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O uso de algemas pela Polícia: aspectos legais, técnicos e operacionais frente ao Decreto Federal n. 8.856/16

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Agenda 20/12/2018 às 17:10

8. A Súmula Vinculante n° 11 do STF

Como visto, a Súmula Vinculante n° 11 teve o seu nascedouro em um processo criminal onde um réu foi mantido algemado durante um julgamento no Tribunal do Júri. Segundo o Supremo essa situação equivaleria a um constrangimento ilegal, o que culminou com a anulação do decreto condenatório imposto. De outra banda, há quem diga que a edição da Súmula foi meramente política, com o subliminar escopo de blindar as altas autoridades brasileiras que, de forma corrente, tem sido submetidas à prisão. Seja como for, o importante é que esse regramento preencheu o hiato legislativo até então instalado, impondo regras mais claras e específicas sobre o uso de algemas em âmbito federal.

Diz a Súmula que "Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado".

Conquanto a previsão dessa justificativa escrita já encontrasse guarida na legislação paulista, a Súmula n° 11 passou a exigir tal providência em âmbito nacional, o que a princípio causou certo desconforto aos agentes operacionais, haja vista a ausência de um padrão para a aludida formalização, cuja ausência, ao certo, geraria sérias responsabilidades.

Na época, para melhor orientarmos o corpo discente da Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra” quando da edição da Súmula, desenvolvemos, em 2008, um modelo simplificado que poderia ser usado na prática, e o qual, após o preenchimento, seria anexado ao relatório de investigação ou expediente (boletim de ocorrência, termo circunstanciado, auto de prisão, inquérito policial, etc), a fim de perpetuar a diligência:

TERMO DE JUSTIFICATIVA PARA CONDUÇÃO DE PRESO ALGEMADO (11ª Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal)

Emprestando cumprimento ao que preconiza a 11ª Súmula Vinculante, editada pelo egrégio Supremo Tribunal Federal no dia 13 de agosto de 2007, após avaliação dos fatos e do respectivo cenário por parte do(s) signatário(s), registrou-se que, no dia (...), de (...) de (...), durante o traslado de (...), foram utilizadas algemas em razão de:

(   ) resistência do preso

(   ) fundado receio de fuga do preso

(   ) fundado receio de perigo a integridade física própria ou alheia           

O traslado se deu em virtude de:           

(   ) solicitação/requisição judicial

(   ) cumprimento de mandado de prisão

(   ) prisão em flagrante/encaminhamento ao DP

(   ) encaminhamento para exame de corpo de delito

(   ) outros (especificar): (...)           

São Paulo, (...) de (...) de (...).

Assinaturas dos policiais civis.

Posteriormente, com o advento do Decreto Federal n° 8.856/16, a Polícia Civil do Estado de São Paulo adotou similar inserção eletrônica do uso de algemas no próprio sistema de registro digital de ocorrências:

Utilização de algemas?

(   ) resistência do preso

(   ) fundado receio de fuga do preso

(   ) fundado receio de perigo a integridade física própria ou alheia

Dessa forma facilitou-se a perpetuação da diligência, a fim de que, futuramente, não se alegue omissão quanto a justificativa escrita do uso de algemas, a qual ficará registrada no sistema.

Independente da entrada em vigor da nova legislação, cremos que a Súmula n° 11 não perdeu totalmente a sua eficácia, mormente no que tange as consequências da ausência de motivação escrita, no que a lei silenciou.


9. O Decreto Federal n° 8.856/16

Cerca de trinta e dois anos após a Lei de Execução Penal prever que o uso de algemas seria disciplinado por decreto federal, o legislador, premido pelas circunstâncias sociais, finalmente achou por bem editar o Decreto Federal n° 8.856/16, o qual regulamentou o disposto no art. 199 da Lei Federal n° 7.210/84.

O art. 1º, inciso I, menciona que o emprego de algemas terá como diretrizes o inciso III do “caput” do art. 1º e o inciso III do “caput” do art. 5º da Constituição, os quais dispõem sobre a proteção e a promoção da dignidade da pessoa humana e sobre a proibição de submissão ao tratamento desumano e degradante. De caráter autoexplicativo, esse dispositivo tenciona deixar claro que o uso da força jamais poderá esbarrar em ações que maculem a integridade física ou psíquica do cidadão.

