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A crise da lei: da legalidade como vinculação positiva à lei ao princípio da juridicidade administrativa

O Pensamento de Gustavo Binenbojm

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Agenda 22/09/2018 às 13:28

Reflexões sobre o capítulo IV do livro 'Teoria do Direito Administrativo' - A crise da lei: da legalidade como vinculação positiva à lei ao princípio da juridicidade administrativa, de autoria de Gustavo Binenbojm.

1. O desprestígio do legislador e a crise da lei formal: um fenômeno universal

Gustavo Binenbojm  destaca que a crise da lei é hoje um fenômeno tão universal quanto a própria proclamação do princípio da legalidade como o instrumento regulativo da vida social nas democracias constitucionais contemporâneas.

Ressalta ainda que é um truísmo afirmar-se que a lei formal, no seu sentido clássico, está em crise. A assertiva é especialmente recorrente na literatura do direito público contemporâneo. Inicialmente o autor lembra do contexto histórico do aparecimento das leis, afirmando que a lei no pensamento liberal iluminista era um produto da razão, emanada dos representantes da sociedade e capaz de regular todo e qualquer assunto relevante, constituindo-se na mais importante fonte do direito, notadamente na Europa, onde o constitucionalismo só tomou força após a Segunda Grande Guerra.

No entanto, como o passar dos anos percebeu-se que a lei não foi capaz de atender às demandas de que ela própria poderia tratar no Estado liberal, sendo, ainda mais, inábil a responder aos anseios do Estado providência. Em um esforço didático, o autor enumera cinco razões básicas da crise da lei em geral e da legalidade administrativa, em particular.

A primeiras destas razões, segundo o autor, é a proliferação ou inflação legislativa. O excesso de leis é uma realidade em todas as nações civilizadas, notadamente nos países de tradição romano-germânica. O mito positivista de completude do ordenamento jurídico, aliado aumento significativo das funções do Estado social, inspirou os parlamentares a tratarem de qualquer assunto, sendo corolário deste movimento a noção de que a lei seria apta a resolver todos os problemas sociais. Banalizou-se a lei o que fez com que se esvaziasse o sentimento de respeito que se lhe nutriu no período iluminista. Com a inflação legislativa, a norma do parlamento, inevitavelmente, “perdeu a sua majestade”.

Uma segunda razão, para o autor, foi a constatação histórica de que esta pode, muito além de veicular a injustiça, ser fundamento para a barbárie. É irrefutável a constatação de que os critérios formais de validade do direito acabaram por legitimar as maiores iniqüidades do século XX. De fato, quando se pensava ter-se alcançado o mais elevado grau de desenvolvimento da civilização ocidental, a lei, expressão da vontade geral cujo conteúdo independe de maiores questionamentos, foi capaz de legitimar as práticas nazi-fascistas, que criaram talvez a maior cicatriz da história do século passado. A constatação de que a lei é insuficiente para trazer justiça e liberdade fez com que ela perdesse a aura de superioridade moral que havia incorporado com a Revolução Francesa.

Na seqüência, o autor frisa que uma terceira razão que contribuiu significativamente para o esvaziamento da legalidade é a de que a lei deixou de ser a principal e mais importante forma de manifestação da vontade geral do povo. O constitucionalismo é o grande vitorioso diante do colapso do legalismo. Com isso, a Constituição, enquanto sistema de princípios, ganha destaque como norma jurídica, irradiando seus efeitos por todo o ordenamento jurídico, que apenas poderá ser  compreendido a partir da própria norma constitucional, passando-se a falar numa constitucionalização do direito. Neste sentido, a lei é substituída pela Constituição como a principal fonte desta disciplina jurídica.

Para o autor, a Constituição se presta (i) não só pela norma direta e imediatamente habilitadora de competências administrativas, como também (ii) serve de critério imediato de decisão administrativa.

Em uma palavra o autor explica: a atuação administrativa só será válida, legítima e justificável quando condizente, muito além da simples legalidade, com o princípio de regras e princípios delineados na Constituição, de maneira geral, e com os direitos fundamentais em particular.

Uma quarta razão para a crise da lei formal decorre do fato de assistir-se, atualmente, à criação de uma série de atos normativos infraconstitucionais capazes de, por si próprios, servirem de fundamento à atuação administrativa. Desta forma, assim como a Constituição tomou o espaço da lei, outros atos normativos, diversos da lei, servem de fundamento para a administração pública. Neste sentido, a própria Constituição: (i) cria amplo espaço normativo primário para o Poder Executivo, que poderá legislar através de medidas provisórias ou leis delegadas (arts. 62 e 68); (ii) estabelece campo regulamentar autônomo no que se refere à organização e funcionamento da Administração Pública quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos (art. 84, VI, a).

