1. Introdução
Tema pouco estudado, mas de suma importância para aqueles que operam o Direito, o emprego de algemas ganhou notoriedade em razão do seu recente disciplinamento em âmbito federal, pois, até então, tínhamos uma gama legislativa dispersa e limitada nesse particular.
Destarte, salvo algumas regras locais que vez ou outra tratavam do assunto, o contexto normativo geral era desprovido de um norte específico e, visando pacificar a questão, o Supremo Tribunal Federal, em 2008, editou a Súmula Vinculante n° 11, a qual impôs regras mais claras para o uso de algemas.
Com o escopo de aplacar dúvidas porventura ainda existentes, o legislador nacional, em setembro de 2016, decidiu em boa hora disciplinar o art. 199 da Lei de Execução Penal (que fazia alusão genérica ao disciplinamento desse equipamento de contenção), a fim de, finalmente, regrar, de maneira expressa, o emprego de algemas no Brasil.
Tal providência, desde há muito reclamada, serviu para harmonizar o precário sistema de interpretação outrora instalado, dando ao operador melhores ferramentas para atender o interesse público e ainda assim respeitar a integridade física dos presos.
Diante disso, analisemos, de maneira simples, direta e didática, os aspectos legais, técnicos e operacionais que permeiam o emprego de algemas no sistema jurídico pátrio.
2. Conceito
De início, é muito importante frisarmos que a algema não possui conceituação legal. Em razão disso, não se constitui em produto controlado pelo exército brasileiro, não sendo exigida, destarte, autorização para a sua compra, posse ou porte.
Em termos técnicos, as algemas são equipamentos providos de fechadura ou trava e que se prestam a controlar a força do preso e dificultar a fuga do mesmo. O meio de realização desse controle não é prescrito em lei, daí ser lícita a constrição que não apenas nos pulsos, mas também nos tornozelos ou dedos, existindo, conforme veremos adiante, algemas específicas para tanto. Destarte, se corretamente usadas, as algemas preservam a integridade do policial e do preso, cuja força reativa é minimizada.
Quanto à finalidade, assim, ela é tríplice: assegurar a segurança do preso; assegurar a segurança do policial e assegurar a segurança social, assim entendida como a condução do detido, sem incidentes, a presença da autoridade policial ou judiciária responsável.
Enfrentemos, agora, o trajeto traçado pela legislação até chegarmos ao atual Decreto Federal n° 8.856/16.
3. O Código de Processo Penal e a Força
O Código de Processo Penal, em seu art. 284, diz que não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso. Adiante, no art. 292, estabelece que se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência.
Esses princípios, durante muito tempo, serviram de espeque para o emprego de algemas nos casos de resistência ou tentativa de evasão do preso. E mais, esses chamados “meios necessários”, previstos no art. 292, englobavam quaisquer métodos de submissão física, dentre eles, as algemas.
Em razão disso, conquanto atualmente tenhamos uma legislação específica, esses dois dispositivos do Código de Processo Penal não perderam a eficácia e, combinados com o Decreto Federal n° 8.856/16, continuam a abranger as hipóteses de emprego de força, lembrando que as algemas, ao contrário da ação exclusivamente ativa, visam, de maneira indireta, controlar e anular a recalcitrância. Ou seja, é o uso da força para a neutralização da força do preso.
4. Código de Processo Penal Militar
O Código de Processo Penal Militar, ao contrário do comum, prevê expressamente o emprego de algemas e, em seu art. 234, diz que o ato deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão por parte do preso. Note-se que o fundamento é similar ao dos que norteiam o uso da força, daí não requer tal norma, pela obviedade, maiores anotações.
Em tempo, fala o dispositivo, ainda, sobre os dignitários (ministros, governadores, magistrados etc) sob os quais o emprego de algemas seria defeso. Entretanto, cremos que tal regramento não foi recepcionado pela nova ordem constitucional e, por força da regra da igualdade – e em havendo expressa necessidade fática –, as algemas podem ser usadas em quaisquer pessoas.
