço máximo da licitação; na fase externa, por sua vez, seu orçamento estará sujeito à comparação com o valor das propostas dos licitantes, de modo a porventura indicar que sua cotação não reflete o real preço de mercado. Nesse cenário, especialmente se possuir interesse em apresentar proposta na fase de julgamento, não vislumbrará vantagem em contribuir com a pesquisa de preço.

A terceira razão se relaciona aos custos decorrentes da inadimplência da Administração Pública e mesmo da corrupção2, pois o potencial fornecedor não ignora que são frequentes os casos em que os órgãos licitantes atrasam pagamentos valendo-se de cláusulas exorbitantes dos contratos administrativos, não respeitam a ordem cronológica dos credores ou criam empecilhos burocráticos para postegar a satisfação do débito. Há ainda aquelas situações em que agentes públicos fazem a captura do Estado e, agindo criminosamente, solicitam ou exigem do particular o pagamento de vantagem indevida como condição de exequibilidade dos contratos. Esses fatores evidentemente são levados em consideração pelas sociedades empresariais em seu planejamento financeiro e, não raras vezes, restam embutidos no orçamento que é cotado pelo setor público.

De qualquer modo, poder-se-ia indagar se a deficiência na formação do preço de referência tem o condão de impactar o valor do contrato celebrado ao final da licitação, já que os concorrentes podem oferecer propostas mais vantajosas em relação ao valor inicial estimado. A resposta é afirmativa: estudos demonstram que, quanto maior o valor estimado na pesquisa de preço, maior o valor homologado ao final do processo licitatório. Vale dizer, estimativas acima da média de mercado tendem a gerar propostas mais caras pelos licitantes e ajudam a explicar a dispersão de preços que, em geral, ensejam prejuízo para a Administração Pública. A Controladoria-Geral da União em Mato Grosso, por exemplo, detectou variações de até 17.000% nos preços de medicamentos e produtos médico-hospitalares em 76 Municípios do Estado, com base nas atas de registro de preços vigentes no ano de 2014, concluindo que os Municípios auditados poderiam economizar mais de R$ 50 milhões por ano, se os melhores preços fossem observados nas contratações (SANTOS, 2015).

Os casos de sobrepreço nem sempre são de fácil identificação, porque exigem o revolvimento de matéria preponderantemente técnica e a verificação dos preços praticados no curso da realização do processo licitatório. Uma vez identificados, poderão caracterizar a prática de atos de improbidade administrativa, desde que não consubstanciem pequenas variações albergadas pela razoabilidade e facilmente justificadas pelas circunstâncias concretas (GARCIA; ALVES, 2011). O artigo 9º, inciso II, da Lei nº 8.429/1992 tipifica como ato ímprobo que importa enriquecimento ilícito a conduta de “perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem móvel ou imóvel, ou a contratação de serviços pelas entidades referidas no art. 1° por preço superior ao valor de mercado”, ao passo que o artigo 10, inciso V, da mesma lei assenta como ato ímprobo que causa lesão ao erário a conduta de “permitir ou facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem ou serviço por preço superior ao de mercado”.

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A praxe dos três orçamentos, quando não associada a outras fontes de pesquisa, incentiva também o direcionamento da cotação de preço, porque o agente público responsável pela tarefa tenderá a consultar sempre os mesmos potenciais fornecedores constantes de seu cadastro, os quais, se vislumbrarem um futuro cenário de contratação que lhes beneficie, acabarão se especializando nessa função. Consequência disso é a criação de um ambiente propício para que particulares combinem entre si os orçamentos que serão ofertados nas licitações e desenvolvam práticas econômicas anticompetitivas quanto à precificação de determinados produtos ou serviços, o que impactará posteriormente o valor do contrato, sobretudo se detiverem o monopólio em âmbito regional ou local do objeto licitado, ou mesmo quando a Administração Pública for a única ou a maior compradora de sua cartela de clientes. Garcia (2016), a esse respeito, adverte que a manipulação de valores cotados pelas sociedades empresariais pode configurar abuso de poder econômico.

