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O poder de polícia e o domicílio à luz da jurisprudência do STF

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Agenda 04/07/2005 às 00:00

Esta monografia pretende contribuir para a delimitação do legítimo exercício do poder de polícia, quando confrontado com a proteção conferida pela Constituição aos direitos fundamentais.

RESUMO

            Esta monografia pretende contribuir para delimitação do legítimo exercício do poder de polícia quando confrontado com a proteção conferida pela Constituição aos Direitos Fundamentais.

            Permitirá uma leitura do poder de polícia a partir da filtragem constitucional a que estão submetidas todas as normas infraconstitucionais, sem ignorar a função outorgada ao Estado de garantir o interesse público por meio de medidas ordenadoras, abordando possíveis conseqüências da adoção de determinadas concepções sobre o alcance da proteção conferida aos direitos fundamentais.

            A escolha do tema advém do conhecimento do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus 79512-RJ, no qual firmou entendimento no sentido de haver prevalência da inviolabilidade do domicílio sobre o exercício do poder de polícia em atividade fiscal.

            Analisaremos se a proteção constitucional à casa do indivíduo abarca também as dependências das empresas, especialmente no que se refere à oponibilidade ao exercício do poder de polícia fiscal, atento ao método de ponderação dos bens jurídicos envolvidos.


INTRODUÇÃO

            Darcy Azambuja (1) conceitua o Estado como a organização político-jurídica de uma sociedade para realizar o bem público, com governo próprio e território determinado.

            Nesse mister, exigem-se prerrogativas dos agentes públicos para o exercício das atribuições legais a contento.

            O Estado é meio e não um fim em si mesmo. Existe para garantir o bem comum.

            O poder de polícia, com alguma controvérsia, é instrumento de destaque na projeção comportamental, a fim de garantir a prevalência do interesse público, como manifestação da vontade geral.

            Estabelecer limites ao exercício deste poder, sem inviabilizar a atuação do Estado na prevenção e repressão aos atos ilícitos praticados por particulares, constitui temática largamente explorada pelos doutrinadores pátrios e alienígenas.

            O Supremo Tribunal Federal renovou a discussão ao decidir pela prevalência absoluta do domicílio das empresas frente ao exercício do poder de polícia fiscal, deixando evidenciada a relevância do tema para solução dos principais problemas relativos ao Direito Público, incomodando-nos a reanalisar os fundamentos e as conclusões.

            São as considerações que pretendemos tecer nesta monografia, analisando os fundamentos do Estado de Direito, o exercício do denominado poder de polícia, sem prejuízo da abordagem do conceito de domicilio, como direito fundamental relativo.


CAPÍTULO 1

PODER DE POLÍCIA

            1.1 Conceitos

            O termo Polícia é equívoco, razão pela qual é imprescindível delimitar o alcance pretendido neste trabalho.

            Frise-se, por oportuno, que não nos ocuparemos da polícia criminal, classificada, para fins meramente didáticos, pela doutrina clássica em Polícia Judiciária e Polícia Preventiva, cujos objetivos são a apuração de infrações penais e a prevenção dos ilícitos penais, respectivamente.

            A polícia administrativa será o foco desta monografia, embora também seja considerada preventiva, será concebida excluindo-se a atuação criminal, como aquela que tem por objetivo tomar providências e fazer respeitar todas as medidas necessárias para a manutenção da ordem, da segurança e da salubridade públicas.

            Valemo-nos da classificação que separa a polícia em duas classes – polícia de segurança e polícia administrativa -, concebendo-se a primeira como a que tem por escopo defender os direitos dos indivíduos e do Estado, e a segunda como a tutela da boa ordem administrativa.

            A expressão poder de polícia era utilizada para toda ação estatal dirigida ao bem-estar dos administrados. Essa visão é própria da época dos Estados absolutos, nos quais a autoridade era incontestável perante seus súditos. O direito era considerado como emanado do soberano (rei), que não errava.

            O ilustre Professor JOSÉ CRETELLA JÚNIOR (2) é quem nos dá a noção do quanto é imprecisa a expressão polícia, ao dizer que é o termo genérico com que se designa a força organizada que protege a sociedade, livrando-a de toda vis inquietativa.

            De tão vago chega a abarcar atos sobrenaturais.

            No Estado de Polícia, os poderes eram determinados segundo uma avaliação casuística do que deveria ser considerado interesse público.

