O objeto deste estudo é trazer conceitos e apontar aspectos relevantes atinentes à negociação sobre o processo, notadamente sobre sua existência, validade e eficácia, tendo em conta a inédita ampliação de escopo dos negócios jurídicos processuais no contexto inaugurado pelo novel Digesto Processual Civil.
CONCEITO
Negócio processual é “o fato jurídico voluntário, em cujo suporte fático se reconhece ao sujeito o poder de regular, dentro dos limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais ou alterar o procedimento”[1].
Como bem destaca a doutrina, a existência de negócios jurídicos processuais não é novidade do CPC/2015, já que mesmo no antigo CPC/1973 já havia diversas previsões de negócios jurídicos processuais típicos.
Como exemplos de negócios jurídicos processuais típicos, agora previstos no CPC/2015, citam-se os seguintes[2]:
- Eleição de foro (art. 63 do CPC)
- Não alegação da incompetência relativa (art. 65 do CPC)
- Calendário processual (art. 191, §§1º e 2º)
- Renúncia ao prazo (art. 225 do CPC)
- Organização consensual do processo (art. 357, §2º, do CPC)
- Adiamento negociado da audiência (art. 362, I, do CPC)
- Convenção sobre ônus da prova (art. 373, §§3º e 4º, do CPC)
- Escolha consensual do perito (art. 471 do CPC)
- Escolha convencional do arbitramento como técnica de liquidação (art. 509, I, do CPC)
- Desistência do recurso (art. 999 do CPC)
A novidade não reside, portanto, na criação do fenômeno jurídico já presente no sistema processual, mas em sua ampliação e generalização, inclusive com a previsão da cláusula geral de negociação sobre o processo (art. 190 do CPC) e com a consequente possibilidade de celebração de negócios jurídicos processuais ATÍPICOS.
Pela sua importância, vale a leitura do art. 190 do CPC:
Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.
A título também exemplificativo, cita a doutrina[3] alguns negócios jurídicos processuais atípicos, que podem ser celebrados com base na cláusula geral em destaque:
- Acordo de instância única
- Acordo para criação de litisconsórcio necessário
- Acordo para tornar um bem penhorável impenhorável
- Acordo para tornar uma prova ilícita
- Acordo das partes para ampliar ou reduzir os prazos
- Acordo para dispensar assistente técnico
- Acordo para autorizar a execução provisória ou para proibir a execução provisória
- Legitimação extraordinária convencionada.
Ainda de início, é preciso atenção para o fato de que há negócios processuais que se referem ao objeto litigioso do processo – é a conciliação, a mediação, enfim, a autocomposição. Tais ajustes, embora também negócios processuais em uma acepção ampla, porque repercutem sobre o processo (que vai ser extinto ou suspenso, por exemplo), não são o tema aqui versado.
O assunto central, nessas linhas, SÃO OS NEGÓCIOS PROCESSUAIS SOBRE O PROCESSO[4]-[5] (e não sobre o seu objeto).
MOMENTO DA CELEBRAÇÃO
Nos termos do art. 190, caput, do Novo CPC, o negócio jurídico processual pode ser celebrado antes ou durante o processo.
Ensina a doutrina que:
“No tocante à celebração em momento anterior ao processo, concordo com a doutrina que defende uma aproximação do negócio jurídico processual (ora analisado) com a arbitragem, de forma que a convenção possa ser elaborada por meio de clausula contratual ou de instrumento em separado, celebrado concomitantemente ou posteriormente ao contrato principal.
Quando celebrado durante o processo, as partes podem fazer o acordo extrajudicialmente, apenas protocolando-o em juízo, como também podem celebrar o negócio jurídico na presença do juiz, em ato oral, como na audiência de instrução e julgamento, e até mesmo na presença do conciliador ou mediador na audiência prévia prevista pelo art. 334 do Novo CPC [...]”[6].
EXISTÊNCIA, VALIDADE E EFICÁCIA
Tratando-se o negócio jurídico processual previsto pelo art. 190 do CPC de espécie de negócio jurídico, não restam dúvidas de que sua validade depende da verificação dos requisitos previstos no art. 104 do Código Civil, na linha do que preconiza o Enunciado nº 403 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC):
CCb, art. 104. A validade do negócio jurídico requer:
I - agente capaz;
II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;
III - forma prescrita ou não defesa em lei.
Enunciado FPPC nº 403. A validade do negócio jurídico processual, requer agente capaz, objeto lícito, possível, determinado, ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei.