É notório que essa tradição, pela usual ausência de confiabilidade, checagem e controle das fontes consultadas, ainda estimula uma série de condutas antijurídicas para as quais podem concorrer agentes públicos e particulares, entre as quais podemos destacar o conluio para restringir ou favorecer a participação de determinadas sociedades empresariais; o pagamento de vantagem indevida para garantir algum benefício decorrente da estimativa do preço de referência; a cotação realizada com fornecedores que na realidade não comercializam o objeto licitado; a participação de pessoas jurídicas “laranjas” ou “fantasmas”; a alteração fraudulenta de valores cotados com fornecedores idôneos; e a falsificação documental de orçamentos.

As hipóteses associadas ao desacerto dessa forma de pesquisa de preço, como visto, são muitas e sujeitam os agentes envolvidos a diferentes esferas de responsabilização. Em âmbito criminal, as condutas poderão tipificar crimes licitatórios, de falsidade documental e contra a Administração Pública, entre outros, a depender da forma como executadas; na esfera administrativa, implicarão a possibilidade de sancionamento administrativo-disciplinar de agentes públicos, vinculando-se à normatização incidente sobre o órgão licitante, geralmente disposta em códigos de ética e estatutos de servidores; na seara cível, como já mencionado, possibilitarão a deflagração de ação de improbidade administrativa, cuja tipologia não estará circunscrita apenas às condutas antes associadas a sobrepreço. Há ainda, em relação às sociedades empresariais, as sanções previstas na Lei Anticorrupção, que consagra como atos lesivos, no tocante a licitações e contratos, as ações de frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público; impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público; e fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente (artigo 5º, inciso IV, da Lei nº 12.846/2013).

As medidas de caráter repressivo ocasionadas pela atuação dos órgãos de controle e de persecução estatal, porém, não têm sido suficientes para coibir o cometimento de novos ilícitos ou mesmo incitar o aperfeiçoamento substancial de boas práticas em matéria de pesquisa de preço nas licitações3.

Em 2020, aliás, a melhoria da governança das contratações públicas sofreu uma perceptível estagnação decorrente do enfrentamento do Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19), já que a Lei nº 13.979/2020, com redação dada pela Lei nº 14.035/2020, permitiu que nas aquisições ou contratações de bens, serviços e insumos necessários ao combate da pandemia a Administração Pública se valesse de um único parâmetro para obter a estimativa de preço ou mesmo a dispensasse, excepcionalmente. Arrolou-se como fontes elegíveis para essa pesquisa o Portal de Compras do Governo Federal; pesquisa publicada em mídia especializada; sites especializados ou de domínio amplo; contratações similares de outros entes públicos; ou a pesquisa realizada com os potenciais fornecedores (artigo 4º-E, § 1º, inciso IV, e § 2º). Como era de se esperar, esse afrouxamento normativo resultou na ocorrência de um incontável número de aquisições com sobrepreço4.

Com a recente publicação da nova Lei de Licitações, a Lei nº 14.133/2021, espera-se agora uma evolução desse panorama, pois a norma foi no ponto da controvérsia para tratar das múltiplas fontes de pesquisa na formação do preço de referência, conforme será melhor abordado no capítulo seguinte.

2. Boas práticas para formação do preço de referência e a nova Lei de Licitações

A pesquisa de preço para referenciar o valor de mercado de bens ou serviços que serão licitados pela Administração Pública não provoca desdobramentos apenas em relação ao valor do futuro contrato administrativo celebrado com o particular.

O preço estimado na fase preparatória da licitação também delimita os recursos orçamentários que serão objeto da despesa pública; permite em alguns casos a opção pela contratação direta mediante dispensa de licitação ou mesmo a realização de pequenas compras ou a prestação de serviços de pronto pagamento; baliza critérios de julgamento e de exequibilidade das propostas dos licitantes; possibilita verificar a economicidade da aquisição e a viabilidade da prorrogação do contrato; justifica a compra por intermédio do sistema de registro de preços e a prorrogação do prazo de vigência da ata de registro de preço; e, sob a égide da Lei nº 8.666/1993, ainda norteava a modalidade da licitação a ser adotada (convite, tomada de preços ou concorrência).