5. O Uso de Algemas no Tribunal do Júri
Tema relevante e primordial ao assunto, o emprego de algemas no Tribunal do Júri foi o mote que deu base à edição da Súmula Vinculante n° 11. Durante o julgamento do habeas corpus n° 91952, o Plenário anulou a condenação de um homem pelo fato dele ter sido mantido algemado durante o seu julgamento, daí a necessidade de um disciplinamento específico, o qual culminou na mencionada decisão.
Em 2008 veio a lume a Lei Federal n° 11.689, a qual alterou o art. 474 do Código de Processo Penal e passou a prever, em seu parágrafo 3º, que não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes.
Destarte, nos parece que a ação, nesses casos, fica ao alvedrio do magistrado, a quem, por lei, compete a polícia da audiência.
6. Situações específicas de aplicação nacional
Ainda sem entrarmos no mérito do novo Decreto Federal n° 8.856/16, faremos agora menção a determinados cenários onde o emprego de algemas é reclamado, dada a necessidade da medida.
6.1. Tráfego em águas territoriais
De acordo com o art. 10 da Lei Federal nº 9.537/97, o comandante, no exercício de suas funções e para garantia da segurança das pessoas, da embarcação e da carga transportada, pode ordenar a detenção de pessoas em camarotes ou alojamento, se necessário com algemas, quando imprescindível para a manutenção da integridade física de terceiros, embarcação ou carga.
Essa medida, por muitos ignorada, enverga guarida legal e, de certa forma, empresta aos comandantes das embarcações poderes que são próprios e comuns dos agentes da lei. E assim que possível, o detido deverá ser apresentado às autoridades policiais competentes, para os fins legais.
6.2. Segurança a bordo de aeronaves
Conquanto não faça expressa alusão a “algema”, o art. 168 da Lei Federal nº 7.565/86 (Código Brasileiro de Aeronáutica), estabelece que durante o período de tempo previsto no artigo 167 (apresentação para o voo e entrega do avião após a viagem), o Comandante exerce autoridade sobre as pessoas e coisas que se encontrem a bordo da aeronave e poderá: I - desembarcar qualquer delas, desde que comprometa a boa ordem, a disciplina, ponha em risco a segurança da aeronave ou das pessoas e bens a bordo e; II - tomar as medidas necessárias à proteção da aeronave e das pessoas ou bens transportados.
Nestes termos, a máxima “tomar as medidas necessárias” engloba toda e qualquer ação que tenha por fim resguardar a segurança do voo, incluindo-se aí a própria privação temporária da liberdade de alguém que, injustamente, esteja colocando a incolumidade geral em risco. E em havendo recalcitrância, o emprego de algemas será medida necessária e lícita, cuja base legal encontra-se no próprio Código de Aeronáutica.
Registre-se que, em sede de “habeas corpus” (1999.01.00.106790-1/RO), a 5ª Turma do TRF da 1ª Região já decidiu que “Ao comandante, no âmbito da aeronave que conduz, cabe o exercício do poder de polícia”, o que reforça a tese supra.
6.3. Transporte aéreo de presos em aeronaves civis
Não raro, a Polícia necessita transportar pessoas presas em aeronaves civis. Diante disso, a ANAC, através da Instrução de Aviação Civil n° 2504/09, itens 4 e 5, normatizou que quando conduzindo prisioneiros, o embarque, marcação de lugares e desembarque devem ser feitos de acordo com as instruções dos integrantes do DPF (Polícia Federal), os quais decidirão se desejam o embarque antecipado e desembarque prioritário, bem como, quais os assentos mais convenientes no avião. Caso o prisioneiro seja transportado com algemas esta situação deverá, se possível, ser encoberta. Tal se faz necessário, ao que nos parece, para a necessária preservação da imagem das pessoas presas, a fim de que não sejam elas submetidas a exposição pública na qualidade de custodiadas.
