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O poder de polícia e o domicílio à luz da jurisprudência do STF

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Agenda 04/07/2005 às 00:00

CAPÍTULO 2

O PODER DE POLÍCIA FISCAL

            Preliminarmente, vale dizer que a expressão poder de polícia fiscal é cunhada por José Maria Pinheiro Madeira, não significando nada mais que o exercício do poder de polícia na fiscalização tributária.

            O conflito entre a atuação do Estado no exercício do poder de polícia e a proteção também constitucional aos direitos fundamentais do indivíduo, será objeto de eterna discussão, acompanhando, como já mencionado, as alterações conceituais acerca da finalidade de existência do Estado.

            É preciso firmar posição no sentido de que o exercício do poder de polícia só será legítimo se significar a garantia dos direitos fundamentais ao indivíduo, pela harmonia na convivência dos interesses.

            Vale frisar que de maneira nenhuma é o exercício do poder de polícia incompatível com a proteção constitucional aos direitos fundamentais, pelo contrário, objetiva resguardar o sistema das ações danosas.

            O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e repartição justa dos rendimentos e da riqueza, sendo o exercício do poder de polícia Fiscal uma das vertentes da atuação do Estado para auferir patrimônio, bem como distribuir equitativamente os ônus, sem permitir a concorrência desleal, a exemplo do que ocorre com a sonegação.

            Dessa forma, a fiscalização consiste na atividade, de natureza preventiva e antecipatória, destinada a recolher informações que habilitem as autoridades de polícia a prevenir a prática de ilícitos, cessá-los ou identificar os seus autores.

            Percebe-se que tanto o exercício do poder de polícia quanto os direitos fundamentais são limitados pelos parâmetros estabelecidos pela Constituição.

            Não há direito público subjetivo absoluto, pois é impossível manter um sistema jurídico equilibrado com prerrogativas ilimitadas. A mesma regra valem para as liberdades públicas.

            Tudo aquilo que é juridicamente garantido é também juridicamente limitado, nas palavras de Guido Zanobini (38).

            O regime jurídico administrativo funda-se nas prerrogativas e sujeições, as primeiras concedidas à Administração para proporcionar-lhe meios para garantir o exercício de suas atividades e as segundas como limites opostos à atuação administrativa em benefício dos direitos dos cidadãos, conforme nos ensina JOSÉ MARIA PINHEIRO MADEIRA (39).

            É preciosa a lição de SUNDFELD (40), ao classificar os condicionamentos administrativos de direitos em três espécies: limites, que resultam de lei, embora nem todos sejam impostos diretamente por ela, a exemplo da convivência harmônica já defendida; os encargos, que significam deveres positivos (de fazer) vinculados ao exercício de direitos, com incidência apenas sobre o titular, diferentemente das requisições de serviços, que exigem uma condição pessoal; e as sujeições, que geram o dever de suportar a interferência de terceiro (no caso o Estado) em sua esfera de interesses e passe a manejar poderes que, de outro modo, lhe pertenceriam com exclusividade, exigindo-se abstenção, somada à interferência do Poder Público.

            Adverte, por fim, que a expressão ônus é utilizada para os comportamentos que o indivíduo deva realizar antes de usufruir uma vantagem e cuja inobservância não gera sanção, mas apenas impede o acesso ao benefício.

            Verificamos que só há dever de sujeição do particular em relação à atuação do Estado na defesa do interesse público, nas palavras de SUNDFELD:

            Todo condicionamento é constrangido sobre a liberdade. Esta, sendo valor protegido pelo Direito, só pode ser comprimida quando inevitável para a realização de interesses públicos. Daí a enunciação do princípio da mínima intervenção estatal na vida privada. Por força dele, todo constrangimento imposto aos indivíduos pelo Estado deve justificar-se pela necessidade de realização do interesse público. O legislador não pode cultivar o prazer do poder pelo poder, isto é, constranger os indivíduos sem que tal constrangimento seja teleogicamente orientado. O principio da mínima intervenção estatal na vida privada exige, portanto, que: a) todo condicionamento esteja ligado a uma finalidade pública, ficando vetados os constrangimentos que a ela não se vinculem; b) a finalidade ensejadora da limitação seja real, concreta e poderosa; c) a interferência estatal guarde relação de equilíbrio com a inalienabilidade dos direitos individuais; e d) não seja atingido o conteúdo essencial de algum fundamental.