O autor ensina que é absolutamente impossível (e indesejável) que todas as múltiplas atribuições e necessidade de decisões administrativas regulatórias pudessem estar previamente determinadas pela lei.

Em relação à quinta razão apontada pelo autor, para a crise da lei e da legalidade liberal, é de se verificar que,  quando o Executivo não tem a atribuição normativa de que necessita, não resta ao Legislativo muito espaço de atuação independente. Com efeito, é uma realidade dos Estados de raiz ocidental o fato de que, em larga medida, o Executivo controla o processo legislativo, seja por métodos menos nobres, tanto no sistema parlamentarista, como no presidencialista.

O autor ressalta que, na realidade brasileira, já é possível dar exemplos de tal controle (do Poder Executivo em relação ao Poder Legislativo), que se dá de três modos:

(i) através de reservas de iniciativa legislativa de matérias relevantes, com vedação, inclusive de emendas parlamentares que impliquem aumento de despesas (art. 61, §1º, e aro caso de medida provisóriat. 63 CF);

(ii) a possibilidade de trancamento da pauta de deliberações do Congresso Nacional por ato da Chefia do Executivo (art. 64, §§1º e 2º, CF), o que pode ocorrer, ainda, automaticamente, no caso de medida provisória não apreciada pelo Poder Legislativo em até quarenta e cinco dias de sua publicação (art. 62, §6º, CF, inserio na EC nº 32/2001); e

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(iii) através da formação de sólidas bases parlamentares, capazes de aprovar qualquer projeto de iniciativa governamental.


2. Os caminhos da legalidade administrativa: os sentidos da vinculação da Administração à juridicidade

O autor inicia sua exposição ressaltando que a primeira noção de legalidade administrativa surgiu de uma analogia entre o ato administrativo e a sentença judicial. Neste sentido, o ato administrativo se constituiria em uma mera particularização dos mandamentos genéricos e abstratos veiculados na lei, em sua atuação concreta.

E assim foi que se forjou, segundo o autor, o conceito-chave de ato administrativo como declaração concreta de vontade com a qual a Administração Pública particulariza e aplica uma previsão normativa geral.

Conforme notado pela doutrina alemã (Stahl e Meyer-Anschütz), as diferentes funções e formas de investidura de membro e cada Poder justificam tipos distintos de vinculação à legalidade. Assim, enquanto a função básica do juiz era a de aplicar a lei a caso concreto submetido ao seu conhecimento, a Administração tinha papel bem mais amplo e variado, de realizar os diversos fins públicos materiais, dentro dos limites traçados pela lei. De outra banda, a atuação administrativa, por sua natural ligação (direta ou indireta) aos agentes políticos eleitos, estaria legitimada a um maior âmbito de liberdade decisória na realização do interesse público, enquanto ao Judiciário falecia esse lastro de legitimidade política.

Desta forma, para o autor, enquanto ao juiz só seria dado agir por aplicação direta da lei, ao administrador poderia fazer não apenas aquilo que a lei expressamente autorizasse, senão também aquilo que a lei não proibisse.

O autor nos sugere refletir sobre o seguinte aspecto: Se se levar em conta que (i) o regramento legal dos atos administrativos sempre foi a exceção, e não a regra; e que (ii) nos espaços de liberdade deixados pela lei a atuação da Administração era tida por insuscetível de qualquer controle jurisdicional, é possível concluir que a legalidade administrativa, entendida como sujeição da Administração à lei, operava somente em uma franja estreitíssima de sua atividade, uma vez que a porção mais substancial desta última restava completamente à margem da legalidade e da correspondente fiscalização jurisdicional.

O autor recorda as lições de Kelsen, quando este tratou do positivismo normativo. Segundo o autor, em sua conhecida formulação sobre a estrutura do ordenamento jurídico, Kelsen concebe-o como um sistema escalonado e hierarquizado, em que a norma de escalão inferior tem seu fundamento de validade na norma de escalão superior. Situada no vértice da pirâmide, Kelsen concebe uma norma fundamental, que não é posta, mas pressuposta.