Em 25 de janeiro de 2018 a ANAC publicou a Resolução n° 461/18, a qual dispõe, dentre outros procedimentos, sobre o transporte de passageiros sob custódia a bordo de aeronaves civis. Por força dela, o operador aéreo deverá negar o embarque de passageiro custodiado em aeronaves civis se a equipe de escolta não for composta por, no mínimo, dois profissionais por passageiro custodiado. A equipe de escolta de passageiro custodiado deverá dispor de equipamentos de contenção[1], sendo vedado o porte de gás lacrimogêneo ou similar incapacitante. A equipe de escolta deverá garantir que o passageiro sob custódia não seja algemado a partes fixas da aeronave, salvo em situações em que o passageiro apresentar comportamento que o caracterize como passageiro indisciplinado, e esteja sempre acompanhado e mantido sob vigilância, inclusive durante o uso dos sanitários.
6.4. Exame de Corpo de Delito em pessoa algemada
Pode ocorrer que os agentes da Polícia, ao levarem um preso para o exame de corpo de delito, sejam instados pelos peritos-legistas sobre a retirada das algemas para a verificação corporal.
É o art. 2º da Resolução CFM n° 1635/02 estabelece que “é vedado ao médico realizar exames médicos-periciais em seres humanos contidos por algemas ou qualquer outro meio, exceto quando o periciando oferecer risco à integridade física do médico perito”.
Diante disso, é importante que o condutor tenha em mãos elementos que possam dar subsídio a existência ou não desse risco, para repassá-los ao perito (que também é policial, agente da autoridade, tal qual o condutor) a fim de que as algemas não sejam indiscriminadamente retiradas e a integridade de todos, dos policiais e do periciando, seja preservada.
Caso o preso seja de alta periculosidade ou tenha tido um comportamento motivador do emprego da constrição por algemas, os agentes devem deixar isso claro ao perito e, se ainda assim houver insistência por parte deste para a retirada do equipamento, a autoridade policial deverá ser contatada para intervir e sanar a questão, com a adoção de providências legais inclusive, afinal, nestes casos, o que deve prevalecer é o interesse público de preservação geral da ordem e não a vontade unilateral de um servidor que, legalmente, não detém ascendência hierárquica sobre os condutores.
Em tempo, é importante destacar que o Manual Operacional do Policial Civil diz que: “o preso somente poderá ser desalgemado mediante ordem da autoridade competente, que deverá ser previamente informada a respeito da periculosidade do suspeito”[2].
6.5. Uso de algemas em adolescentes
O emprego de algemas em adolescentes sempre foi um assunto polêmico, pois, por vezes, surgem vozes que defendem a sua proibição. Em termos legais, por outro lado, inexistem óbices a isso, conforme adiante faremos ver.
A Lei Federal n° 8.069/90 estatui em seu art. 178 que “o adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional não poderá ser conduzido ou transportado em compartimento fechado de veículo policial, em condições atentatórias à sua dignidade, ou que impliquem risco à sua integridade física ou mental, sob pena de responsabilidade”.
Assim, fica patente que o adolescente não pode ser transportado apenas sob três circunstâncias, sendo certo que, em nenhuma delas, existe menção sobre a proibição do uso de algemas.
Nesse passo, desde que cumpridas as regras previstas em lei (resistência, fundado receio de fuga ou perigo a integridade própria ou alheia), o emprego de algemas em adolescentes é lícito, já que a ação, quando executada com as técnicas operacionais adequadas, não pode ser confundida com um atentado conciso a dignidade do menor.
Em acórdão de 06 de junho de 2005, o Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de Goiânia entendeu que, com relação ao autor de ato infracional, “a utilização de algemas é autorizada nas hipóteses em que se configure como meio necessário de contenção e segurança, pelo que inadmissível a invocação de arbitrariedade, se não demonstrada pela defesa situação indicativa da sua não ocorrência”.
Em São Paulo, a Vara Especial da Infância e da Juventude, através da Portaria n° 004/2007, disciplinou que o emprego de algemas na condução, circulação ou permanência de adolescentes nas áreas comuns do fórum, para quaisquer fins ou destinação, dependerá de prévia determinação judicial comunicada com antecedência a serviço de vigilância e fiscalização judiciária. E no interior das salas de audiência e gabinetes de magistrados, promotores de justiça e defensores públicos, a eles competirá decidir a respeito. Ou seja, se tal ação fosse ilegítima como um todo, o Poder Judiciário jamais editaria um ato alusivo ao tema “algemas”, mas, de maneira cautelar, o fez para que inexistissem dúvidas quanto a necessidade da constrição em determinados casos, mormente os que envolvam adolescentes perigosos.
