1. Introdução
Vivemos tempos líquidos 1. Incerteza e insegurança são traços marcantes da nossa sociedade pós-moderna, cada vez mais fluida e efêmera. As instituições, as ideias e os conceitos sofrem mutações rápidas e imprevisíveis. A velocidade com que se (re)produz (des)informação é assustadora. Novas tecnologias surgem, a todo instante, com a promessa de antecipar o futuro. A sociedade contemporânea, não é exagero dizer, deixa pouco a desejar às distopias literárias criadas ao longo do séc. XX. O presente já nasce obsoleto. O passado, para muitos, sequer existe. O futuro é agora.
Mas, como nos adverte o poeta Mário Quintana, o passado está sempre presente. Poucos o notam, é verdade. Mas ele está lá. Ou melhor: aqui. Nossos olhos, obnubilados pelo caos cotidiano, é que não conseguem enxergá-lo.
No Direito não é diferente. Também ele vem sofrendo os influxos da modernidade líquida. O romance em cadeia de Dworkin 2, no Brasil, mais se assemelha a um livro de contos, em que coerência e integridade assumem rarefeita importância. Todos querem escrever um novo capítulo; poucos, contudo, se dão ao trabalho de ler toda a obra. Esquecemo-nos, no mais das vezes, que o mundo jurídico só é verdadeiramente conhecido, quando compreendido. E essa compreensão só se dá, de forma completa, quando se absorve tudo que permitiu sua origem no passadoe tudo que determinará seu futuro possível 3.
Mirar o passado, portanto, representa condição de possibilidade na análise de qualquer instituto jurídico.
Voltaremos os olhos, no presente trabalho, para o longínquo ano de 1987, quando o Prof. Humberto Theodoro Jr. defendeu sua tese de doutorado, intitulada “A execução de sentença e a garantia do devido processo legal”. Trata-se de obra ímpar na literatura jurídica nacional, cuja análise se impõe a todo aquele que pretende discutir os rumos deste instituto tão caro ao direito processual civil.
As ideias ali contidas, embora apresentadas há mais de três décadas, mostram-se, ainda hoje, absolutamente atuais. As críticas, direcionadas ao CPC/73, continuam pertinentes, não estando o novel Código a elas imune. E, conquanto muitas das propostas elaboradas pelo Prof. Humberto Theodoro Jr. tenham sido encampadas pelo legislador 4, ainda é possível extrair de sua obra valiosas lições, que certamente levarão à melhoria do instituto que hoje conhecemos como “cumprimento de sentença”.
Hoje, podemos afirmar sem medo: o futuro do “cumprimento de sentença” está no passado. Mais precisamente, no ano de 1987.
Ao longo dos próximos tópicos, observados os estreitos limites deste artigo, iremos analisar a obra do Prof. Humberto Theodoro Jr., ressaltando sua importância na evolução do que outrora era chamado de “execução de sentença”. Demonstraremos como, a um só tempo, sua tese de doutorado foi capaz de reconstruir o passado, influenciar o presente e indicar caminhos para o futuro deste instituto. Ao final, resgatando algumas das propostas apresentadas – ainda na década de 1980 – pelo estimado professor, iremos propor singelas alterações em dispositivos do vigente Código de Processo Civil, na tentativa de aperfeiçoar a fase de “cumprimento de sentença”.
2. Desenvolvimento
Aqueles que lidam com o fenômeno jurídico há mais tempo certamente se lembram – sem muito saudosismo – da maneira que a então “execução de sentença” era regulada pelo Código de Processo Civil de 1973. Após o demandante obter uma sentença de mérito favorável, cabia a ele, para dar início à execução do julgado, propor uma nova ação, sujeitando-se a todos os percalços e inconvenientes daí advindos. Os atos constritivos e expropriatórios, necessários à satisfação daquele direito – já reconhecido em sentença, frise-se – somente poderiam ser praticados nesta nova relação processual, o que, invariavelmente, retardava a solução integral da lide.
O credor, portanto, devia bater duas vezes à porta da Justiça, como nos lembra o Prof. Humberto Theodoro Jr.:
(...) se o devedor vencido não cumprir voluntariamente a sentença condenatória, outro caminho não restará ao credor vitorioso, senão propor uma nova ação, isto é, terá de promover a instauração de nova relação processual para compelir o próprio Estado a completar a prestação jurisdicional, dando cumprimento coativo à condenação contida na sentença descumprida.