O inciso II alude a Resolução n° 2010/16 das Nações Unidas, a qual se refere ao tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras, a “regra de Bangkok”. Por exigir um estudo mais acurado em razão dos efeitos práticos, voltaremos a enfrentar esse tema mais a frente, analisando também a legislação paulista a respeito do emprego de algemas na presa parturiente.

E enfim, temos o inciso III da norma, que fala no Pacto de San José da Costa Rica, o qual determina o tratamento humanitário dos presos e, em especial, das mulheres em condição de vulnerabilidade, assunto que, como o visto, enfrentaremos adiante.

O aspecto mais impactante da nova legislação está no seu art. 2º, o qual estabelece que ser permitido o emprego de algemas apenas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, causado pelo preso ou por terceiros, justificada a sua excepcionalidade por escrito.

Em sentido genérico, “resistência” é a oposição ao ato legal emanado pela autoridade ou agente com atribuição para aplicar a medida, podendo ser ela “ativa” ou “passiva”.

A resistência “ativa” é aquela exercida com violência ou ameaça, e é considerada criminosa (art. 329 do Código Penal). É a reação à ação policial desferindo socos, chutes, arremessando objetos etc. Diante disso, além do crime anterior e da possível lesão, o indivíduo ainda responde pela resistência, cuja pena básica é de dois meses a dois anos de detenção.

A resistência “passiva” é aquela em que o sujeito resiste sem esboçar força ativa, recusando-se, de maneira inerte, a acatar uma deliberação legal. Como exemplo da resistência passiva temos o ato de jogar-se contra a parede, agarrar-se nas pessoas, prender-se a quaisquer objetos no intuito de impedir a sua condução etc. Como o decreto não disciplina taxativamente a espécie de resistência, ela pode ser interpretada das duas formas, i.e., ativa ou passiva. O sujeito, em tese, não comete crime de resistência – falta a violência ou ameaça a funcionário, afinal ele exerceu apenas força negativa –, mas pode incorrer, em sendo o caso, em desobediência.

O “fundado receio de fuga” reside na desconfiança justificada e relevante de que o indivíduo tente se subtrair da custódia. Exemplos não faltam, como a prisão de infrator já conhecido das lidas policiais; prisão de pessoa que resistiu; prisão de pessoa suspeita da prática de infração violenta ou tráfico de drogas; prisão ou recaptura de pessoa com antecedentes de fuga ou tentativa de fuga; transferências de pessoas presas ou apreendidas; escoltas ao Fórum etc. No caso da recaptura a legitimidade ganha força especial, afinal o preso se encontra na condição de foragido e, se escapou uma vez, certamente poderá fazê-lo novamente, cabendo ao policial redobrar cautela.

O “perigo à integridade física própria ou alheia, causado pelo preso ou por terceiro”, pode ser detectado na prisão de pessoa visivelmente violenta, com sintomas de embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos similares; na prisão de pessoa com sintomas de doença mental ou qualquer distúrbio psíquico; no transporte de pessoas presas ou apreendidas em veículos desprovidos de isolamento apropriado (“chiqueirinho”); no translado aéreo em aviões não adaptados ao isolamento; na prisão de pessoa portando armas; na prisão de pessoa dotada de conhecimentos em artes marciais ou luta corporal; nas hipóteses de haver um número insuficiente de policiais para prisão de mais de uma pessoa etc.

Vê-se, pois, que embora os critérios sejam de certa forma objetivos, requer-se certa discricionariedade do policial para constatar a necessidade ou não do uso do equipamento, o que só será possível diante da análise do conjunto comportamental do conduzido, cuja realização se baseará na experiência profissional e na capacidade de percepção adquirida pelo policial na constância da sua atividade, a qual possibilitará a identificação de condutas e situações concretas que, de pronto, justifiquem a algemação. Ou seja, é a junção da regra da discricionariedade com a regra da proporcionalidade.

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Do exposto, podemos concluir que compete apenas aos policiais responsáveis pela condução ou escolta decidir pelo uso de algemas, desde que o façam de maneira apropriada, motivada e escrita.

9.1. O emprego de algemas em parturientes

Diz o art. 3º do Decreto Federal n° 8.856/16, ser vedado emprego de algemas em mulheres presas em qualquer unidade do sistema penitenciário nacional durante o trabalho de parto, no trajeto da parturiente entre a unidade prisional e a unidade hospitalar e após o parto, durante o período em que se encontrar hospitalizada.