No que tange as crianças, estas não são legalmente apreendidas, pois a lei reserva a elas as chamadas “medidas de proteção”. Em São Paulo, a condução das mesmas as Unidades Policiais é inclusive vedada pela Resolução SSP-72/90, entretanto, em situações emergenciais e em não havendo outro modo de conter um pré-adolescente infrator em estado de descontrole físico e emocional, não vemos outra saída que não a constrição excepcional. Nesse caso entendemos que não há o que se falar em abuso de autoridade, crime doloso, afinal só o comete, sem estar amparado no interesse da sociedade, aquele que age com a consciência de estar exorbitando poder, ou seja, deve o agente estar imbuído no propósito de perseguição, vingança, capricho ou maldade, o que não seria, sequer em tese, o caso.
7. A influência da legislação paulista quanto ao uso de algemas
Se analisarmos o contexto das atuais normas federais, podemos verificar que o espírito dos novos mandamentos encontram certa guarida nas regras vigentes em São Paulo desde os anos 1920.
Historicamente, o art. 419 do Decreto Estadual n° 4.405-A, de 17 de abril de 1928 (Regulamento Policial do Estado de São Paulo), dizia que nenhum preso poderia ser conduzido com ferros, algemas ou cordas, salvo o caso extremo de segurança, que deveria ser justificado pelo condutor e, quando não justifique, além das penas em que incorrer, seria multado na quantia de 10$000 a 50$000 pela autoridade a quem for apresentado o mesmo preso.
Em 30 de outubro de 1950, foi editado o Decreto Estadual nº 19.903, o qual, revogando o art. 419 do Regulamento Policial, passou a estabelecer que o emprego de algemas, pela Polícia Paulista (Polícia Civil, Força Pública[3] e Guarda Civil[4]), seria feito nas seguintes situações: I – Na condução à presença da autoridade dos delinquentes detidos em flagrante, em virtude de pronúncia ou nos demais casos previstos em lei, desde que ofereçam resistência ou tentem a fuga; II – Na condução à presença da autoridade dos ébrios, viciosos e turbulentos, recolhidos na prática de infração e que devam ser postos em custódia, nos termos do Regulamento Policial do Estado, desde que o seu estado extremo de exaltação torne indispensável o emprego de força e III – No transporte, de uma para outra dependência, ou remoção, de um para outro presídio dos presos que, pela sua conhecida periculosidade, possam tentar a fuga, durante a diligência, ou a tenham tentado, ou oferecido resistência quando de sua detenção.
Foi nesse tempo, inclusive, que surgiu a obrigação de registrar em livro[5] o uso de algemas, com menção do motivo que deu azo ao emprego desse meio de contenção, fato este que influenciaria os próprios termos da Súmula Vinculante n° 11, cujo espírito, a exemplo do novel Decreto Federal n° 8.856/16, é similar ao do Decreto Estadual n° 19.903, o qual se encontra em pleno vigor no Estado de São Paulo.
A título de complementação, no âmbito da Secretaria da Segurança Pública paulista, diz ainda o art. 3º, da Resolução SSP41/83, que “o emprego de algemas far-se-á somente nos casos expressamente previstos no Decreto 19.903, de 30 de outubro de 1959, observadas as cautelas e as disposições regulamentares ali mencionadas”.
Ademais, em razão de estar permanentemente em serviço, o policial civil paulista deve sempre portar arma e algemas (art. 2º da Portaria DGP-28/94), sendo atribuição comum a qualquer carreira policial civil portá-la (art. 1º, “a”, da Portaria DGP-3/12).
E por fim, preceitua a Lei Complementar paulista n° 1.282/16, que o Estado fornecerá aos policiais civis algema para o efetivo exercício de suas funções, a qual, segundo o art. 7º do Decreto Estadual n° 62/17, deverá ser imediatamente restituída em caso de exoneração, perda do cargo, aposentadoria do policial civil ou medida assecuratória imposta.