            Assim, as prerrogativas conferidas à Administração Pública objetivam garantir o bem-estar da comunidade, ainda que resultem em limitação ao exercício de direito pelo particular.

            Há uma forte tendência liberal no sentido de se garantir o máximo de liberdade ao particular, esquecendo-se do interesse público, como se fossem círculos independentes de atuação.

            Ocorre que o exercício de direitos pelo particular, em regra, terá reflexo na sociedade.

            Dessa forma, é falaciosa a tentativa de outorgar excessiva proteção ao particular, desconsiderando o interesse da maioria. Com o pretexto de se evitar a "ditadura da maioria" tem-se a "ditadura da minoria", ou pior, de um único individuo, negando-se a concepção de limitação natural da liberdade individual em prol da coletividade, que a vida em sociedade requer.

            Considerando que os direitos individuais são relativos e que os interesses da coletividade têm supremacia sobre os direitos individuais, podemos derivar a fundamentação jurídica do poder de polícia.

            Partindo-se desses pressupostos - caráter relativo dos direitos individuais e supremacia do interesse público – tacitamente é permitido o condicionamento do uso, gozo e disposição dos seus direitos individuais em benefício da coletividade.

            O fundamento último do poder de polícia é o interesse social, que não exclui, por si só, a proteção ao direito individual, pelo contrário, torna possível a convivência harmônica.

            Nesse sentido é preciosa a lição de JOSÉ MARIA PINHEIRO MADEIRA (41), a saber:

            Portanto, todo direito há de encontrar um nível ótimo de utilização, para que a satisfação de um direito individual por seu destinatário não fira o direito de outros e o interesse coletivo, pois sem isto não existiria a garantia de igualdade de todos perante a lei.

            A partir da necessidade de convivência harmônica dos direitos individuais, bem como da supremacia do interesse público, a Administração Pública é dotada de prerrogativas de intromissão na esfera dos interesses particulares, de maneira peculiar.

            Nesse sentido, SUNDFELD (42) cita algumas prerrogativas da administração pública, a exemplo da criação, por via de ato administrativo, de situação jurídica ativa típica da vida privada: direito de realizar atividade em geral proibida (ex.: autorização de porte de arma) ou reservada a um número limitado de exploradores (ex.: exportação de café), atribuição de status jurídico (ex.: cidadania, personalidade jurídica), definição do âmbito do exercício lícito dos direitos, compondo-lhes o perfil (isto é, o âmbito da atuação lícita de seus titulares), bem como o sacrifício de direitos, sem prejuízo da imposição aos particulares de deveres autônomos, que são as prestações dos particulares em favor da Administração.

            O exercício do poder de polícia passa pelos atos preventivos, fiscalizadores e repressivos. Os preventivos, de que são exemplo as autorizações e licenças, para as quais a Administração tem a competência de conceder ou não. Repressivos, os atos que importem, por exemplo, a produção de multa, embargo, intervenção de atividade e apreensões. Por fim, os atos fiscalizadores, são aqueles que resultam em inspeções, vistorias e exames realizados pela Administração.

            Há obrigação de o administrado suportar a verificação administrativa e de colaborar com ela, pois se trata de sujeição administrativa do direito, sob pena de incidir em sanção.

            A fiscalização das atividades particulares, a fim de que não venham a lesar o interesse público, nem ferir o interesse de terceiro, é uma das vertentes do poder de polícia, visto que a ordem e a segurança são imprescindíveis para o desenvolvimento equilibrado da sociedade.

            Não há espaço para a Administração Pública eleger o melhor momento para iniciar a fiscalização; desde que lhe atribuída pela lei, cumpre a ela empreender esforços para realizar a concreta e efetiva atividade administrativa, de modo que haja a punição aos transgressores da lei, cujo subproduto é o desestímulo a nova violação, garantindo-se, assim, a supremacia do interesse público. O poder de polícia limita direitos, não os extirpa.