Analisando-se a norma, nota-se que a cada ELEMENTO (agente, objeto e forma), como é consabido, tal dispositivo atrela os respectivos REQUISITOS DE VALIDADE. E, nesse contexto, destacamos os pontos mais sensíveis tratados até então pela doutrina.
Se quanto aos SUJEITOS, não há dificuldades ao menos em sua identificação, já que o art. 190 do CPC fala em partes[7], a capacidade daqueles que celebram o negócio jurídico é tema que gera divergência na doutrina.
Além da previsão do direito material, está também expressamente estampada no art. 190, caput, do Novo CPC a exigência de que as partes sejam plenamente capazes. E a dissonância surge exatamente porque o Código não esclarece a que capacidade se refere.
Expondo a divergência, Daniel Assumpção consigna que:
“Há corrente doutrinária que defende tratar-se de capacidade material, de forma que os relativamente ou absolutamente incapazes, mesmo que assistidos ou representados, não podem celebrar negócio jurídico (Enunciado 36 da ENFAM: ‘Somente partes absolutamente capazes podem celebrar convenção pré-processual atípica’). Outra corrente doutrinária entende que a capacidade exigida é tão somente processual, de forma que, havendo representação processual, os incapazes poderão celebrar o negócio jurídico.
Não vejo como interpretar a capacidade exigida pelo art. 190, caput, do Novo CPC como sendo exclusivamente a processual, porque nesse caso a exigência formal simplesmente cairia no vazio. A parte precisa ter capacidade de estar em juízo, de forma que mesmo aquelas que são incapazes no plano material ganham capacidade processual ao estarem devidamente representadas. Se a capacidade for processual, todo e qualquer sujeito processual poderá celebrar o negócio jurídico ora analisado, já que todos devem ter capacidade de estar em juízo no caso concreto.
Registre-se que a representação não se confunde com a presentação, de forma que as pessoas jurídicas e formais, devidamente presentadas no processo, têm capacidade material e processual, e nesse sentido é admitido o negócio jurídico processual por elas celebrado. Inclusive quando a parte for Fazenda Pública (Enunciado 256[8] do FPPC) e o Ministério Público (Enunciado 253[9] do FCCP)”[10].
Ainda quanto aos sujeitos, Fredie Didier aponta que o parágrafo único do art. 190 do CPC prevê uma hipótese específica de incapacidade processual negocial: a incapacidade pela situação de vulnerabilidade.
Segundo o autor, há vulnerabilidade quando houver desequilíbrio entre os sujeitos na relação jurídica, fazendo com que a negociação não se aperfeiçoe em igualdade de condições[11].
E a demonstração de que a vulnerabilidade atingiu a formação do negócio jurídico processual, desequilibrando-o, deve ser feita no caso concreto, até porque que o parágrafo único do art. 190 do CPC estabelece que o órgão jurisdicional somente reputará nulo o negócio quando se constatar a “manifesta situação de vulnerabilidade”[12].
De outro vértice, a FORMA do negócio jurídico é outro tema acerca do qual não se tem consenso. Daniel Assumpção, por exemplo, assenta que:
“(...) há doutrinadores que defendem a possibilidade de o negócio ser celebrado oralmente, enquanto outros exigem a forma escrita (Enunciado 39 da ENFAM: ‘Não é válida convenção pré-processual oral’). Entendo ser preferível exigir a forma escrita em razão da previsibilidade e da segurança jurídica que devem nortear o negócio jurídico processual ora analisado”[13].
Já Didier sustenta que a forma do negócio jurídico processual atípico é LIVRE[14], havendo, porém, casos excepcionais em que a lei exige forma escrita.
No que toca ao OBJETO, por seu turno, tal elemento é o ponto mais sensível da dogmática da negociação processual atípica, diante da necessidade de criação de parâmetros seguros para o exame da sua licitude. Até mesmo por isso não se pretende aqui exaurir o tema, mas despertar a atenção para o debate.
De fato, o objeto é determinado pelo próprio art. 190, caput, do CPC, sendo lícito o negócio jurídico que versar, com todas as limitações impostas pela lei, sobre:
a) o procedimento; e
b) as situações jurídicas processuais.
Sobre o tema, tem-se o Enunciado FPPC nº 257:
Enunciado FPPC nº 257. O art. 190 autoriza que as partes tanto estipulem mudanças do procedimento quanto convencionem sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais.