Depois dele, a Lei Federal n° 13.434/17 (a qual incluiu o parágrafo único do art. 292 do Código de Processo Penal), estabeleceu ser vedado o uso de algemas em mulheres grávidas durante os atos médico-hospitalares preparatórios para a realização do parto e durante o trabalho de parto, bem como em mulheres durante o período de puerpério imediato.

No âmbito do Estado de São Paulo vigora o Decreto Estadual nº 57.783/12, o qual estatui, ser vedado, sob pena de responsabilidade, o uso de algemas durante o trabalho de parto da presa e no subsequente período de sua internação em estabelecimento de saúde. As eventuais situações de perigo à integridade física da própria presa ou de terceiros deverão ser abordadas mediante meios de contenção não coercitivos, a critério da respectiva equipe médica.

Esse regramento, que é de específica aplicabilidade às presas grávidas, deve ser estritamente observado pelos policiais, sob pena de responsabilização em caso de burla.


10. As algemas na rotina policial

Vencida a fase tipicamente doutrinária, cumpre-nos agora situar o leitor na parte prática, cuja importância é primordial para a ampla compreensão do tema ora proposto.

Considerando que as algemas não envergam conceituação legal, ganha força a tese de que qualquer equipamento com trava desenvolvido para a constrição pode ser usado, desde que tenha a tração adequada e se preste a conter movimentos dos braços ou pernas.

Vejamos, pois, os modelos mais comuns e a sua aplicabilidade.

10.1. Algemas de pulso

As algemas de pulso, usualmente estruturadas em aço inoxidável ou conjugadas com alumínio ou polímero, consistem em dois sistemas esféricos interligados entre si por gomos (correntes) ou dobradiças (empunhaduras fixas), que tem por objetivo conter o movimento convencional das mãos e braços.

Elas possuem um sistema de fecho que é acionado por uma alça dentada (barra simples) que, em contato com a trava primária (barra dupla ou catraca), permite que o círculo se feche e contenha a pessoa presa. Para evitar que a alça continue sendo comprimida para dentro – e com isso apertando os braços do preso –, a maioria das algemas de pulso possui ainda uma trava secundária (trava antiestrangulamento), a qual é acionada por uma saliência que se encontra na própria chave do equipamento, a qual, após ser inserida num orifício apropriado, impede a continuidade de qualquer movimento de tração para dentro. O destravamento é feito com a inserção da chave no orifício de abertura, acionando-a nos dois sentidos. O uso da trava secundária é recomendado para evitar com que o preso, astuciosamente, force a alça dentada para dentro a fim de pleitear um alargamento das algemas, para, com isso, criar um cenário apropriado para se livrar delas.

As algemas de pulso geralmente possuem uma tração de 500 KgF, significando ser necessária uma força superior a isso para rompê-la, daí ser ela um equipamento seguro, mas que jamais dispensa a vigilância sobre o preso. Algumas, as mais comuns, possuem a alça simples totalmente arredondada, ao passo que outras, mais modernas, as tem com um detalhamento reto, para otimizar o início da algemação.

10.2. Algemas de tornozelo

As algemas de tornozelo possuem o mesmo sistema das de pulso, residindo a diferença apenas na ligação das alças. Enquanto que as algemas de pulso tem os elos limitados para facilitar a contenção, as algemas de tornozelo tem um distanciamento maior entre as alças, geralmente de 40 cm, o que se faz necessário para que o preso consiga se movimentar (andar) de maneira limitada e não tenha condições de escapar. A tração nesses casos geralmente é menor, em torno de 250 KgF. Elas são de aço niquelado e pesam em média 500g. As travas também estão presentes (primárias e de antiestrangulamento).

O uso específico das algemas de tornozelo não é regrado a parte e, em razão disso, valem as mesmas normas previstas no Decreto Federal n° 8.856/16. Entretanto, em razão da alegada polêmica do seu uso – o qual, repito, não é proibido pela lei brasileira – a prudência requer que os condutores se antecipem a qualquer medida questionadora que possa surgir. Desse modo, justificativas lacônicas devem ser evitadas, a fim de emprestar maior credibilidade a escolta. A autoridade policial, nesses casos, deve zelar para que os condutores ofertem elementos idôneos que justifiquem o uso excepcional de algemas nos tornozelos, mormente em se tratando de preso alquebrado, de preso que não dê margem a fundado receio de fuga ou de preso escoltado por vários agentes policiais em condições de dar uma pronta resposta armada em caso de necessidade. O “algemar por algemar”, no estágio atual da legislação, é defeso.