            A fiscalização não pode ignorar a proteção constitucional aos direitos fundamentais.

            Nesse sentido, SUNDFELD (43) afirma, com precisão, que o interesse público – que tem prioridade em relação ao particular – é apenas o que a lei assim tenha definido.

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            Cumpre ainda registrar que, o Código Tributário Nacional, em seu art. 195, considerado cláusula geral de polícia, dispõe que não tem aplicação quaisquer disposições legais excludentes ou limitativas do direito dos agentes do Fisco de examinar mercadorias, livros ou documentos fiscais.

            HUGO DE BRITO MACHADO (44) diz que como advento do CTN ficou afastada a possibilidade de invocação das regras do Código Comercial, ou de qualquer outra lei que exclua ou limite o direito de examinar mercadorias, livros, arquivos, documentos, papéis e efeitos comerciais ou fiscais. As normas que preservam o sigilo comercial prevalecem entre os particulares, mas não contra a Fazenda Pública.

            No mesmo sentido, o Código Tributário Nacional reafirma a essência do poder de polícia, por ele definido no artigo 78, a saber:

            Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. (Redação dada pelo Ato Complementar nº. 31, de 28.12.1966)

            O exercício do Poder de Fiscalizar pode ser efetivado sem necessidade de autorização judicial, inclusive com o auxílio da força policial, existindo, pois, executoriedade para as decisões de fiscalizar, respeitados os direitos fundamentais.

            2.1 A inviolabilidade do domicílio e o interesse público

            A proteção constitucional ao domicílio contida no art. 5º, XI, da Constituição Federal (45) proclama que "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial".

            O constitucionalista ALEXANDRE DE MORAES (46) traz trecho digno de transcrição pelo conteúdo histórico da proteção ao denominado domicílio:

            O preceito constitucional consagra a inviolabilidade do domicílio, direito fundamental enraizado mundialmente, a partir das tradições inglesas, conforme verificamos no discurso de Lord Chatham no Parlamento britânico: O homem mais pobre desafia em sua casa todas as forças da Coroa, sua cabana pode ser muito frágil, seu teto pode tremer, o vento soprar entre as portas mal ajustadas, a tormenta pode nela penetrar, mas o Rei da Inglaterra não pode nela entrar.

            O caráter abrangente do conceito jurídico de casa estende-se tanto aos espaços habitados por qualquer pessoa quanto àqueles em que alguém exerce, com exclusão de terceiros, qualquer atividade de índole profissional, não sendo somente a residência, ou ainda, a habitação com intenção definitiva de estabelecimento.

            Ao utilizar o termo morador em vez de proprietário, quis a Constituição Federal desvincular a proteção ao domicílio do direito de propriedade, ficando cristalina que a finalidade é garantir o sossego e a segurança.

            Assim, é possível ao morador se opor a intromissão indesejada de terceiro, ainda que proprietário do imóvel.

            É espaço reservado destinado a possibilitar sossego e guardar sinais da vida privada.

            Nesse sentido, vale transcrever as palavras do professor KILDARE GONÇALVES CARVALHO (47):

            O termo "casa" empregado no texto constitucional compreende qualquer compartimento habitado, aposento habitado, ou compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade ( Código Penal, art. 150, parg 4°). É a projeção espacial da pessoa; o espaço isolado do ambiente externo utilizado para o desenvolvimento das atividades da vida e do qual a pessoa pretenda normalmente excluir a presença de terceiros. Da noção de casa fazem parte as idéias de âmbito espacial, direito de exclusividade em relação a todos, direito à privacidade e à não-intromissão. De se considerar, portanto, que nos teatros, restaurantes, mercados e lojas, desde que cerrem suas portas e neles haja domicílio, haverá a inviolabilidade por destinação, circunstância que não ocorre enquanto aberto.

            Não há inconstitucionalidade na extensão da garantia constitucional de inviolabilidade do domicílio pela legislação infraconstitucional, já que os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis com ela compatíveis.