Exigem-se, pois, duas ações e dois processos, com todos os consectários e dificuldades da formação e desenvolvimento da relação jurídica processual, como via indispensável para atingir a completa solução de uma só e única lide, ou seja, para tutela e satisfação de um único interesse controvertido. 5
Foi somente no ano de 2005, com o advento da Lei nº. 11.232, que a execução da sentença passou a se dar nos mesmos autos em que proferida, como mera fase processual, e não mais por meio de ação autônoma. Referida sistemática foi incorporada ao Código de Processo Civil de 2015, que também adota uma concepção unitária do processo, não condicionando a prática dos atos executórios à deflagração de uma nova relação jurídico-processual.
Mas, a despeito dos avanços verificados na legislação processual civil brasileira, que caminhou, nas últimas décadas, em direção à executio per officium iudicis, mostrar-se-á, nos tópicos que se seguem, que não fomos capazes de abandonar complemente a actio iudicati romana, cujas reminiscências ainda permeiam o CPC vigente.
De modo a melhor visualizar esta jornada, isto é, as alterações legislativas que nos conduziram da actio iudicati à executio per officium iudicis, optou-se por respeitar a ordem cronológica dos eventos, dividindo-os em passado (de 1939 a 2005), presente (de 2005 aos dias atuais) e futuro (cujo marco inicial ocorrerá quando o legislador extirpar do ordenamento os últimos vestígios da tão combatida actio iudicati).
2.1. Passado (ou de como os Códigos revogados – 1939 e 1973 – positivaram a anacrônica actio iudicati)
No primitivo Direito Romano, a sentença não ostentava a natureza que hoje normalmente se lhe atribui, qual seja, de ordem emanada do Estado. Ela mais se assemelhava a um parecer arbitral, de natureza privada, o que justificava a necessidade de uma nova ação para que viesse a ser executada. Isto acontecia porque a atividade jurisdicional era bipartida, tendo início perante o praetor e sendo concluída pelo iudex. Aquele era um agente estatal, que detinha o imperium, enquanto este era mero árbitro privado, eleito pelas partes para dirimir o conflito. Por possuir apenas o iudicium – não o imperium – sua decisão carecia de força executiva, como bem explica o Prof. Humberto Theodoro Jr.:
(...) em Roma o juiz clássico era um particular, sem autoridade para impor a execução de sua sentença que, por isso, apenas “clareava” a situação jurídica das partes, substituindo a obrigação material pela obrigação processual (obligatio iudicati). O vencedor, por conseguinte, comparecia perante o magistrado (praetor e não mais o iudex) para pedir, em outra ação, o cumprimento da obligatio iudicati, porque só ele tinha o imperium para sancionar o inadimplente. 6
A peculiar maneira como o exercício da jurisdição se dava no Direito Romano explica a necessidade de, após a prolação da sentença, pelo iudex, ser proposta nova ação, perante o praetor, para compelir o devedor a cumprir a obrigação fixada no julgado. Como esta ação visava exclusivamente ao cumprimento da obligatio iudicati, os romanos a ela deram o nome de actio iudicati.
Convém repisar que a autonomia da actio iudicati reside no fato de que (i) a jurisdição romana era bipartida (praetor e iudex); (ii) o iudex era um particular, despido de autoridade para impor a execução de sua sentença; e (iii) a sentença equivalia a um parecer arbitral, de natureza privada, que apenas “clareava” a situação jurídica das partes.
Neste específico contexto, ouso afirmar que poucas vozes se levantariam contra a necessidade de ajuizamento de uma nova ação para compelir o devedor a adimplir a obrigação contida na “sentença”, que apresentava, repita-se, nítida feição negocial.
Todavia, a realidade romana, substrato em que se assentava a autonomia da actio iudicati, não mais subsiste entre nós. Tendo as funções do praetor e do iudex sido unificadas na figura de um único representante do Estado (juiz) – que passou a deter tanto o imperium quanto o iudicium –, pode ele próprio conferir efetividade aos seus julgados. Sem falar que a sentença perdeu sua natureza privada, representando não mais uma recomendação, mas verdadeira ordem estatal, de observância cogente.
A legislação processual brasileira, contudo, apegada a uma injustificada tradição romanística, parece não ter atentado para estas circunstâncias.
Embora muitos se recordem da sistematização imposta pelo CPC/73, não foi ele o primeiro instrumento normativo a preconizar, entre nós, a autonomia do processo de execução de sentença. Já no Código anterior, que remonta ao ano de 1939, devia o credor vitorioso ajuizar, após a sentença, nova ação, com vistas a realizar materialmente o direito ali garantido 7. O patrimônio do devedor, portanto, somente poderia ser atingido nesta nova demanda, o que demonstra que, já à época do CPC/39, havia uma divisão estanque entre “processo de conhecimento” e “processo de execução”.