Assim, somos de parecer que as algemas de tornozelo tenham aplicabilidade apenas nos casos em que o transporte for de alto risco ou preso apresentar, ainda que de forma pretérita, um comportamento agressivo.

10.3. Algemas de dedo

As algemas de dedo são feitas de aço carbono e tem o acabamento niquelado. Pesam geralmente 100g e são de pequenas dimensões, sendo aplicadas nos polegares da pessoa presa, nas áreas das falanges proximais. Elas possuem a trava normal, da alça dentada (simples), e uma trava secundária interna (na catraca), similar a das algemas de pulso, a fim de evitar com que elas continuem comprimindo os dedos do preso. Tem uma tração média de 150 KgF.

Embora de pouca aplicabilidade operacional, elas tecnicamente também são algemas e, debalde a estrutura diminuta, podem ser aplicadas sem qualquer restrição, desde que dentro dos parâmetros do Decreto Federal n° 8.856/16.

10.4. Algemas plásticas

As algemas plásticas, também chamadas de “descartáveis”, são feitas de nylon, podendo, conforme o modelo, ser em formato “oito” (ou “dupla”), “solteiras” ou “casadas”.

As algemas plásticas em “oito” (ou “duplas”) são aquelas previamente fabricadas para servirem como algemas. Elas tem uma alça dupla e, no meio, possuem dois reténs de trancamento onde são inseridas as guias corrediças dentadas (geralmente com quarenta e sete dentes), formando-se um “oito” estilizado, para uma melhor imobilização do indivíduo. Tem uma tração aproximada de 150 KgF e medem cerca de 700 milímetros.

As algemas plásticas “solteiras” ou “casadas” – que na verdade são cintas plásticas – são igualmente usadas como algemas, em razão de possuírem um retém dentado que tranca a guia corrediça, tal qual a algema plástica dupla. São feitas de nylon e medem 100 milímetros, tendo 1,1 milímetro de espessura. São chamadas “solteiras” quanto usadas de maneira individual (apenas uma) e, “casadas”, quando formam um “oito” (uma acoplada a outra), de modo a melhor conter o preso.

São também chamadas “táticas”, pois podem ser transportadas em grandes quantidades e já prontas para a utilização. Algumas equipes internacionais de armas e táticas especiais possuem um agente especificamente direcionado para aplicá-las, o chamado “hands on”.

As cintas plásticas não possuem sistema de abertura por chave e, em razão disso, são classificadas como descartáveis, pois o operador, quando for soltar o conduzido, a romperá usando um cortador de duas fases.

Hodiernamente já existem algemas plásticas com sistema de abertura por chaves, as quais possuem orifícios similares aos convencionais.

10.5. Algemas conjugadas ou de restrição completa

As algemas conjugadas ou de restrição completa são aquelas que visam, de uma só feita, prender as mãos e pernas e, ainda, limitar o movimento dos braços através de uma correia de couro ou nylon acionada a cintura do preso. Essa cadeia de conexão impede que o preso levante os braços, o que, em termos operacionais, é extremamente vantajoso, mormente nos transportes veiculares. É que mesmo sendo algemado para trás, pode o preso, pela destreza, trazer os braços para frente e, em fazendo isso, cria uma espécie de forquilha com os braços. Para anular essa possibilidade, as algemas de restrição completa cumprem bem esse papel, tornando a mobilidade diminuta e trazendo segurança geral a operação.

No Brasil é raro vermos a aplicação das algemas conjugadas, entretanto países norte-americanos e europeus as utilizam de maneira constante, principalmente nas escoltas veiculares e áreas. Ainda assim, não sendo elas expressamente proibidas em nosso país, não vemos ilegalidade no seu emprego, desde que sejam respeitados os mandamentos do Decreto Federal n° 8.856/16.

4. Técnicas

Independente da técnica a ser aplicada, um pormenor jamais poderá deixar de ser observado: Uma pessoa algemada não está totalmente indefesa e imune a fuga. Diante disso, mesmo contido, o sujeito deverá sempre ser mantido vigiado.