            O Supremo Tribunal Federal, reiteradas vezes, conferiu interpretação extensiva ao conceito de domicílio, a exemplo do julgado a seguir parcialmente transcrito (48):

            A Carta Federal, pois, em cláusula que tornou juridicamente mais intenso o coeficiente de tutela dessa particular esfera de liberdade individual, assegurou, em benefício de todos, a prerrogativa da inviolabilidade domiciliar. Sendo assim, ninguém, especialmente a autoridade pública, pode penetrar em casa alheia, exceto (a) nas hipóteses previstas no texto constitucional ou (b) com o consentimento de seu morador, que se qualifica, para efeito de ingresso de terceiros no recinto doméstico, como o único titular do respectivo direito de inclusão e de exclusão. Impõe-se destacar, por necessário, que o conceito de "casa", para os fins da proteção jurídico-constitucional a que se refere o art. 5º, XI, da Lei Fundamental, reveste-se de caráter amplo, pois compreende, na abrangência de sua designação tutelar, (a) qualquer compartimento habitado, (b) qualquer aposento ocupado de habitação coletiva e (c) qualquer compartimento privado onde alguém exerce profissão ou atividade.

            Continua o Relator, no mesmo julgado:

            (omissões)

            O respeito (sempre necessário) à garantia da inviolabilidade domiciliar decorre da limitação constitucional que restringe, de maneira válida, as prerrogativas do Estado e, por isso mesmo, não tem o condão de comprometer a ordem pública, especialmente porque, no caso, como já enfatizado, as liminares em referência não impedem o Governo do Distrito Federal de exercer, com regularidade, o poder de polícia que lhe é inerente, circunstância esta que lhe permite adotar as providências administrativas necessárias à evacuação da área, desde que observadas as concernentes prescrições constitucionais. (....).

            Por fim, conclui:

            Torna-se essencial destacar, neste ponto, no contexto de nosso sistema de direito positivo, que a outorga, ao Poder Público, de prerrogativas e garantias de índole jurídico-administrativa não o exonera do dever fundamental de respeitar as limitações e de observar as restrições, que, estabelecidas pelo texto da Constituição da República (como a garantia da inviolabilidade domiciliar), incidem e condicionam a atividade da Administração Pública. A atividade administrativa do Estado, mesmo naquelas hipóteses em que o ato emanado do Poder Público se reveste de auto-executoriedade, constitui comportamento necessariamente subordinado aos princípios impostos pelo ordenamento constitucional. Na realidade, incumbe à Administração Pública agir com estrita observância dos parâmetros delineados pelo sistema normativo, sob pena de desrespeitar os próprios fundamentos em que se assenta o Estado Democrático de Direito.

            Publique-se. Brasília, 08 de setembro de l997.

            É pacífico naquela Corte o entendimento de que os escritórios e locais fechados ou de acesso restrito ao público são protegidos pela referida norma constitucional, inclusive vedando o exercício do poder de polícia.

            Todavia, a equiparação pela legislação infraconstitucional não impede a regulamentação por leis específicas do exercício do poder de polícia nas dependências das empresas, visto que não abrangidas pelo texto Constitucional, como demonstraremos.

            Frise-se que MARCELLO CAETANO (49) destaca a necessidade de o Estado, ao procurar evitar os danos sociais de caráter público pelo exercício do poder de polícia, não se ocupar de interesses privados, bem como respeitar a vida íntima e o domicílio dos cidadãos, sem, contudo, estender tal proteção aos escritórios das empresas.

            2.2 Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: HC 79.512-RJ

            Embora a posição do Supremo Tribunal Federal seja cristalina quanto aos valores preponderantes, é necessária a análise das conclusões do Acórdão relativo ao HC 79512-RJ (50), visto que preocupantes, se generalizadas.

            É evidente que não se pretende julgar o acerto ou erro da decisão posta, por não ser a via adequada, mas tão somente analisar os pressupostos e as conseqüências, inclusive, para o exercício do poder de polícia em outras especialidades.

            Preliminarmente, devemos estabelecer o princípio da convivência harmônica dos direitos, que em outras palavras significa a relatividade dos direitos, em homenagem ao método da ponderação dos interesses envolvidos.