Para o autor, a Constituição estabelece o processo pelo qual as leis serão produzidas e, eventualmente, o conteúdo que haverão de ostentar. O mesmo fenômeno ocorre entre as leis e as sentenças judiciais ou os atos administrativos, numa relação de determinação ou vinculação. Essa relação de determinação nunca é completa, pois a norma de escalão superior não pode vincular em todas as direções e sob todos os aspectos o ato através do qual é aplicada, seja ele uma lei, um ato administrativo ou uma decisão judicial.

Existe, para o autor, uma relativa e inevitável indeterminação permeando os sucessivos atos de realização do direito. E tal indeterminação pode decorrer de uma deliberação intencional do órgão que editou a norma a aplicar ou de uma circunstância não-intencional, como a plurivocidade de palavras e expressões normativas, que oferecem ao intérprete várias significações possíveis.

Deste modo, na medida em que a Administração Pública está inserida em uma destas etapas da produção jurídica, sua atuação não se pode justificar senão como uma concretização paulatina e gradual de normas jurídicas precedentes. E isso ocorre tanto quando a Administração edita regulamentos, com fundamento na lei ou diretamente na Constituição, como quando desce aos últimos graus de concretude, praticando atos administrativos singulares ou atos de mera execução material.

O autor ensina que afirmou-se, a partir daí, a doutrina da positive Bindung – vinculação positiva à lei -, consubstanciada no art. 18 da Constituição austríaca de 1920.

Para o Estado, esta idéia mostra-se, segundo o autor, inadequada, á que aquele não existe com um fim em si mesmo, mas como instrumento erigido democraticamente, por intermédio do direito, para realizar as finalidades que lhe foram ditadas pela sociedade política. Neste sentido é que se afirma a subordinação do Estado ao ordenamento jurídico, não apenas como um limite externo, mas também como uma condição ou fundamento de ação estatal.

Para o autor, não se pode pretender explicar as relações de Administração Pública com o ordenamento jurídico à base de uma estrita vinculação positiva à lei. Essa vinculação, ao revés, dá-se em relação ao ordenamento jurídico como uma unidade, expressando-se em diferentes graus e distintos tipos de normas, conforme estabelecido na matriz constitucional.

Segundo o autor, a vinculação da Administração não se circunscreve, portanto, à lei formal, mas a esse bloco de legalidade, a que aludia Hauriou, que encontra melhor enunciação, para os dias de hoje no que Merkl chamou de princípio da juridicidade administrativa. Tal idéia de vinculação ao direito não plasmado na lei, marca a superação do positivismo legalista e abre caminho para um modelo jurídico baseado em princípios e regras, e não apenas nestas últimas.

Por fim, o autor conclui este tópico informando que a idéia de juridicidade administrativa traduz-se, na vinculação da Administração Pública ao ordenamento jurídico como um todo, a partir do sistema de regras e princípios delineados na Constituição. A juridicidade adminisrativa poderá, portanto: (I) decorrer diretamente da normativa constitucional; (II) assumir a feição de uma vinculação estrita à lei (formal ou material); ou (III)  abrir-se à disciplina regulamentar (presidencial ou setorial), autônoma ou de execução, conforme os espaços normativos estabelecidos constitucionalmente.


3. A pluralidade de fontes do direito administrativo contemporâneo: Constituição, lei, regulamento presidencial, regulamento setorial. A sistemática constitucional brasileira após a Emenda Constitucional nº 32/2001.

O autor inicia sua exposição informando que o direito administrativo é um campo não codificado do direito, ou seja, não é disciplinado de forma sistemática e exaustiva pelo legislador. Havendo resistido à era das grandes codificações, esta disciplina do direito público constitui-se de um mosaico de normas esparsas, de distintos graus hierárquicos, emanadas de inúmeros órgãos e entidades de diferentes níveis da federação.

O autor destaca ainda que o primeiro grande problema das fontes do direito administrativo no Brasil decorre da federação. Como conseqüência do modelo federativo tripartite, composto pela União, Estados e Municípios, cada um dos entes federativos detém, como decorrência de sua autonomia, competências normativas próprias no âmbito do direito administrativo. Tais competências normativas normativas, mescladas ainda com as atribuições administrativas, entrelaçam-se num sistema de competências exclusivas, comuns e concorrentes, o que torna relativamente tortuosa a tarefa de atribuir alguma sistemacidade à disciplina.

A partilha de competências legislativas em matéria de direito administrativo traz problemas recorrentes de invasão de competências de um ente sobre o outro. Para o autor, estes conflitos de competências agravam-se ainda mais diante do fato de que o Estado federal brasileiro é constituído por mais de cinco mil e quinhentos Municípios, sendo que cada um destes entes têm competências administrativas próprias, constituindo-se deste modo, milhares de fontes básicas de direito administrativo.