Ciente dessas implicações e dos riscos que passaram a ser associados à praxe dos três orçamentos, sobretudo a caracterização de sobrepreço, o Tribunal de Contas da União (TCU) deu uma guinada em sua jurisprudência sobre a elaboração do orçamento estimativo nas licitações e já há alguns anos tem advertido expressamente seus jurisdicionados de que a pesquisa para a formação do preço de referência não deve, em regra, restringir-se a cotações realizadas junto a potenciais fornecedores, muito menos ao mínimo de três.

O alerta para que a Administração Pública utilize “outras fontes como parâmetro, a exemplo de contratações públicas similares, sistemas referenciais de preços disponíveis, pesquisas na internet em sítios especializados e contratos anteriores do próprio órgão” (Acórdão 3224/2020) tornou-se expressão reiterada em diversos julgamentos. A admissão do orçamento estimativo formado exclusivamente com base na cotação proveniente de três empresas do mercado foi relegada a situações excepcionais, para os casos em que não puder ser realizada a pesquisa conjunta a outras fontes, impossibilidade esta que deverá ser comprovada na fase preparatória do processo licitatório, por meio de estudos e levantamentos (Acórdão 2531/2011)5.

O órgão de controle tem destacado a necessidade de se priorizar consultas ao Painel de Preços do Portal de Compras do Governo Federal e a contratações similares de outros entes públicos, em detrimento de pesquisas com fornecedores, publicadas em mídias especializadas ou em sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo, cuja adoção deve ser tida como prática subsidiária e suplementar (Acórdão 3351/2015), uma vez que os sistemas oficiais de referência da Administração Pública refletiriam, em boa medida, os preços de mercado e, por gozarem de presunção de veracidade, devem ter precedência em relação à utilização de cotações feitas diretamente com empresas do mercado (Acórdão 452/2019).

Referenciais para produtos ou serviços dotados de especificidades também não podem ser ignorados. É o caso do Banco de Preços em Saúde (BPS) do Ministério da Saúde, para medicamentos (Acórdão 527/2020); do Sistema de Custos Referenciais de Obras (Sicro) e do Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices de Construção Civil (Sinapi), para obras e serviços de engenharia (Acórdão 2628/2020); e dos preços divulgados pela Fundação de Pesquisas Econômicas (Fipe), para veículos (Acórdão 7277/2016).

Essa multiplicidade de fontes de pesquisa, quando combinadas, teriam condições de melhor espelhar o valor de mercado dos bens e serviços que a Administração Pública pretende adquirir por meio de licitação, constituindo o que o Tribunal de Contas da União (TCU) passou a denominar de cesta de preços aceitáveis (Acórdãos 2170/2007 e 2637/2015). A cesta, nessa perspectiva, seria composta por todos os preços passíveis de serem consultados para a formação do orçamento estimativo, ao passo que o preço aceitável seria aquele formado por cotações que não se revelem fora da média de mercado, de modo a evitar distorções no custo médio apurado. O orçamento estimativo da licitação, assim, decorreria da pesquisa atualizada a vários parâmetros, excluindo-se cotações com preços manifestamente abaixo do limite inferior ou acima do maior valor constante da faixa identificada para o produto ou o serviço, levando ainda em consideração as condições de contratação específicas de cada caso, como a quantidade, a necessidade de parcelamento, o local de entrega do produto ou da prestação do serviço e os impostos incidentes neste local, entre outras.

Trilharam também esse caminho as Instruções Normativas nº 05/2014, 03/2017 e 73/2020, editadas pelo Ministério da Economia para disciplinar a pesquisa de preço para a aquisição de bens e contratação de serviços, no âmbito da Administração Pública federal. A Instrução Normativa nº 73/2020, atualmente em vigor, estabeleceu a utilização de quatro parâmetros, passíveis de emprego combinado ou não, desde que priorizados os dois primeiros: (i) Painel de Preços do Governo Federal; (ii) aquisições e contratações similares de outros entes públicos; (iii) dados de pesquisa publicada em mídia especializada, de sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo; (iv) e pesquisa direta com fornecedores, mediante solicitação formal de cotação.