            O caso paradigma cuida da anulação das provas obtidas, por meio de apreensões de documentos no escritório da empresa, sem autorização judicial, frente à oposição do proprietário.

            O Supremo Tribunal Federal concluiu, no HC 79512, pela prevalência do domicílio, assim considerado o escritório da empresa, frente ao poder de polícia, conforme trecho da ementa a seguir transcrito com negrito inexistente no original:

            EMENTA: Prova: alegação de ilicitude da obtida mediante apreensão de documentos por agentes fiscais, em escritórios de empresa - compreendidos no alcance da garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio - e de contaminação das provas daquela derivadas: tese substancialmente correta, prejudicada no caso, entretanto, pela ausência de qualquer prova de resistência dos acusados ou de seus prepostos ao ingresso dos fiscais nas dependências da empresa ou sequer de protesto imediato contra a diligência.

            1. Conforme o art. 5º, XI, da Constituição - afora as exceções nele taxativamente previstas ("em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro") só a "determinação judicial" autoriza, e durante o dia, a entrada de alguém - autoridade ou não - no domicílio de outrem, sem o consentimento do morador. 1.1. Em conseqüência, o poder fiscalizador da administração tributária perdeu, em favor do reforço da garantia constitucional do domicílio, a prerrogativa da auto-executoriedade. 1.2. Daí não se extrai, de logo, a inconstitucionalidade superveniente ou a revogação dos preceitos infraconstitucionais de regimes precedentes que autorizam a agentes fiscais de tributos a proceder à busca domiciliar e à apreensão de papéis; essa legislação, contudo, que, sob a Carta precedente, continha em si a autorização à entrada forçada no domicílio do contribuinte, reduz-se, sob a Constituição vigente, a uma simples norma de competência para, uma vez no interior da dependência domiciliar, efetivar as diligências legalmente permitidas: o ingresso, porém, sempre que necessário vencer a oposição do morador, passou a depender de autorização judicial prévia. (....)

            É verdade que o Supremo Tribunal Federal já concluiu que a proteção conferida à inviolabilidade do domicílio não pode ser transformado em garantia de impunidade de crimes, que em seu interior se praticam.

            ALEXANDRE DE MORAES (51) também defende que o domicílio tem prevalência diante dos Órgãos da Administração Pública, afirmando que nem a Polícia Judiciária, nem o Ministério Público, nem a administração tributária, nem a Comissão Parlamentar de Inquérito com o objetivo de apreender, durante o período diurno, e sem ordem judicial, quaisquer objetos que possam interessar ao Poder Público.

            Invoca, ainda, o art. 145, parágrafo 1°, da Constituição Federal, para dizer que a administração tributária está sujeita, na efetivação das medidas e na adoção de providência que repute necessária, ao respeito incondicional aos direitos individuais, dentre os quais avulta, por sua indiscutível importância, o direito à inviolabilidade domiciliar, embora nada mencione o texto constitucional a respeito.

            2.3 Crítica: ponderação dos bens jurídicos

            Nos sistemas democráticos, a Constituição é fundamento do Direito e ergue-se perante a sociedade e o Estado como o mais alto valor, posto que de sua observância deriva o exercício permanente da autoridade legítima e consentida.

            A incompatibilidade entre qualquer disposição normativa e a Constituição Federal consubstancia situação de inconstitucionalidade.

            JOSÉ CRETELLA JÚNIOR (52) ensina que os direitos individuais são relativos, assim também acontece com o poder de polícia, que, longe de ser absoluto, onipotente, incontrolável, e circunscrito, jamais podendo pôr em perigo a liberdade e a propriedade.

            São oportunas as palavras do Professor ONOFRE ALVES BATISTA JÚNIOR (53):

            Entendemos que a situação de "submissão" em que o administrado se encontra, se manifesta, nesta seara, em razão de não ser a liberdade do indivíduo absoluta, isto, é não existem direitos fundamentais absolutos; por outro lado, a propriedade não pode ser utilizada contrariamente aos interesses da coletividade, ou seja, como traça a própria CRFB/ 88, deve atender a sua função social ( arts. 5°, XXIII, e 170 III).

