4 UMA SÍNTESE A TÍTULO DE CONCLUSÃO
Após as considerações acima acerca do direito e da economia, o que se pode visualizar é uma grande proximidade dos problemas enfrentados em ambas as áreas, que poderiam ser pontuados da seguinte maneira:
1) houve uma forte influência do positivismo, tanto no direito como na economia, no último século;
2) a existência, em ambas as áreas, de um conhecimento mais voltado à ética e outro formalizado, mais técnico;
3) a abordagem dos valores (da ética) ou é simplesmente abandonada ou então secundária, havendo uma preponderância muito grande do enfoque técnico, formalizado;
4) o enfoque técnico ou formalizado não dá conta de uma série de comportamentos humanos, tornando a teoria muito distante da realidade humana.
A partir dos pontos acima é necessário um trabalho positivo ou construtivo, no sentido de buscar identificar como a ética poderia ser reinserida no quadro desses conhecimentos, além de verificar que tipo de integração entre essas áreas poderia trazer benefícios na análise de problemas contemporâneos, especialmente aqueles vinculados ao processo da globalização.
Afinal, o grande dilema do conhecimento científico e até crítico é a sua impossibilidade de dar um passo à frente propositivo, ou seja, de desenvolver uma proposta alternativa aos problemas enfrentados, pois esta postura propositiva envolve necessariamente a escolha de fins e, portanto, uma escolha ética, valorativa. Esse dilema foi enfrentado por Kelsen, na área jurídica, que separava radicalmente o mundo do ser do dever-ser, afirmando que não há qualquer possibilidade do primeiro interferir no segundo. Assim, o papel da ciência – nesse caso a jurídica – seria simples e exclusivamente o de descrever as condições sob as quais devem intervir certas conseqüências fixadas pelo ordenamento (KELSEN, 1994, p. 79 et seq.). Kelsen declara expressamente não haver nenhum espaço, portanto, para a prescrição de seja lá o que for (Ibid., p. 82).
Na área econômica, enfrenta-se o mesmo dilema, assim expressado por Gianetti:
Uma das conquistas mais importantes da filosofia moderna é a tese de que nenhuma quantidade de conhecimento sobre o mundo como ele é pode nos permitir, por si só, dar o passo seguinte e fazer afirmações sobre o mundo como ele deve ser.
Ao passarmos do que é dado para o que está errado, ou do que existe para o que é desejável, estamos também introduzindo um juízo de valor – uma consideração de natureza ética – em nosso raciocínio. E por mais que avance o conhecimento objetivo – por mais que se aprenda sobre os fenômenos, leis e regularidades do universo – a ciência positiva nunca poderá dar esse passo por nós. Qualquer ato de escolha, por mais simples que seja, ultrapassa a esfera de competência do conhecimento científico.
O dilema filosófico fundamental, conforme Giannetti, teria sido levantado por Hume, que afirmava ser impossível que as constatações do mundo da natureza sejam tomadas como fundamento para as ações morais [26]. A questão, agora, é identificar como a ética participa na estruturação do mundo em que vivemos para que se possa refletir sobre como poderá contribuir na construção do futuro, já que a ciência – da forma como está constituída (positiva) – nada, ou muito pouco, pode contribuir a esse respeito. Isso implica discutir também um novo modelo de produção do conhecimento, que possa representar uma alternativa à razão instrumental do positivismo cientificista, englobando elementos que permitam a humanização e melhora nas condições de vida mundiais.
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NOTAS
01 De alguma maneira participaram dos debates, além do autor deste trabalho, os colegas Roberto Freitas Filho, José Antônio Siqueira Pontes, Maristela Miglioli Sabbag, Ariani Bueno Sudatti, Paulo Eduardo Alves Silva, Otávio Perricelli Contador e Rodrigo Pagani de Souza.
02 A idéia de "não-saber" está vinculada a uma concepção desenvolvida por Michel Foucault em suas obras que englobam a metodologia denominada "genealogia do poder". Nessa perspectiva, a ciência é um instrumento para seleção de saberes. Nem todos os saberes são admitidos como científicos – não por causa de seu conteúdo de verdade –, mas por que precisam passar pela aprovação e aceitação das estruturas de poder de todos um sistema de produção da verdade, envolvendo universidades, instituições de pesquisa etc. Assim, para Foucault não é o grau de "verdade" que transforma um enunciado em verdadeiro ou científico, mas a sua adequação aos procedimentos para construção da verdade estabelecidos pelo sistema. É isso que explicaria o fato de várias teorias importantes e revolucionárias terem sido durante vários anos rechaçadas como não-verdeiras, como foi o caso da teoria da hereditariedade de Mendel. Ver a respeito FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: lição inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 2 ed. São Paulo: Loyola, 1996.
03 É necessário excluir os sofistas desse grupo em busca de "uma verdade", visto que eles desenvolveram uma perspectiva argumentativa do mundo que negava a possibilidade da existência de uma única verdade. A busca da verdade – no sentido da possibilidade de haver uma única verdade , marcou profundamente a reflexão ocidental e a profunda crença nos poderes ilimitados da razão.
04 WARHAFT, S. (org). Francis Bacon: a selection of his work. p. 17. In: ALVES, Rubem. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e a suas regras. São Paulo: Loyola, 2000. p. 16.