Como se isso não bastasse, o autor recorda que, para dificultar ainda mais o trabalho do estudioso da disciplina, há, verticalmente, dentro de cada uma das três esferas da Federação, três níveis fundamentais de fontes do Direito Administrativo: (i) o constitucional, (ii) o legal e (iii) o regulamentar. No primeiro nível, existem ainda as Constituições estaduais, que devem respeito à Constituição Federal, mas se aplicam aos Estados e Municípios, bem como as Leis Orgânicas municipais, que estão hierarquicamente submetidas à Constituição Federal e às Constituições de seus Estados. Sobre todo este complexo de normas o autor sugere, para fins didáticos, que vejamos cada uma, isoladamente, nos subtópicos seguintes.

3.1. A lei. Formas de manifestação da legalidade. Reservas de lei.

O autor assevera que apesar de a lei do parlamento, no sentido liberal clássico encontra-se em crise, ela ainda é importante fonte do direito administrativo, sendo o meio constitucional através do qual são ordinariamente criados direitos e obrigações.

A legalidade administrativa, segundo o autor, pode manifestar-se através de duas formas básicas: (i) como princípio da preferência de lei (também chamado de princípio da precedência, compatibilidade, ou preemiência); ou (ii) como princípio da reserva de lei (ou conformidade).

Quanto à reservas de lei estabelecidas constitucionalmente destacam-se seis espécies, sob três perspectivas distintas:

(a)de acordo com o órgão responsável pela normatização de uma questão, a reserva de lei pode ser formal ou material;

(b)de acordo com o grau de densificação normativa exigida ao encarregado da função legislativa, que dará ao aplicador maior ou menor espaço de conformação, a reserva pode ser absoluta ou relativa;

(c)de acordo com o dirigismo de uma determinada finalidade constitucional, a reserva de lei pode ser qualificada ou não qualificada.

São as seguintes as espécies de reserva de lei, na concepção deste autor:

3.2. Os regulamentos. Suas espécies e a sistemática introduzida pela Emenda Constitucional nº 32/01

O autor inicia a exposição deste tópico destacando que apesar do alt grau de constitucionalização do direito administrativo e de a lê ser histórica e classicamente a sua fonte por excelência, cada vez mais os regulamentos são a fonte quantitativamente mais importante do direito administrativo. Pode-se afirmar que, atualmente, os regulamentos são a fonte mais importante do direito administrativo, do ponto de vista prático.

Os regulamentos são havidos por parte da doutrina como leis em sentido material, na medida em que veiculam normas gerais e abstratas, e tem por escopo básico desenvolver o sentido das normas legislativas ou, sem a necessidade da intermediação do legislador, para dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Pública, quando isto não implicar aumento de despesa nem a criação ou extinção de órgãos públicos.

O autor destaca que, em regra, os regulamentos são editados pela Chefia do Poder Executivo, através de decretos.

O entendimento do autor é de que os regulamentos são não apenas atos normativos editados pelo Presidente da República, mas também os estatutos emanados das entidades administrativas dotadas de poder normativo.

Na seqüência de sua exposição, o autor afirma que se deve admitir que o poder regulamentar não é exclusivo da chefia do Poder Executivo, porquanto tal exegese teria fundamento numa interpretação literal e isolada do art. 84 da Constituição. O direito e, ainda por maior razão, a Constituição, não se interpreta em tiras. O regulamento é gênero do qual são espécies: (i) o regulamento presidencial e (ii) o regulamento setorial.

As entidades reguladoras também exercem, portanto, ao lado do Presidente da República e de outras autoridades administrativas, função regulamentar. Essas competências poderão ensejar a prática de atos administrativos concretos (individuais) ou normativos (genéricos e abstratos).

O autor explica que outra classificação é a que distingue o regulamentos em autônomos e de execução. Os primeiros têm previsão expressa no art. 84, VI, a, da Constituição, além de serem admitidos implicitamente na sistemática constitucional, em condições específicas, enquanto os regulamentos de execução são previstos no art. 84, IV. O autor revela características de cada um deles, começando pelos regulamentos de execução.

Os regulamentos de execução são aqueles que, pela letra expressa da Constituição, existem para garantir o fiel cumprimento da lei (art. 84, IV). Os regulamentos de execução são os regulamentos classicamente aceitos e estão presentes no direito pátrio desde a Constituição imperial de 1824 (art. 102, IX).