            Diante das contradições e colisões normativas desses direitos deve o intérprete, caso a caso, estabelecer limites e condicionamentos de forma a conseguir o cumprimento do princípio constitucional da proporcionalidade, que significa harmonização ou concordância prática entre eles.

            É evidente que não se pretende sejam os direitos fundamentais ignorados em favor das prerrogativas da Administração Pública.

            Como ressaltado, sem pretensão retórica, a regulação dos direitos fundamentais é medida de sobrevivência e reconhecimentos dos direitos alheios.

            Não há possibilidade de exercício ilimitado dos direitos fundamentais sem prejuízo ao sistema jurídico, nesse sentido é lapidar o acórdão a seguir transcrito (54):

            EMENTA

            PODER DE POLICIA (´´POLICE POWER´´) - FACULDADE QUE TEM O ESTADO DE OPOR A LIBERDADE DO CIDADAO AS CONDIÇÕES NECESSARIAS PARA GARANTIR A SAÚDE, A VIDA, A SEGURANÇA INDIVIDUAL E OS INTERESSES LEGITIMOS. SE ESSA E A REGRA MESMO NO SILENCIO DA CONSTITUIÇÃO, AINDA MAIS IMPERIOSAMENTE HÁ DE PREVALECER NUM CASO EM QUE A PROPRIA CONSTITUIÇÃO ESTABELECEU (...). EM TERCEIRO LUGAR, AS CONSTITUIÇÕES, COMO AS LEIS, TÊM DE SER ENTENDIDAS HARMONICAMENTE, DE MODO QUE SUAS PARTES SE CONCILIEM E NÃO SE DESTRUAM.

            O artigo 187 do Novo Código Civil nada faz senão positivar regra de convivência harmônica dos direitos, ao definir que o exercício de determinado direito pode ser socialmente danoso, a depender da finalidade pretendida.

            Os doutrinadores são uníssonos em afirmar a relatividade dos direitos fundamentais, não sendo diferente para o exercício por pessoas jurídicas.

            Vale ressaltar que nem todo direito outorgado à pessoa física será concedido à pessoa jurídica. Nesse sentido a Constituição Portuguesa tem dispositivo expresso (55).

            Não foi sem razão que a Constituição protegeu a casa e não o domicílio.

            A casa é espaço privado inviolável, reduto do indivíduo, ressalvadas as hipóteses previstas taxativamente pela Constituição, em que cede para preservar bens ou direitos de magnitude superior.

            Parece-nos equivocado conferir a proteção destinada constitucionalmente à casa aos compartimentos não abertos ao público, onde alguém exerça profissão ou atividade, embora tal concepção tenha prestígio na Jurisprudência Nacional.

            Quis a Constituição proibir o retrocesso pelo legislador ordinário no que se refere à casa, nada dispondo quanto aos denominados escritórios das empresas, a fim de que a legislação infraconstitucional melhor regulasse cada situação.

            A proteção por equiparação aos escritórios das empresas é legítima, pois a Constituição Federal representa o mínimo de proteção conferida ao indivíduo.

            Todavia, o legislador ordinário poderá autorizar a ação de agentes públicos, presente o interesse público, mesmo em locais equiparados ao domicílio, sem autorização judicial, pois não houve proteção expressa e absoluta ao domicílio da pessoa jurídica.

            Isso não significa que os locais equiparados a casa não detenha proteção quanto à exclusão de terceiros não autorizados.

            Não se pretende que os preceitos constitucionais acerca dos direitos, liberdades e garantias sejam aplicáveis e vinculem apenas as entidades privadas.

            Ocorre que, no caso, não houve proteção expressa da Constituição ao domicílio da pessoa jurídica nos mesmos moldes da casa.

            Portanto, é constitucional a entrada de agentes públicos nas dependências das empresas, quando encontre respaldo na lei, para o exercício de suas atribuições legais, a exemplo da atuação da vigilância sanitária.