            Nos estados absolutistas, o poder despótico do soberano justificava-se como decorrência do próprio poder divino, conforme descreve KILDARE GONÇALVES CARVALHO (3):

            Verifica-se, pois, que em Hobbes há alienação total dos direitos individuais, que se concentram no soberano, o qual, inclusive, não participa do pacto de formação do Estado, celebrado apenas entre os indivíduos, perante os quais não assume nenhuma obrigação. É o Estado absolutista e totalitário o que decorre das idéias de Hobbes.

            Surge, entretanto, na civilização ocidental, o sentimento de necessidade de estabelecer limitações ao poder estatal, de modo a estabelecer garantias para proteção das liberdades individuais.

            O Estado liberal emerge no século XVIII, por inspiração da Revolução Francesa, calcado na liberdade e igualdade entre os homens, marcado pelo não-intervencionismo.

            O Estado passou a encontrar limites jurídicos, e ao invés de apenas ditá-los, passou a estar vinculado a eles, concebido para atender às necessidades humanas e por isso ele é o meio e não o fim, tudo em decorrência da nova concepção ideológica (4) do Estado liberal:

            Para evitar conflitos, os homens celebram um pacto, criador da sociedade política, mediante o consentimento mútuo e livre, em que alienam parte de seus direitos. Tal acordo gera um governo para agir como um juiz sobre a terra, para solucionar os conflitos que porventura venham a surgir, e castigar os ofensores. Enfim, o Estado não pode fundamentar-se em nada que não seja o consentimento do povo. Pelo pacto social, trust (crédito, confiança, encargo, cobrança), o povo concedia aos governantes um poder limitado e revogável. È que os cidadãos estavam obrigados ao governo enquanto não houvesse, pelos governantes, abuso nas prerrogativas individuais. Caso o governo, de liberal o constitucional passasse a arbitrário e tirano, perdia o direito à obediência e os cidadãos podiam exercer o direito de resistência, fosse o abuso do poder legislativo, fosse do executivo.

            O homem passa a ser concebido como o fim último do Estado, o homem não existe para o Estado.

            O objeto central do Estado passa a ser o indivíduo, cujo objetivo é garantir, acima de tudo, a liberdade das pessoas. Há, então, segregação do Estado em relação à vida social, econômica e religiosa dos indivíduos.

            A exacerbação da liberdade individual e a exaltação da propriedade privada propiciaram o desenvolvimento do liberalismo econômico clássico, onde se reduz ao máximo o papel do Estado, sendo a sociedade gerida pelo somatório dos interesses individuais, a exemplo do mercado, causando uma absoluta relativização do conceito de "justo", visto que estabelecido sob a ótica do indivíduo isolado do contexto da sociedade.

            Essa visão liberal, segundo revela ONOFRE ALVES BATISTA JÚNIOR (5), apontava-se os seguintes caracteres da noção de Polícia:

            Só se justificariam as limitações aos direitos individuais nos três casos (segurança, salubridade e moralidade) e apenas na medida em que essa atuação tivesse por finalidade evitar danos à comunidade; a atuação estadual deveria ser tão-só negativa, ou seja, estabelecer restrições e proibições, e não obrigações positivas por parte do indivíduo e muito menos por parte do Estado; tratava-se de função administrativa do tipo preventivo-repressiva, que objetivava tutelar o existente, sem pretensão alguma de promover ou melhorar a situação reinante.

            Há um flagrante predomínio do culto à liberdade.

            O Estado era visto potencialmente como inimigo dos direitos humanos, daí a necessidade de no primeiro momento limitar, restringir, cercear, cingir atividade estatal. A visão latente da época estabelecia o antagonismo entre Estado e sociedade civil.

            Todavia, o Estado mínimo não atende às necessidades da sociedade, como constatado no direito civil, onde prevalecia o dirigismo contratual, que fortalecia ainda mais as classes dominantes, aumentando a classe dos excluídos do mínimo existencial.

            Faz-se necessária a intervenção do Estado no mercado. Percebe-se que a sociedade não pode funcionar a contento sem a atuação estratégica do Estado, principalmente em atividades sociais, que pela natureza não proporcionam o lucro desejado.

            A ponderação é a única opção racional, a fim de evitar os extremos do absolutismo tanto quanto o liberalismo exacerbado, ambos insuficientes e prejudiciais à sociedade.

            Com o Estado Social, surgem os denominados direitos de segunda dimensão ou geração, assim considerados os direitos sociais, que exigem prestação positiva pelo Estado (provedor) em confronto com a visão do não-fazer, típica dos direitos de primeira dimensão ou geração.