Dito isso, partimos para outra regra. A algemação, prioritariamente, deve ser efetuada com as mãos do preso pra trás, dorso com dorso. Isso é necessário para que a Polícia tenha um maior controle sobre o conduzido, a fim de que ele não tente esboçar reações perigosas. Dessa maneira, evita-se que o detido possa usar as mãos ou braços para estrangular o agente, usando a junção das mãos e os próprios elos de ligação do equipamento.

Segundo o Manual Operacional do Policial Civil, “A pessoa será algemada, normalmente, com as mãos para trás (...)”[6]. “Caso o policial civil tenha que algemar dois presos, existindo dois pares de algemas, o procedimento será similar ao detalhado, porém eles ficarão de costas, um com o braço direito entrelaçado no braço esquerdo do outro e as mãos dorso contra dorso. Se forem três os suspeitos, e dois os pares de algemas, o do meio fica com os braços entrelaçados, prendendo-os, de preferência, por baixo dos cintos[7]. No que tange a condução, o modo mais seguro de se conduzir o preso é no compartimento específico para esse transporte, existente na viatura. Quando esta não estiver equipada com tal compartimento, deve ser o preso conduzido algemado no banco traseiro, preferencialmente posicionado atrás do banco do passageiro[8]”. Para o transporte, “o indivíduo deverá ser algemado e imobilizado de forma a impedir qualquer movimento ou ato de surpresa[9]”.

Como vimos acima, a regra é conduzir o preso algemado com os braços para trás, afinal, pela frente, ele poderá ficar com as mãos livres para tentar agredir o policial ou arrebatar-lhe a arma. A exceção seria se o preso estivesse contido pelas algemas de restrição completa, onde a elevação dos braços é obstada e a segurança geral é garantida.

Luiz Carlos Rocha, em sua obra “Prática Policial”, aludia em referência ao Manual de Técnicas de Abordagem da Polícia de Minas Gerais[10], que se você tiver que necessidade de algemar um preso pela frente, faça assim: 1 - Algeme uma das mãos (palma para fora); 2 - Passe a outra algema por baixo do cinto do suspeito; 3 - Algeme com esta ou outra mão (dorso com dorso). 4 - Para ficar mais seguro coloque a fivela do cinto para trás. É a única maneira segura de algemar alguém pela frente”. E de fato, o é. Algemar pela frente e deixar o preso com os braços livres é um convite para que ele esboce uma reação indesejada, a qual colocará a operação em risco. Em casos excepcionais, onde a algemação frontal for exigida, o condutor deverá permanecer ao lado do conduzido, segurando a junção da algema com a mão fraca, fazendo um movimento similar ao de aceleração, a fim de dificultar qualquer reação. Fora isso, não recomendados o uso de algemas pela frente, salvo se forem elas conjugadas ou de restrição completa.

4.1. Práticas a serem evitadas

Por vezes temos visto as mídias sociais apresentar técnicas de algemação pouco convencionais, dada a sua notória periculosidade. Uma delas consiste em algemar o infrator deitado com as mãos para trás e com os pés presos pelas mesmas. É a chamada “little package” ou “pacotinho”.

Não raro essa técnica impede a pessoa de respirar adequadamente e, em razão da elevada compressão toráxica a que é submetida, ela pode ser acometida pela chamada asfixia posicional, tendo a respiração obstruída e podendo evoluir a óbito. Caso o sujeito seja obeso, tenha problemas cardíacos, respiratórios ou esteja sob o efeito de álcool ou drogas, o perigo é potencializado. Vários Departamentos de Polícia do mundo proíbem o uso dessa manobra[11] e, em razão da imprevisibilidade dos seus efeitos, somos de parecer que o seu uso, em nosso país, não deva ser estimulado.

Pela precariedade da segurança, também entendemos que os infratores não devem ser algemados em objetos como cadeiras ou mesas, já que a forja desses materiais é de relativa durabilidade, comprometendo, assim, a integridade da autoridade e dos seus agentes, mormente quando o preso está sendo interrogado. Recomendamos que o detido, em sendo o caso, permaneça algemado corretamente e sob vigilância constante. Quando houver a necessidade do mesmo assinar documentos e persistindo as circunstâncias legais que autorizem a medida constritiva, o policial deverá fazer uma transição dos braços do preso, de trás para a frente, liberando uma mão por vez e concluindo novamente a algemação pela frente, proporcionando com que o detido consiga firmar os papéis. Durante o processo as cautelas devem ser redobradas, pois o custodiado estará, momentaneamente, com um instrumento perfurante nas mãos (a caneta), o que não pode ser ignorado. Finda a operação, repete-se a manobra ao inverso, a fim de que a condução de volta ao cárcere seja segura.