            Será, contudo, ilícita a entrada contra a vontade do proprietário da pessoa jurídica por particular, visto que, para esse fim, permanece válida a proteção infraconstitucional.

            Quer-se, com isso, deixar claro que a proteção ao domicílio da pessoa jurídica não tem a mesma magnitude da proteção constitucional conferida à casa do indivíduo, visto que tem finalidades e propósitos completamente diversos.

            Nesse sentido, preciosa a lição de ONOFRE ALVES BATISTA JÚNIOR (56):

            É certo e sabido que não existem direitos absolutos e ilimitáveis. Por sua vez, podemos afirmar que existem direitos fundamentais, cuja titularidade pode ser atribuída a pessoas jurídicas, entretanto, uma série destes, pelo seu próprio caráter, não podem estar no rol de direitos fundamentais, cuja titularidade pertença a pessoas jurídicas.

            Noutra oportunidade aduz em complemento ao raciocínio empregado:

            Primeiro porque, mais do que domicílio, expressão que poderia trazer dúvidas, a CRFB/88 utilizou-se da expressão "casa", e se refere a esta como asilo inviolável do "indivíduo", assim, por expressa limitação do texto constitucional, devemos afastar do dispositivo as pessoas jurídicas, pois no vocábulo, mesmo que se force as possibilidades do sentido da letra, é impossível englobar as empresas comerciais, industriais, etc. (sic)

            Em segundo lugar, se a pessoa jurídica é uma ficção, uma criação artificial do mundo do Direito, descabe atribuirmos a ela um direito tipicamente humano, como é o direito à intimidade familiar.

            A ponderação de interesses impõe a análise da questão pelo viés da razoabilidade.

            A lei só poderá restringir os direitos nos estrito limite necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, no caso, o interesse público.

            O Professor MARCELLO CAETANO (57) diz que os poderes de polícia não devem ser exercidos de modo a impor restrições e a usar de coação além do estritamente necessário. A ação da polícia deve medir a sua intensidade e extensão pela gravidade dos atos que ponham em risco a ordem social. O emprego imediato de meios extremos contra ameaças hipotéticas ou mal desenhadas constitui abuso de autoridade. Tem de existir proporcionalidade entre os males a evitar e os meios a empregar para a sua prevenção.

            Todavia, não é possível ignorar a prevalência do interesse público ante ao interesse privado, tornando sem efeito o denominado atributo da auto-executoriedade, especialmente quando não há ressalva Constitucional.

            Enfraquecer o Estado em áreas estratégicas, de maneira a prestigiar ao infrator das mais variadas normas, colocando, inclusive, em risco a integridade ou a vida dos indivíduos, não parece ser a melhor solução.

            Ressalte-se a prevenção aos ilícitos fiscais reveste-se em favor da sociedade, como vertente do direito à igualdade tributária.

            Quanto à existência do interesse público na defesa do interesse imediato da administração, vale citar o Professor José dos Santos Carvalho Filho (58):

            As atividades administrativas são desenvolvidas pelo Estado para benefício da coletividade. Mesmo quando age em vista de algum interesse estatal imediato, o fim último de sua atuação deve ser voltado para o interesse público. E se, como visto, não estiver presente esse objetivo, a atuação estará inquinada de desvio de finalidade. Desse modo, não é o indivíduo em si o destinatário da atividade administrativa, mas sim o grupo social num todo. Saindo da era do individualismo exacerbado, o Estado passou a caracterizar-se como Welfare State (Estado/ bem estar), dedicado a atender o interesse público. Logicamente, as relações sociais vão ensejar, em determinados momentos, um conflito entre o interesse público e o interesse privado, mas, ocorrendo esse conflito, há de prevalecer o interesse público.

            Caso seja aplicada a mesma regra para o exercício do poder de polícia Sanitário, por exemplo, instaurar-se-á o caos, já que os fiscais poderão ser impedidos de entrar nos espaços não acessíveis ao público para realizar inspeções, a exemplo dos escritórios e depósitos das empresas, sendo obrigados a recorrer ao Poder Judiciário.