05 Michel Foucault, em seu livro "As palavras e as coisas", analisa outros exemplos em que a analogia, além de outros instrumentos típicos da racionalidade renascentista, é utilizada como recurso explicativo do mundo. Ver especialmente FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 23 et seq.
06 Há um debate interessante sobre o nascimento da filosofia e o chamado "milagre grego". Para uma síntese simples e objetiva, ver CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 8 ed. São Paulo: Ática, 1997. p. 25 et seq.
07 A respeito da razão intrumental, ver MARCUSE, Herbert. Ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. p. 142 et seq. Ver também HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 19 et seq. Para uma síntese competente, ver FREITAG, Bárbara. A teoria crítica ontem e hoje. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1988.
08 FURTADO, Celso. O capitalismo global. São Paulo: Paz e Terra, 1998. p. 14-5.
09 COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva; Discurso sobre o espírito positivo; Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo; Catecismo positivista. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 3. (Col. Os Pensadores)
10 Ver a respeito, o "Mito da caverna", no Livro VII da República. Cfe. Platão. Diálogos III: A república. 26 ed. Rio de Janeiro, Ediouro, 2001. p. 153 et seq. Para uma excelente síntese da concepção filosófica platônica, ver CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 159 et seq. Uma analogia romanceada muito interessante e contemporânea do mito da caverna da pode ser encontrada na belíssima obra de José Saramago, A caverna.
11 Ver a respeito do mito da reminiscência em PLATÃO, 2001, p. 153 et seq. e CHAUÍ, 1994, p. 198-9.
12 As referências ao esgotamento do aqui denominado "novo" modelo – o modelo científico positivo – são recorrentes nas pesquisas epistemológicas das últimas três décadas, mas não será abordado neste trabalho, cujo objetivo principal é abordar como o modelo iluminsta ainda influencia as ciências estabelecidas. Sobre a crítica ao modelo científico moderno, algumas obras importantes são: SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2003; SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989; e, JAPIASSU, Hilton. A crise da razão e do saber objetivo: as ondas do irracional. São Paulo: Letras e Letras, 1996.
13 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. XI [Prefácio à primeira edição]
14 Para um panorama abrangente das principais propostas teóricas sobre o direito, ver REALE, Miguel. Fundamento do direito. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. Miguel Reale afirma que "o pensamento de Kelsen representa, em verdade, o termo final, o resultado último, o ponto culminante da Escola técnico-jurídica [...]" (Ibid., p. 157). Especificamente sobre Kelsen na obra de Reale, ver o Cap. IV (O direito como norma pura) (Ibid., p. 135 et seq.).
15 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 131.
16 Sobre dogmática e zetética, ver o Cap. 1 em FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 31-51.
17 SEN, Amatya Kumar. Sobre ética e economia. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
18 HOLLIS, Martin e NELL, Edward J. O homem econômico racional: uma crítica filosófica da economia neoclássica. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. p. 72 passim.
19 O enfoque zetético, conforme caracterizado por Ferraz Jr., possui um caráter mais amplo que o enfoque ético da economia, conforme descrito por Sen, pois a zetética adota um viés quase filosófico, que englobaria também o aspecto ético, mas não se limitaria a ele (FERRAZ JR., op. cit., p. 44 et seq.).
20 GIANNETTI, Eduardo. Vícios privados, benefícios públicos?: a ética na riqueza das nações. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 10.
21 Esse aposto indica a exclusão da análise, neste trabalho, do problema do comportamento racional como coerência, por nos parecer vinculado mais a um problema lógico que ético, apesar da coerência envolver justamente a relação entre meios e fins. E os fins, conforme já abordado, envolvem valoração. Ver a respeito em Sen, op. cit., p. 28-30.
22 STIGLER, G. Economics or ethics?, apud GIANNETTI, op. cit., p. 24.
23 Sen aborda esse problemas fazendo uma distinção teórica entre um "aspecto da condição de agente [agency aspect] e um "aspecto do bem-estar" [well-being aspect], que não iremos abordar nesse trabalho. Para isso, ver SEN, op. cit., p. 56 et seq.
24 BOSCO, João. O rancho da goiabada. João Bosco e Aldir Blanc [compositores]. In: ______. O melhor de João Bosco: o bêbado e a equilibrista. São Paulo: Polygram, s/d. 1 CD. Faixa 5 (2 min 29 s).
25 A obra a qual se faz referência é SEN, Amartya Kumar. Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro: Record, 2001.
26 Há uma passagem em Hume afirma que "pode-se apenas pretender, talvez, que o espírito deve perceber, nas operações materiais, uma conexão adicional entre causa e efeito; e que esta conexão não intervém nas ações voluntárias". Para entender essa passagem, é preciso apontar que para Hume as relações de causa e efeito não existem "a priori", mas são apenas fruto de um "hábito mental". (p. 98) Assim, não há como predizer o futuro a partir de fatos observados, a não ser com fundamento numa "crença generalizada" de que o futuro poderá repetir o passado. É por isso, que o dever ser não tem como ser deduzido do ser (ver a respeito p. 47 et seq.). HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano; Ensaios morais, políticos e literários. São Paulo: Nova Cultural, 1999. [Col. Os Pensadores].