A nova Lei de Licitações incorporou essas boas práticas sedimentadas pela jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) em seu artigo 23, ao disciplinar que o valor estimado para as licitações será obtido mediante pesquisa no painel para consulta de preços ou no banco de preços em saúde do Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP); contratações similares feitas pela Administração Pública; pesquisa publicada em mídia especializada, tabela de referência aprovada pelo Poder Executivo federal e sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo; pesquisa direta com no mínimo três fornecedores; e em notas fiscais eletrônicas. Para os fins deste trabalho, cabe destacar o seu caput e os § 1º e § 3º:

Art. 23. O valor previamente estimado da contratação deverá ser compatível com os valores praticados pelo mercado, considerados os preços constantes de bancos de dados públicos e as quantidades a serem contratadas, observadas a potencial economia de escala e as peculiaridades do local de execução do objeto.

§ 1º No processo licitatório para aquisição de bens e contratação de serviços em geral, conforme regulamento, o valor estimado será definido com base no melhor preço aferido por meio da utilização dos seguintes parâmetros, adotados de forma combinada ou não:

I – composição de custos unitários menores ou iguais à mediana do item correspondente no painel para consulta de preços ou no banco de preços em saúde disponíveis no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP);

II – contratações similares feitas pela Administração Pública, em execução ou concluídas no período de 1 (um) ano anterior à data da pesquisa de preços, inclusive mediante sistema de registro de preços, observado o índice de atualização de preços correspondente;

III – utilização de dados de pesquisa publicada em mídia especializada, de tabela de referência formalmente aprovada pelo Poder Executivo federal e de sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo, desde que contenham a data e hora de acesso;

IV – pesquisa direta com no mínimo 3 (três) fornecedores, mediante solicitação formal de cotação, desde que seja apresentada justificativa da escolha desses fornecedores e que não tenham sido obtidos os orçamentos com mais de 6 (seis) meses de antecedência da data de divulgação do edital;

V – pesquisa na base nacional de notas fiscais eletrônicas, na forma de regulamento.

[…]

§ 3º Nas contratações realizadas por Municípios, Estados e Distrito Federal, desde que não envolvam recursos da União, o valor previamente estimado da contratação, a que se refere o caput deste artigo, poderá ser definido por meio da utilização de outros sistemas de custos adotados pelo respectivo ente federativo.

Veja-se que a norma, de forma muito mais detalhada do que a Lei nº 8.666/1993, consagra a multiplicidade das fontes de consulta para a formação do preço de referência, mencionando ao menos cinco parâmetros para serem utilizados, sem prejuízo de os entes federativos ainda definirem outros sistemas para pesquisa. E, de modo inovador, faz alusão ao Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), plataforma criada para centralizar diversas funcionalidades sobre contratações públicas em sítio eletrônico oficial, entre elas painel para consulta de preços, banco de preços em saúde e acesso à base nacional de notas fiscais eletrônicas, as quais serão utilizadas pelos órgãos e entidades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de todos os entes federativos (artigo 174), permitindo-se minimizar, quando adequadamente utilizadas, riscos associados à deficiência na pesquisa de preço, notadamente a ocorrência de sobrepreço.

É interessante observar que o artigo 23, § 1º, replicando a redação da Instrução Normativa nº 73/2020 do Ministério da Economia, refere que os diferentes parâmetros a serem utilizados para a obtenção do preço estimativo das licitações serão adotados de forma combinada ou não. Poder-se-ia cogitar que esse dispositivo dá azo à escolha discricionária de apenas uma das fontes de pesquisa arroladas na lei, inclusive a pesquisa direta com no mínimo três fornecedores (inciso IV), o que viria a fortalecer a obtusa tradição de se referenciar bens e serviços unicamente com base em orçamentos cotados junto a três empresas do mercado.

Não é esse, porém, o sentido a ser extraído do dispositivo, a partir de sua interpretação teleológica. Como já tratado, a finalidade buscada pelo legislador com a nova Lei de Licitações foi aprimorar a governança das contratações públicas, incorporando boas práticas consolidadas pela jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) quanto à formação do preço de referência ou orçamento estimativo, o que implica dizer que a consulta a um único parâmetro de pesquisa, quando possível fazê-lo em múltiplas fontes, constituiria flagrante retrocesso, porque tal procedimento usualmente não é capaz de espelhar o preço de mercado de produtos e serviços, estando associado à materialização de riscos em prejuízo da Administração Pública.