Entende-se que os regulamentos de execução operam efeitos apenas secundum legem e intra legem, nunca ultra legem, contra legem, ou praeter legem. Neste sentido, o regulamento executivo tem por escopo básico instrumentalizar a execução da lei, “detalhando e explicitando seus comandos, interpretando seus conceitos e dispondo sobre órgãos e procedimentos necessários para sua aplicação pelo Executivo.

O que o autor propugna é que a noção de regulamento de execução não pode ser circunscrita a uma atividade basicamente repetidora da lei, ou “um mero elemento de sua execução, como um procedimento de sua aplicação”, conforme defendia Oswaldo Aranha Bandeira de Mello. Sempre, em maior ou menor medida – ressalvadas, é claro, as hipóteses de reservas de lei, notadamente a absoluta – haverá espaço para atividade criativa do poder regulamentar de execução..

Já em relação aos regulamentos autônomos o autor explica que são aqueles que prescindem da lei como fundamento de sua existência, tendo na própria Constituição, de forma explícita ou implícita, o fulcro imediato de competência para sua emanação.

É no direito francês que esta espécie normativa tem maior destaque. Assim, primeiro pela Lei de 17 de agosto de 1948 e depois através da Constituição de 1958, estabeleceu-se naquele país a existência de dois domínios normativos: o domínio da lei e o domínio do regulamento. A partir da Constituição de 1958, “lei não se estende mais ao infinito”, havendo matérias pertencentes ao domínio do regulamento.

O autor revela que tem a impressão de que o constituinte derivado brasileiro foi de alguma seduzido por este discurso do direito comparado ao editar a Emenda Constitucional nº 32 de 2001.

O autor informa também que o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade, na vigência da Constituição pretérita, de manifestar-se favoravelmente à existência dos regulamentos autônomos, com fundamento no art. 81, V.

Na seqüência de seu pensamento, o autor aduz que com a promulgação da Constituição de 1988, em razão da redação origna do art. 84, VI, a doutrina do regulamento autônomo sofreu forte retração, pois as matérias organizativas da administração poderiam apenas ser tratadas por regulamentos autônomos, “na forma da lei”.

No entanto, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 32/2001 um novo quadro surgiu com relação ao poder regulamentar no Brasil. É que a emenda, cujo propósito principal foi o de criar limites claros à edição de Medidas Provisórias, retirou a expressão “na forma da lei” do art. 84, VI. Além disso, alteraram-se os incisos X e XI do art. 48, retirando competências normativas do Congresso Nacional que foram agora atribuídas ao Chefe do Executivo. Alterou ainda a alínea “e” do inciso II do §1º do art. 61, que trata das iniciativas privativas do Presidente da República. Modificou ainda o art. 88, afastando aparentemente da competência do Poder Legislativo o tratamento da estruturação dos Ministérios, além de tratar da mesma forma os demais órgãos da Administração Pública.

Deste modo, como o art. 84, VI, “a”, introduzido pela EC nº 32/2001, comporta, confortavelmente, uma interpretação no sentido de haver instituído, apenas, uma hipótese de admissibilidade expressa do regulamento autônomo – e não uma verdadeira reserva de poder regulamentar – tal deve ser o entendimento a prevalecer. Cuida-se, assim, de uma interpretação do art. 84, VI, “a”, introduzido pela EC 32/2001, conforme às cláusulas pétreas cravejadas no art. 60, §4º, incisos III  IV da CF.

Em síntese, o autor conclui que são autônomos os regulamentos que encontram fundamento direto na Constituição, seja por uma competência normativa expressamente assinalada no texto constitucional (como aquela prevista no art. 84, VI, a, introduzida pela EC nº 32/2001 e no art. 237 da carta de 1988), seja como uma decorrência implícita de competências administrativas que careçam de normatização prévia ao seu exercício. Duas ressalvas se fazem necessárias, todavia, em relação aos regulamentos autônomos: (i) em ambas as hipóteses assegura-se a primazia da lei supervenientemente editada sobre os regulamentos autônomos; (ii) não se admite a sua edição em espaços sujeitos à reserva legal.

Sobre o autor
Carlos Sérgio Gurgel da Silva

Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pena Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Especialista em Direitos Fundamentais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (FESMP/RN), Professor Adjunto IV do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Advogado especializado em Direito Ambiental, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Geógrafo, Conselheiro Seccional da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Titular no Conselho da Cidade de Natal (CONCIDADE).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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