            Enquanto na concepção absolutista o Estado pode intervir sem explicitar as razões da atuação, a visão liberal exige que a atuação do Estado seja restrita ao essencial, é o Estado mínimo.

            Nos Estados absolutistas, o poder de polícia é ilimitado, atingindo-se as liberdades públicas, contra o que se investem os liberais.

            O Estado Social pretende ser o meio termo entre o absolutismo e o liberalismo, este despreocupado com os excluídos, aquele com as liberdades públicas.

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            Verifica-se que a concepção do poder de polícia está diretamente relacionada à visão da função do Estado.

            Nesse sentido, SUNDFELD (6), em excelente monografia, relata que:

            A idéia de poder de polícia foi cunhada para um Estado mínimo, desinteressado em interferir na economia, voltado, sobretudo, à imposição de limites negativos à liberdade e à propriedade, criando condições para convivência dos direitos. Daí haver-se definido o poder de polícia como imposição ao particular do dever de abstenção, de não fazer. Mas, modernamente, a interferência estatal se intensificou e mudou de qualidade, por conta da superação do liberalismo clássico. O Estado Social, mais do que pretender a harmonização dos direitos individuais, impõe projetos e serem implementados coletivamente: o desenvolvimento nacional, a redução das desigualdades, a proteção do meio ambiente, a preservação do patrimônio histórico.

            Não poupa críticas à utilização da expressão polícia, vejamos (7):

            Desde logo, é importante a questão do rótulo. Não convém falar em poder de polícia porque ele: a) remete a um poder – o de regular autonomamente as atividades privadas – de que a Administração dispunha antes do Estado de Direito e que, com sua implantação, foi transferido para o legislador; b) está ligada ao modelo do Estado liberal clássico, que só devia interferir na vida privada para regulá-la negativamente, impondo deveres de abstenção, e, atualmente, a Constituição e as leis autorizam outros gêneros de imposição; c) faz supor a existência de um poder discricionário implícito para interferir na vida privada que, se pode existir em matéria de ordem pública – campo para o qual o conceito foi originalmente cunhado – não existe em outras, para as quais a doutrina transportou-o acriticamente, pela comodidade de seguir usando velhas teorias.

            Como forma de minimizar as falhas apontadas, propõe a substituição pela expressão "Administração Ordenadora" (8), por ele definida como parcela da função administrativa desenvolvida com o uso do poder de autoridade, para disciplinar, nos termos e nos fins da lei, os comportamentos dos particulares no campo de atividades que lhes é próprio. Com isso, busca fortalecer o princípio da legalidade.

            A rigor, não se trata de "poder de polícia", já que Poder, no sentido político, é uno e indivisível, podendo separar-se em funções estatais.

            Trata-se de dever-poder (9).

            A crítica mais incisiva é a de que se criou uma concepção autônoma no direito administrativo, o poder de polícia, para indicar algo que em verdade resume-se à aplicação da lei – conduta exigível de qualquer órgão do Estado, vinculados ou não à Administração.

            JOSÉ MARIA PINHEIRO MADEIRA (10) relata a tentativa da doutrina em minimizar os impasses produzidos pela expressão poder de polícia, momento em que se troca o título para atividade de limitação, procedimentos ablatórios, administração de vigilância; atividade interventora, poder ordenador, poder regulador.

            Não obstante as críticas apontadas pela doutrina, adotaremos a expressão poder de polícia ao longo deste trabalho, visto que consignada, inclusive, em texto legal, recepcionado pela Constituição Federal.

            Quanto à origem, o mestre ONOFRE ALVES BATISTA JUNIOR relata que o vocábulo polícia encontra sua origem na palavra grega politeia, e do termo latino politia, e era utilizado para designar todas as atividades da polis, ou seja, significava a constituição da cidade, constituição do Estado, descrevendo a evolução histórica (11):

            Já no avanço dos tempos, no século XVII, passou-se a estabelecer uma distinção entre polícia e justiça; a primeira se referia as normas atinentes à Administração, decretadas pelo príncipe, que afastava a apreciação dos tribunais; a outra dizia respeito às normas que ficavam fora da ação do príncipe e que eram aplicadas pelos juízes. Na onda do Liberalismo, passou-se a privilegiar a liberdade, centrando toda preocupação na atribuição de direitos ao indivíduo, devendo toda interferência te caráter excepcional. A atuação estatal passa a ser exceção, restrita à manutenção da ordem pública. Daí restringiu-se o Poder de polícia a Polícia de Segurança. Parte-se, desta forma, de um Estado neutro a um Estado ético, de um Estado mínimo ao Estado Providência, do Estado Polícia ao Estado de bem–estar, do Estado legislativo ao Estado Administrativo.