Da mesma forma, o art. 190, caput, do Novo CPC prevê que o negócio jurídico processual só é admitido em processos que versem sobre direitos que admitam a autocomposição.
A respeito, assinala-se que:
“Conforme entendimento doutrinário uníssono, o legislador foi extremamente feliz em não confundir direito indisponível com direito que não admita autocomposição, porque mesmo nos processos que versem sobre direito indisponível, é cabível a autocomposição”[15].
E ainda sobre o ponto acrescenta-se o seguinte:
“Embora o negócio processual ora estudado não se refira ao objeto litigioso do processo, é certo que a negociação sobre as situações jurídicas processuais ou sobre a estrutura do procedimento pode acabar afetando a solução do mérito da causa. Um negócio sobre prova, por exemplo, pode dificultar as chances de êxito de uma das partes. Esse reflexo que o negócio processual possa vir a causar na resolução do direito litigioso justifica a proibição de sua celebração em processos cujo objeto não admita autocomposição.
Mas é preciso que se deixe claro um ponto: o direito em litígio pode ser indisponível, mas admitir solução por autocomposição. É o que acontece com os direitos coletivos e o direito aos alimentos. Assim, ‘a indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração do negócio jurídico processual’ (Enunciado n. 135 do Fórum Permanente de Processualistas Civis). Por isso, o texto legal fala em ‘direito que admita autocomposição’ e não ‘direito indisponível’”[16].
Afora isso, tudo quanto se sabe sobre a licitude do objeto do negócio jurídico privado aplica-se ao negócio processual, segundo destaca a doutrina[17]. Ex.: é nulo o negócio processual em que uma parte aceite ser torturada no depoimento pessoal já que o objeto do negócio é a prática de um crime.
Observados os pontos sensíveis no que toca aos requisitos de validade do negócio jurídico processual, deve-se ter atenção ao fato de que, a respeito da sua invalidade, o Enunciado 16 do FPCC sinaliza que “o controle dos requisitos objetivos e subjetivos de validade da convenção de procedimento deve ser conjugado com a regra segundo a qual não há invalidade do ato sem prejuízo”, extraída da teoria geral das nulidades processuais.
Além dos casos de defeito processual e do que fora acima exposto, o Enunciado FPPC nº 132 destaca que os vícios da vontade e os vícios sociais, disciplinados pelo direito material, podem também dar ensejo à invalidação do negócio jurídico processual atípico:
Enunciado FPPC nº 132. Além dos defeitos processuais, os vícios da vontade e os vícios sociais podem dar ensejo à invalidação dos negócios jurídicos atípicos do art. 190.
Por fim, resta outra hipótese de controle de validade, a ser exercido pelo juiz, que encontra previsão expressa no parágrafo único do art. 190 do CPC: a inserção abusiva em contrato de adesão.
Novamente, relembre-se o teor da norma em comento:
Art. 190, parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.
É preciso observar que a mera inserção em contrato de adesão, a princípio, não importaria invalidade, mas tão somente aquela que se mostrasse ABUSIVA.
E sobre a abusividade a doutrina aponta, uma vez mais, que deve ser constatada à luz do caso concreto:
“Entendo, portanto, que caberá ao juiz a análise no caso concreto a respeito de eventual – e não obrigatória – nulidade do negócio jurídico processual inserido em contrato de adesão. Um bom indício de que o negócio jurídico é válido é a previsão de regras isonômicas, que tratem o aderente e o responsável pela elaboração do contrato da mesma forma”[18].
Encerrando os apontamentos sobre a existência, validade e eficácia, é preciso anotar que, embora existente e válido, há negócios processuais que dependem de homologação judicial para produzirem efeitos, como a desistência da demanda (art. 200, parágrafo único, do CPC) e a organização consensual do processo (art. 357, §2º, do CPC).
Conforme bem observa a doutrina, “a necessidade de homologação de um negócio processual deve vir prevista em lei. Caso contrário, independem de homologação judicial para produzirem efeitos”[19]:
Enunciado FPPC nº 133. Salvo nos casos expressamente previstos em lei, os negócios processuais do art. 190 NÃO dependem de homologação judicial.
Quando isso acontece, a homologação judicial é uma CONDIÇÃO LEGAL DE EFICÁCIA do negócio jurídico processual:
Enunciado FPPC nº 260. A homologação, pelo juiz, da convenção processual, quando prevista em lei, corresponde a uma condição de eficácia do negócio.