Trata-se o Direito achado na rua de um “projeto de enunciação e práxis de uma nova concepção de Direito” (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 84). Em apressadas palavras, é um movimento ideológico que, rompendo com a ainda presente estrutura normativista-burocrática, tem como fim redesenhar a noção de Direito, confundir e fundir seu conceito aos de liberdade e emancipação.
Sob a orientação do nobre professor José Geraldo de Sousa Jr., o citado projeto ideológico nasce, no ano de 1986, no seio da Universidade de Brasília - UnB, situada na capital federal do país, como um compilado do outrora movimento Nova Escola Jurídica Brasileira - NAIR, agigantada esta na pessoa do professor Roberto Lyra Filho.
A princípio, o Direito achado na rua foi concebido como um curso à distância engendrado pelo Núcleo de Estudo para a Paz e Direitos Humanos - NEP e pelo Centro de Educação à distância - CEAD, ambos pertencentes à UnB, tornando-se posteriormente, com o vertiginoso ganho de importância nesta e em outras instituições de ensino do país, um projeto de prática jurídica sob o viés, especialmente, de Assessoria Jurídica Popular Universitária - projeto este que objetiva auxiliar grupos sociais vulneráveis, oferecendo assistência e orientação jurídica, contribuindo assim para cientificação desses grupos como atores no cenário político e jurídico do país.
O Direito Achado na Rua, em harmonia com os ideais consagrados na NAIR, tem o propósito, assim como quem lhe inspirou, de conceber o direito como uma ciência social cíclica que, de tempos em tempos, sofre um processo histórico de transformação dialética, com o perdão da repetição, libertado pelas e libertando as massas sociais dominadas, marginalizadas e vexadas. Ensina, nesse sentido, que no cenário social-político-jurídico haverá sempre um breve momento de estabilidade que será, também a todo momento, quebrado, como dito anteriormente, pela tomada de consciência dessa massa oprimida como sujeitos detentores de direitos.
Busca esse projeto, desta forma, calcado em preceitos epistemológicos e ontológicos[1], dignificar a política do Direito, dar suporte a movimentos que intentam o progresso e a libertação e apoiar o socialismo democrático. (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 72)
Em função disso, guarda semelhança com outros movimentos - pluralismo jurídico, direito insurgente, jusnaturalismo e positivismo jurídico. Todavia, não se confunde com eles, mas, sim, supera-os, haja vista pretender, precipuamente, justificar a validade das normas no humanismo dialético. (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 73)
Curioso mencionar que o substantivo “rua”[2] é astutamente utilizado como uma metáfora, inspirada no poema de Karl Marx, assinalando que o direito floresce e se realiza na rua, impulsionado pelos dominados, libertando-os e conferindo-lhes o seu papel como sujeitos de direito.
De maneira a ilustrar, é assertivo o movimento se utilizar desse substantivo, haja vista que é na rua que os sujeitos, imbuídos de antagonismos e contradições, que são inerentes a todo ser humano, desembocam em um inevitável conflito e, a fim de possibilitar sua convivência mútua, buscam um equilíbrio entre os seus quereres.
Esse é o ponto de partida do projeto. Ele compreende a dialeticidade das relações humanas e, tão somente, contribui para despertá-las. Como? Explique-se: empenha-se, promovendo espaços de desenvolvimento do Direito, definindo o papel do cidadão como um sujeito coletivo capaz transformar a sociedade, obtendo como resultado final uma estrutura social de Direito legitimada no socialismo democrático, ultrapassando, dessa forma, os limites acadêmicos em que inicialmente fora constituído. (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 82-83)
Essas manifestações se dão, especialmente, como mencionado, através do projeto de Assessoria Jurídica Popular, em que a mobilização social é provocada a partir da conscientização da população como cidadãos integrantes do sistema jurídico e, portanto, capazes de transformar a sociedade e reivindicar seus direitos.
Nesse diapasão, pode-se concluir que esse movimento ideológico vem promovendo transformações importantes na sociedade, na medida em que através de seus projetos de extensão, conscientizam a população de seus direitos e de seu papel modificador.
O projeto de extensão “Direitos humanos e Gênero: Promotoras Legais Populares”, desde 2005, na Faculdade de Direito da UnB, vem promovendo orientação jurídica para as mulheres, deixando-as cientes de sua igualdade perante os homens. Consequentemente, temos hoje mulheres fortes e corajosas, que buscam cada vez mais seu lugar no mercado de trabalho e não se permitem serem violentadas por seus maridos.
Não só este, tem-se ainda o projeto promovido na Universidade Federal da Paraíba, compreendido, em síntese, na ideia dos “Balcões de Direito”, com o objetivo de difundir o acesso à justiça. Tal projeto acarretou em cidadãos mais ativos, atuantes e preocupados em modificar e melhorar a realidade de suas comunidades.
Como se percebe, esse projeto, desde a sua criação, vem legando para as gerações futuras um número crescente de cidadãos conscientes e atuantes. Além disso, na seara acadêmica, tem-se a elaboração de dissertações e teses[3], desenvolvidas por juristas preocupados em garantir a todos, de forma igualitária, o exercício de seus direitos. O projeto despertou nos novos bacharelandos em Direito uma sensibilidade às opressões vividas pelas camadas apartadas da sociedade - negros, pobres, homossexuais, mulheres, etc.
Assim, investindo em uma educação interdisciplinar e intercultural, o projeto vem formando juristas humanos, com um olhar crítico para o direito e para a sociedade. Ao harmonizar isto com as regras jurídicas e com as lutas sociais, obtemos como resultado uma sociedade mais justa, mais plural. (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 162 - 163)
Frise-se que, em meio a essas vitórias, o projeto enfrenta desafios para se enraizar - formular uma estrutura social, conformando a pluralidade das camadas sociais; Superar a cultura normativa-burocrática e inserir os cidadãos como motores de transformação social; Quebrar essa falta de empatia entre o cidadão e o direito como instituição, conscientizando ele de que faz parte desse sistema; O reconhecimento dos movimentos sociais como um processo saudável e necessário para a renovação da sociedade.
Sendo o projeto uma linha de pensamento não hegemônico, sua tarefa para superar tais desafios é árdua. No entanto, escolta-se em pilares tão lógicos e coesos com a realidade social que, cada vez mais, vem ganhando espaço no país e no mundo - Outros países usam o projeto como base para o estudo introdutório do direito.
Seus fundamentos não são novos ou inventados, resultaram, sim, da observação da dinâmica social ao longo de toda a história da humanidade. O processo, como dito, é cíclico e inerente às relações humanas.
Portanto, ao constatar uma realidade que se provou durante tantas vezes na história humana, o Direito Achado na Rua, emancipa-se de uma estrutura jurídica estagnada em normatividade positivada e burocrática e se compromete com a população, fundindo o conceito de direito à ideia de um processo dialético de transformação social e possibilitando o acesso à justiça para todos.
Isso é indiscutivelmente benéfico à sociedade. Os resultados estão na rua: uma população engajada, que se organiza e reivindica pelo fim de governos corruptos, pelo fim dessa violência motivada pela intolerância. A população quer igualdade de direitos, quer ser acolhida pelo que ela é em sua natureza: plural.
REFERÊNCIAS
Direito achado na rua. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Direito_Achado_na_Rua. Acesso em 28 de março de 2018.
SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. O direito achado na rua: concepção e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. 268 p, 21 cm.
Notas
[1] SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. O direito achado na rua: concepção e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 75.
[2]SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. O direito achado na rua: concepção e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 85.
[3] SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. O direito achado na rua: concepção e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 114.