O mesmo entendimento também decorre da interpretação sistemática da Lei nº 14.133/2021, pois ela prestigia a observância dos princípios da eficiência, da economicidade, do interesse público e do planejamento (artigo 5º) e estabelece textualmente que um dos objetivos do processo licitatório é evitar contratações com sobrepreço (artigo 11, inciso III). A norma também atribui à alta administração do órgão ou entidade a responsabilidade pela governança das contratações e o dever de implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações (artigo 11, parágrafo único). E ainda prevê que as contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo (artigo 169, caput).

Ora, é evidente que a compra pública planejada, íntegra e eficaz, nos termos do que foi almejado pela nova Lei de Licitações, é aquela que maximiza na fase preparatória da licitação as fontes de pesquisa de preço disponíveis para consulta, a fim de alcançar valores estimados condizentes com o mercado e, assim, acarretar propostas vantajosas que possam reduzir riscos e custos na contratação.

Logo, a regra que deve nortear a pesquisa para a formação do preço de referência ou orçamento estimativo nas licitações é a consulta a múltiplas fontes, privilegiando-se painéis, referenciais e registros de contratações anteriores da própria Administração Pública, com o intuito de se obter uma cesta de preços aceitáveis que reflita os reais valores praticados pelo mercado. A utilização de um único parâmetro de pesquisa, como a cotação solicitada a um mínimo de três potenciais fornecedores, constitui exceção e somente será admissível quando as características do objeto licitado assim exigirem – por exemplo, um novo produto cujas especificidades ainda não constam do registro de compras em outros órgãos do setor público –, o que deverá ser devidamente motivado e comprovado pelo agente público responsável pelo procedimento.

3. Conclusão

A praxe consolidada de se obter o preço de referência das licitações apenas com base na cotação de orçamentos realizada com três potenciais fornecedores deixou de ser entendida como uma tradição amplamente aceita no setor público para consagrar-se como um genuíno mito que, sob a perspectiva da boa governança pública, deve ser superado.

Isso porque esse procedimento usualmente não caracteriza uma pesquisa que possa ser considerada ampla para alcançar o valor estimado de bens e serviços, nem reflete na maioria das vezes os reais preços praticados pelo mercado. Sua utilização, em verdade, majora riscos associados à prática de ilícitos contra a Administração Pública, que vão desde o sobrepreço ocasionado pela ausência de adequada cotação até condutas fraudulentas envolvendo o conluio com fornecedores e a falsificação de orçamentos.

A nova Lei de Licitações, acolhendo práticas sedimentadas pela jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU), evidencia a necessidade de que a pesquisa de preço não se restrinja às cotações realizadas com empresas do mercado, demandando a consulta a múltiplas fontes, preferencialmente da própria Administração Pública, como painéis de preços e contratações similares, além de notas fiscais eletrônicas e sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo, entre outras, a fim de se obter uma cesta de preços aceitáveis.

O artigo 23, § 1º, ao estabelecer que as fontes de pesquisa poderão ser utilizadas “de forma combinada ou não”, precisa ser compreendido, a partir de sua interpretação teleológica e sistemática, no sentido de que a consulta a variados parâmetros deve ser a regra, afastada apenas de modo excepcional, motivado e comprovado pelo agente público responsável pela pesquisa, quando assim exigirem as características do objeto licitado.

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Sobre o autor
Leonardo Dumke Busatto

Mestre em Planejamento e Governança Pública (UTFPR). Promotor de Justiça (MPPR).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BUSATTO, Leonardo Dumke. Estimativa de preço na nova Lei de Licitações:: é possível superar o mito dos três orçamentos?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6661, 26 set. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/93304. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Texto publicado anteriormente na obra Transformação e reflexão da realidade sob a ótica do MP [recurso eletrônico]. Curitiba: Escola Superior do MPPR, 2021. p. 225-237.

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