Repetindo este equivocado paradigma processual, o Código Buzaid também impôs ao credor um tortuoso caminho para ver satisfeita a pretensão deduzida em juízo e já reconhecida em sentença. Os arts. 621, 629, 632, 652 e 733, todos do CPC/73, em sua redação original, noticiam que os atos tendentes à execução do julgado somente teriam início após a citação do devedor, independentemente da natureza da obrigação a ele imposta (entrega de coisa certa/incerta, obrigação de fazer/não fazer, pagamento de quantia em dinheiro, etc).
Diante deste cenário legislativo, que atravessou todo o séc. XX, não causa espanto o fato de a comunidade jurídica brasileira não ter se insurgido contra a necessidade de ajuizamento de uma nova ação, distinta daquela em que foi proferida a sentença, apenas para atingir o patrimônio do devedor recalcitrante e entregar ao credor aquilo que lhe era devido. Os juristas se habituaram a esta realidade normativa, tratando-a com a mais absoluta naturalidade 8.
Uma voz, entretanto, no ano de 1987, se ergueu em prol de uma concepção unitária do processo, questionando esta artificial dicotomia entre “processo de conhecimento” e “processo de execução” 9.
Seu eco, ainda hoje, reverbera na legislação processual.
2.2. Presente (ou de como a reforma processual de 2005 foi boa, mas não milagrosa 10)
Não é de hoje que se clama por uma justiça mais célere 11. O Prof. Humberto Theodoro Jr., décadas atrás, antes mesmo de promulgada a atual Constituição, já reconhecia o direito à solução da causa em prazos razoáveis como um direito fundamental do cidadão 12. E foi visando à concreção deste direito que propôs, em 1987, de lege ferenda, a eliminação da ação autônoma de execução de sentença.
Com a palavra, o estimado professor:
Da unificação do processo condenatório com o executivo poderiam resultar, de imediato, as seguintes vantagens: a) a eliminação da propositura da execução forçada de sentença em nova petição inicial do credor; b) a eliminação da citação executiva, pois na própria sentença seria feita a assinatura do prazo de pagamento, o qual, ultrapassado sem comunicação ou prova de resgate, acarretaria a automática expedição do mandado de imissão de posse, se a condenação for de entrega de coisa, ou de penhora, se de pagamento de dinheiro; [...] 13
A seu ver, a economia processual seria valorizada pela eliminação de dispêndios inúteis relativos à reabertura da nova relação processual executiva. Deveria o magistrado, segundo a proposta acima transcrita, de ofício e nos próprios autos, dar cumprimento à obrigação estampada na sentença, à semelhança do que ocorria na executio per oficium iudicis da Idade Média 14. Por conseguinte, toda a burocracia e formalismo inerentes à actio iudicati romana seriam relegados ao esquecimento.
Foi assim, embalada pela linguagem poética do Prof. Gabriel Rezende Filho 15, que a divisão estanque entre “processo de conhecimento” e “processo de execução”, pelo menos em sede doutrinária, começou a ser mitigada, dando lugar à celeridade e à efetividade da prestação jurisdicional.
Na seara legislativa, contudo, longos anos se passaram até que o sincretismo processual fosse positivado em nosso ordenamento. Em 2002, a Lei nº. 10.444. promoveu interessante alteração na execução das sentenças que tinham por objeto a entrega de coisa. Mas foi somente em 2005, com a edição da Lei nº. 11.232, que foi conferida à execução, de maneira ampla, status não mais de ação autônoma, mas de mera fase processual, a ser deflagrada nos mesmos autos em que proferida a sentença condenatória.
A obra doutrinária do Prof. Humberto Theodoro Jr. foi saudada à época, tendo sido expressamente mencionada na Exposição de Motivos da lei que introduziu, no CPC/73, a executio per officium iudicis.
Mas, conquanto a reforma processual de 2005 tenha significado um enorme passo em direção ao aperfeiçoamento deste instituto – que doravante passou a ser chamado de “cumprimento de sentença” – o legislador permitiu que alguns resquícios da actio iudicati permanecessem em nosso ordenamento pátrio.
Embora não mais se exigisse do credor o ajuizamento de uma ação autônoma, a legislação ainda lhe impunha o ônus de dar início ao procedimento executivo (art. 475-B, do CPC/73 16), impedindo, assim, a atuação oficiosa do magistrado. Registre-se que idêntica sistemática foi adotada pelo Código de Processo Civil de 2015, que também condiciona a execução da sentença que reconhece o dever de pagar quantia ao prévio requerimento do credor (vide arts. 513, § 1º, 523 e 528).