            Já CAIO TÁCITO (12) conta que a expressão Poder de polícia teria surgido em 1827, cunhada pelo juiz Marshall, presidente da Corte Suprema dos EUA, no caso Brown versus Maryland, como limite ao direito de propriedade para subordiná-lo a interesses respeitáveis da comunidade.

            Noutro giro, o Professor JOSÉ MARIA PINHEIRO MADEIRA (13) trata das várias concepções afetas ao Poder de polícia:

            Depois deste ponto de vista doutrinário, eclodiram, nos vários países, três vertentes sobre o assunto. A primeira defendia que toda atuação coativa do Estado era polícia. Para uma segunda corrente, a polícia administrativa seria a ação administrativa voltada para prevenir a coletividade contra danos provocados por atos humanos e por fatos da natureza. A terceira, finalmente, tende a ver polícia como ação da Administração garantidora da boa ordem, em face dos perigos decorrentes da atuação da livre vontade humana.

            MARCELLO CAETANO (14) define poder de polícia como "o modo de actuar da autoridade administrativa que consiste em intervir no exercício das actividades individuais susceptíveis de fazer perigar interesse gerais, tendo por objecto evitar que se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que as leis procuram prevenir (sic).

            É comum a doutrina desdobrar a polícia administrativa em geral e especial, aquela visa garantir genericamente a segurança pública, a defesa dos bons costumes, esta tem por objeto a prevenção em determinados setores da vida social, o que origina a polícia sanitária, a polícia econômica, a polícia dos transportes e da viação, a polícia do trabalho, entre outras.

            A título de ilustração é oportuno transcrever a conceituação do poder de polícia apresentada por EDMUNDO FERREIRA DE FARIA (15), numa concepção estrita, a saber:

            Entretanto, pode-se afirmar que poder de polícia, em sentido estrito, é a atribuição legal conferida à Administração Pública para, no exercício de suas competências (regrada ou discricionária), promover a fiscalização do exercício do direito de propriedade e de liberdade, com vistas a evitar abusos em prejuízos da coletividade ou do Estado. Para isso, pode valer-se de seus meios próprios, nos limites da lei, para coibir os atos lesivos e impor sanções previstas em lei.

            JOSÉ CRETELLA JÚNIOR (16) ensina que a expressão poder "de" polícia não se confunde com poder "da" polícia, porque se a polícia tem a possibilidade de agir, em concreto, pondo em atividade todo o aparelhamento de que dispõe, isso se deve à potestas que lhe confere o poder de polícia. O poder "de" polícia é que fundamenta o poder "da" polícia. Deixa claro que o poder de polícia é a causa, o fundamento, sendo que a polícia é a conseqüência. Por fim, conceitua o poder de polícia como a faculdade discricionária do Estado de limitar a liberdade individual, ou coletiva, em prol do interesse público.

            Feitas essas considerações, é importante diferenciarmos o poder de polícia de serviço público, visto que as duas atividades decorrem do exercício da função administrativa.

            Na tentativa de estabelecermos critérios, valemo-nos, novamente, dos ensinamentos do Professor ONOFRE ALVES BATISTA JÚNIOR (17):

            De um lado, colocam o Poder de polícia como limite à conduta individual, e, portanto, atividade negativa, e de outro, o serviço público, como atividade positiva, que se traduz em atividade da Administração que vai trazer um acréscimo aos indivíduos.

            Parece-nos, todavia, insuficiente tal distinção, principalmente atento ao fato de que a doutrina não mais considera o poder de polícia como atividade de caráter unicamente negativo.

            A fim de desvendarmos os elementos do poder de polícia, recorremo-nos novamente ao mestre JOSÉ CRETELLA JÚNIOR (18):

            O primeiro elemento, de obrigatória presença na definição de polícia, é o da fonte de que provém, o Estado, ficando, pois, de lado, qualquer proteção de natureza particular; o segundo elemento, o escopo, de natureza teleológica, também é essencial para caracterizar a polícia, ou seja, não existe o instituto se o fim que se propõe por outro que não o de assegurar a paz, a tranqüilidade, a boa ordem, para cada um e para todos os membros da comunidade; o terceiro elemento que não pode faltar na definição de polícia é o que diz respeito, in concreto, às limitações a qualquer tipo de atividade que possa perturbar a vida em comum.