5. Condução

Conforme o Manual Operacional do Policial Civil, “É comum, nos turnos de trabalho, o policial civil deparar-se com pessoas incontroláveis. Diante do caso concreto, deverá imobilizá-las, retirando-as do local, a fim de evitar aglomerações e situações embaraçosas”[12].

Assim, a condução deve ser segura sob dois aspectos. O primeiro, a segurança geral, de modo a evitar que o preso escape ou danifique o patrimônio público ou alheio. O segundo, para preservar a integridade do detido, pois, com as mãos atadas, ele não poderá usá-las para proteger-se no caso de uma queda involuntária ou tropeção, no que incorrerá em sério risco de lesão. Diante disso, é importante que os policiais encarregados da custódia usem as técnicas adequadas para imobilizar o preso e ainda assim fazê-lo andar, estando preparados para suportar o seu peso em situações excepcionais, como, v.g., uma queda acidental.

6. As lesões de resistência e o abuso de autoridade

Tema quase nunca analisado pela doutrina, a chamada “lesão de resistência” tem relevante valor para o trabalho policial, pois, não raro, pessoas mal intencionadas buscam responsabilizar a Polícia, de maneira concisa, por toda e qualquer lesão experimentada pelo preso.

As lesões de resistência são aquelas que revelam ofensa a integridade física de alguém que, em razão do próprio comportamento agressivo, deu exclusiva causa a elas. É o caso do preso algemado que força intencionalmente as barras da algema contra os próprios pulsos, de modo a lesioná-los a fim de tentar angariar elementos para macular o ato da prisão. O modo de evitar isso é o acionamento da trava secundária (antiestrangulamento), que obsta a tração da trava simples e frustra a intenção do detido. Outra hipótese é a do preso que agride a equipe policial ou se debate para não ser contido, experimentado ferimentos em razão disso. É óbvio que, para se defender, o policial terá que usar a força e, por conta disso, é mais óbvio ainda que o recalcitrante aufira lesões de resistência, as quais, em estando na média aceitável da força oposta, devem ser consideradas parte do contexto e absorvidas pelas excludentes legais.

Essas lesões, que por vezes visam manchar a legalidade da prisão, exigem do policial a expertise necessária para evitar com que o preso use desse subterfúgio contra o Estado, angariando, para tanto, elementos testemunhais ou audiovisuais que deem conta da situação agressiva do preso ou das pouco ortodoxas das ações dele.

Note-se que no Brasil o crime de abuso de autoridade não existe na forma culposa e, salvo uma ação deliberada do agente, não há que se falar em responsabilização civil, administrativa ou criminal no caso da lesão de resistência que guarde proporcionalidade com a oposição encontrada.

7. Apresentação pública de pessoas presas

A apresentação pública de pessoas presas, sem prejuízo das regras constitucionais a respeito da garantia individual da intimidade, são usualmente disciplinadas por Portarias do Poder Judiciário, mormente os juízos corregedores das polícias judiciárias.

No Estado da Paraíba, a Portaria n° 060/2011/SEDS, proíbe qualquer forma de exposição pública de preso ou pessoa sob a guarda da Polícia, devendo a autoridade policial adotar, ainda, as providências a seu alcance para impedir a exposição indevida do preso, bem como, entrevista com qualquer preso, exceto quando houver o consentimento deste ou quando existir autorização, por escrito, de magistrado, advogado regularmente constituído pelo detido, defensor público ou membro do Ministério Público.

O Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, através da Suspensão da Execução n° 0051278-16.2015.8.19.0000, decidiu que as pessoas presas provisoriamente naquele Estado não poderão mais ser submetidas à sessão de apresentação à imprensa (o vulgarmente chamado “perp walk”), salvo se houver justificava relevante. A decisão vedou apenas a veiculação de imagens dos suspeitos, mas continuam liberadas a divulgação dos nomes e características físicas dos imputados.