2.3. Futuro (ou de como não se deve olhar o novo com os olhos do velho)
O officium iudicis, lembra Liebman, compreende todas as atividades que o juiz deve exercer naturalmente, em virtude de seu ofício. 17 Aí se incluem, evidentemente, os atos tendentes a promover a execução do julgado.
Proferida a sentença, a intimação do vencido para pagar a quantia nela consignada, bem como a sujeição de seu patrimônio aos atos constritivos e expropriatórios, caso não o faça, só podem ser encarados como consectários lógicos e necessários da própria condenação. Não se pode perder de vista que, proposta a ação, o único e exclusivo objetivo do credor é receber o que lhe é devido. Chega a ser redundante, portanto, exigir-lhe que, após a sentença, diga, uma vez mais, que pretende ver o seu direito realizado.
Embora referindo-se aos poderes instrutórios do juiz, a já conhecida lição do saudoso Prof. José Carlos Barbosa Moreira em tudo se amolda ao que ora se defende. Ele ressalta, em síntese, que “quem quer o fim, quer os meios”. Assim, quando o juiz deflagra a fase executiva,
não está, em absoluto, usurpando função da parte; não está agindo no lugar dela, fazendo algo que a ela, e só a ela, incumbia fazer. Sua iniciativa não é, a rigor, um sucedâneo da iniciativa da parte: é qualquer coisa de inerente à sua missão de julgador. Ele não atua como substituto da parte, atua como juiz - como juiz empenhado em julgar bem. 18
Privar o juiz de dar início à execução é clara reminiscência de um romanismo anacrônico, que enxergava na actio iudicati o instrumento necessário à efetivação do direito reconhecido na sentença. Isto, a toda evidência, não corresponde aos atuais anseios de uma justiça mais rápida e eficaz.
Devemos lembrar, outrossim, que a demora na solução dos processos se debita muito mais às etapas mortas (isto é, aos períodos de inatividade entre ações consecutivas do processo) do que propriamente às dimensões dos prazos estabelecidos em lei. 19 Não se trata de nenhuma novidade:
Convém ponderar, a propósito, que ALCALÁ-ZAMORA atribui a lentidão dos processos, muito mais do que à amplitude dos prazos legais, justamente às interrupções frequentes da marcha procedimental, ou seja, àquilo que denomina, com grande propriedade, etapas muertas, es decir los períodos de inactividad entre dos actuaciones consecutivas. 20
Ao se impedir que o magistrado dê início aos atos executórios da sentença, condicionando-os, antes, à iniciativa da parte, cria-se mais uma etapa morta no processo, o que contribui para retardar a satisfação do direito do credor. Não raras vezes, longos meses se passam entre o protocolo de uma simples petição e a publicação da decisão a ela referente.
Não se pretende indagar as causas de tamanha morosidade: volume excessivo de trabalho a que estão submetidos os juízes, escassez de servidores, práticas de gestão inadequadas... O que se almeja, no presente artigo, é lançar luz para o fato de que exigir a iniciativa da parte na fase executiva acaba criando mais uma etapa morta no processo. Uma simples medida, contudo, pode ser empregada para sanar este problema: basta permitir que o magistrado, escudado no princípio do impulso oficial, promova a execução do julgado.
Não se indaga à parte, após o recebimento da petição inicial, se ela quer a citação do réu; não se questiona, ao final da instrução, se ela almeja a prolação da sentença; não se pergunta, em sede recursal, se ela pretende ver julgada sua apelação. E isto por óbvias razões: quem ajuíza uma ação, quer a citação do réu; quem se esforça para comprovar os fatos constitutivos do seu direito, almeja uma sentença; quem se insurge contra uma decisão, pretende sua reforma.
Por que, então, exigir, na seara executiva, que a parte diga o óbvio? Por que, céus!, ela precisa, uma vez mais, afirmar que pretende ver satisfeito o seu direito? Eclodida a lide, a parte quer sua integral solução. Isto está implícito na petição inicial 21. A execução da sentença é apenas o epílogo 22 de um extenso livro, cujo capítulo inicial começou a ser escrito quando da propositura da demanda.
Boa parte da comunidade jurídica parece ainda “olhar o novo com os olhos do velho” 23, pois somente um injustificado apego à tradição romanística é capaz de explicar a atual sistemática a que se sujeita o cumprimento de sentença no processo civil brasileiro. Ainda não conseguimos olhar o novo com os olhos do novo. Nossa legislação, embora aparentemente tenha superado a actio iudicati, dela ainda se ressente, não tendo sido capaz de adotar, em plenitude, a executio per officium iudicis.