            SUNDFELD (59) deixa claro que a executoriedade somente pode ser utilizada se expressamente determinada na lei, ou se e na medida da estrita necessidade administrativa, sendo que a Administração tem competências indisponíveis, e, portanto, deve poder desfrutar da possibilidade de efetivá-las sem ter de se socorrer previamente do Judiciário.

            Será questionável, inclusive, a exigência de permissão irrestrita à Administração de entrada nas empresas para avaliação da permanência ou não de autorização de funcionamento, já que a avaliação inicial, com permissão de inspeção, é pressuposto lógico para a expedição do Alvará, ao contrário da manutenção, que não autoriza a entrada irrestrita pelos agentes da administração.

            Restará frustrada a fiscalização, visto que, salvante os casos de prévia autorização judicial, será impossível a atuação preventiva, que ficará ao talante do particular.

            Nesse sentido, adverte ONOFRE ALVES BATISTA JÚNIOR (60) que se exigirmos a intervenção judicial para cada inspeção dos agentes do Fisco, nos locais onde se fixam as pessoas jurídicas, ficará inviabilizada a atuação fiscalizadora, que deixaria de contar com qualquer possibilidade de surpreender o contribuinte infrator, obrigando a levar ao Judiciário o juízo de oportunidade e conveniência de cada atuação inspetora, em patente inversão de papéis por parte dos órgãos do poder.

            Daí considerarmos equivocada outorgar às empresas a mesma proteção conferida à casa pela Constituição Federal, visto que tem finalidades diferentes e podem gerar, com maior amplitude, danos sociais.

            Com sabedoria adverte JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, quanto à necessidade de munir o Estado de meios fiscaliza tórios (61):

            Não adiantaria deter o Estado o poder de impor restrições aos indivíduos se não dispusesse dos mecanismos necessários à fiscalização da conduta destes. Assim, o poder de polícia reclama do Poder Público a atuação de agentes fiscalizadores da conduta dos indivíduos. A fiscalização apresenta duplo aspecto: um preventivo, através do qual os agentes da Administração procuram impedir um dano social, e um repressivo, que, em face da transgressão da norma de polícia, redunda na aplicação de um sanção.

            A pergunta não solucionada pelas conclusões do acórdão paradigma é a recusa em permitir a entrada nas empresas pode ser entendida como embaraço à fiscalização ou desobediência à ordem legal de funcionário público?

            Por coerência, não é possível admitir que o domicílio seja protegido contra a entrada forçada, mas o proprietário ao exercer tal direito possa ser punido.

            Assim, só será legítimo aos agentes fiscais, sem autorização judicial ou do proprietário, entrar e permanecer nas dependências acessíveis aos particulares em geral, sem qualquer prerrogativa.

            Equiparou-se o Agente Público ao particular.

            Conferem-se atribuições, mas ignora-se a necessidade de outorga de prerrogativas.

            É o mesmo que indagar ao infrator se permite a realização de inspeção pelos fiscais.

            Embora seja chocante tal conclusão, é consentânea com o decidido no caso paradigma.

            Impõe-se a subordinação do poder econômico ao poder político democrático, manifesto pela lei, para assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, e reprimir práticas lesivas do interesse geral, munindo-se os Agentes Públicos de prerrogativas capazes de permitir o cumprimento das metas estabelecidas pela visão do Estado Social.

            No âmbito da atuação preventiva das infrações fiscais, compete à Administração Pública exercer a fiscalização, observadas as formalidades legais, mas sem necessidade de autorização prévia da autoridade judiciária, em qualquer local fechado que não seja a casa do cidadão, basta, para tanto, disposição expressa em lei.

            Por fim, vale ressaltar que no caso paradigma, em tese, existia a prática de crime contra a ordem tributária, o que afasta a discussão sobre a inviolabilidade do domicílio da empresa, já que há permissivo constitucional para o ingresso, durante o dia, no caso de flagrante delito.

Sobre o autor
Carlos Alberto Silva

Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Professor de Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Carlos Alberto. O poder de polícia e o domicílio à luz da jurisprudência do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 729, 4 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6957. Acesso em: 23 dez. 2024.

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