Já em São Paulo, a Corregedoria de Polícia Judiciária da Capital, órgão ligado ao DIPO (Departamento Técnico de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária), emitiu a Portaria n° 2/97, a qual determina que todo preso poderá ser entrevistado ou apresentado a imprensa em geral, desde que haja prévia e expressa autorização judicial e a concordância do detido.

Destarte, é importante destacarmos que a lei não proíbe o uso de algemas nessas situações, desde que a medida seja necessária e adequada aos termos do Decreto Federal n° 8.856/16.

8. Conclusão

De todo o exposto, fácil concluirmos que hoje, no Brasil, o uso de algemas está regulado em âmbito federal, cabendo às normas locais o papel de complementação. 

O bom senso, mote que deve permear qualquer medida de cunho policial, deve nortear a discricionariedade necessária para fundamentar a ação, a fim de que não alegue qualquer constrangimento e a Justiça mantenha intacta a legalidade da prisão.

Tema acadêmico pouco enfrentado, raros são os estudos doutrinários sobre o uso de algemas no Brasil, encontrando destaque, na literatura especializada, a obra “Algemas e a Dignidade da Pessoa Humana”, da Delegada de Polícia e professora da Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra”, Dra. Fernanda Herbella, o qual indicamos como bibliografia àqueles que tencionam se aprofundar no assunto.

Isto posto, cremos ter auferido o intuito inicialmente proposto, qual seja, o de emprestar uma visão didática ao trabalho da Polícia e ao uso desse polêmico equipamento de neutralização de força, cujo regramento hoje imposto deve ser respeitado e praticado.

E, enfim, consagrando a premissa de que o direito individual jamais pode se sobrepor ao coletivo, fica fácil entendermos os motivos que levaram o Estado a admitir o uso de algemas e, mais ainda, regrá-las de modo coroar a tese de que a força, monopólio do Estado, pode e deve ser usada, sempre que a defesa social assim o exigir.


Notas

[1] Algemas.

[2] Op. cit., pág. 220.

[3] Hoje, Polícia Militar.

[4] Hoje, Polícia Militar.

[5] O livro de registro de uso de algemas é obrigatório nas unidades da Polícia Civil (Portaria DGP-10/10).

[6] Manual Operacional do Policial Civil, pág. 195.

[7] Op. cit., p. 195.

[8] Op. cit., p. 196.

[9] Op. cit., p. 196.

[10] Prática Policial, Ed. Saraiva, 2ª edição, revista e ampliada, 1989, p. 81.

[11] “Recommendations given to police officers on how to prevent such deaths include releasing people from the prone position as soon as they are handcuffed, not sitting on them, and never tying handcuffs to a leg or ankle restraint (hog tying). Department of Justice. Positional asphyxia—sudden death. Rockville, MD: National Institute of Justice; 1995. (National Law Enforcement Technology Center Bulletin)”, in “Acute excited states and sudden death - Death after restraint can be avoided - https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1112961/”.

[12] Op. cit., pág. 221.

Sobre o autor
Marcelo de Lima Lessa

Formado em Direito pela Faculdade Católica de Direito de Santos (1994). Delegado de Polícia no Estado de São Paulo (1996), professor concursado de “Gerenciamento de Crises” da Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra”. Ex-Escrivão de Polícia. Articulista nas áreas jurídica e de segurança pública. Graduado em "Criminal Intelligence" pelo corpo de instrução do Miami Dade Police Department, em "High Risk Police Patrol", pela Tactical Explosive Entry School, em "Controle e Resolução de Conflitos e Situações de Crise com Reféns" pelo Ministério da Justiça, em "Gerenciamento de Crises e Negociação de Reféns" pelo grupo de respostas a incidentes críticos do FBI - Federal Bureau of Investigation e em "Gerenciamento de Crises", "Uso Diferenciado da Força", "Técnicas e Tecnologias Não Letais de Atuação Policial" e "Aspectos Jurídicos da Abordagem Policial", pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. Atuou no Grupo de Operações Especiais - GOE, no Grupo Especial de Resgate - GER e no Grupo Armado de Repressão a Roubos - GARRA, todos da Polícia Civil do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LESSA, Marcelo Lima. O uso de algemas pela Polícia: aspectos legais, técnicos e operacionais frente ao Decreto Federal n. 8.856/16. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5650, 20 dez. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68953. Acesso em: 22 dez. 2024.

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