            Verifica-se que o serviço público pode ser prestado por particulares, já o exercício do poder de polícia não pode ser delegado, visto que se trata de poder de império, o que provocaria o desequilíbrio entre os particulares, conforme já decidiu o pleno do Supremo Tribunal Federal (19).

            É verdade que o caráter limitador das atividades dos particulares em favor da coletividade salta como grande traço diferenciador entre o exercício do poder de polícia e o serviço público em sentido estrito.

            O fundamento do poder de polícia administrativo é evitar danos à coletividade a partir da ação de particular.

            É a atividade estatal que tende a regular o equilíbrio necessário entre a existência individual e o bem comum quando perturbado.

            Trata-se de atuação estatal, atual ou potencial, sobre os direitos fundamentais em prol do interesse público.

            1.2 Apontamentos

            O ato de polícia deve ser praticado respeitando-se todos os requisitos aplicáveis aos atos administrativos em geral, já que nada mais é do que uma subespécie, motivo pelo qual é dotado dos mesmos atributos.

            Todos os princípios sob os quais se desenvolve a função administrativa aplicam-se ao poder de polícia, daí porque analisaremos apenas os que provocam maiores indagações.

            1.2.1 Legalidade

            É comum encontrarmos afirmações no sentido de ser o Poder de polícia inerente à Administração Pública (Poder de polícia implícito).

            Todavia, no Estado de Direito que nenhum sacrifício ou restrição pode ser imposto ao cidadão sem previsão em lei.

            Sob o enfoque do Princípio da Legalidade, é considerada abusiva toda ação sem lastro na lei.

            Dessa forma, os direitos e garantias fundamentais, a liberdade e a propriedade, só por meio de lei é que podem ser restringidas.

            SUNDFELD (20) defende que inexiste poder para a Administração Pública que não seja concedido pela lei, sendo vedado implicitamente o que ela não concede expressamente.

            Confirma a concepção liberal ao rejeitar qualquer poder de polícia sem delimitação legal, senão vejamos (21):

            De outro lado, não pode a lei conceder ao administrador "poderes inespecíficos, indeterminados, totais", sob pena de pôr em xeque a globalidade do sistema jurídico, destruir a separação de funções e comprometer os direitos constitucionais dos indivíduos.

            Todavia, na mesma obra, reconhece que nem toda limitação ou restrição é imposta diretamente pela lei.

            A obrigatoriedade do Estado em seguir as leis que promulga para os cidadãos denota defesa da legitimidade da norma.

            Não obstante ser a lei parâmetro para atuação do Administrador Público, é impossível, a priori, para o legislador prever todos os problemas vivenciados pela sociedade.

            O administrador público, por outro lado, não se desincumbe de solucionar as questões de Estado por ausência de previsão em lei.

            Nessa situação, deverá proceder à integração administrativa.

            JOSÉ CRETELLA JÚNIOR (22) defende a atuação da administração pública com base em autorização legal explícita ou implícita. Com maestria justifica:

            A atividade da polícia administrativa é multiforme, imprevisível, não podendo se delimitada em todos os setores em que deve desdobrar-se. Sendo infinitos os recursos de que lança mão o gênero humano, a polícia precisa intervir sem restrições, no momento oportuno, pois que sua ação é indefinida como a própria vida, não sendo possível aprisioná-la em rígidas fórmulas, motivo por que certa flexibilidade ou a livre escolha dos meios é inseparável da polícia.

            LUCIA VALLE FIGUEIREDO (23) apesar de reconhecer o princípio da legalidade como conquista do Estado de Direito, a fim de que os cidadãos não se submetam ao abuso de poder, pondera não ser possível, diante do ordenamento jurídico, e não apenas de simples leis, omitir-se o administrador de solver a questão que lhe for posta por entender faltar norma expressa, desde que - como já acentuado – tal integração não leve a imposições ou a sanções.

            É a melhor visão, pois não isenta o administrador de proporcionar soluções reivindicadas pela sociedade, ao mesmo tempo em que exige previsão em lei para imposição de sanções ou sacrifícios a direitos fundamentais do cidadão.

            1.2.2 Proporcionalidade

            Não é suficiente, contudo, a previsão em lei para se impor limitações e sacrifícios aos direitos fundamentais, sendo imprescindível apuração da legitimidade da norma, a partir da consideração dos meios empregados e os fins almejados.

            A proporcionalidade é o elemento essencial à validade de qualquer atuação da Administração Pública. Não é diferente com os atos de polícia.

            Nesse sentido, novamente recorremos ao magistério do Professor SUNDFELD (24):

            É inconstitucional a restrição imposta pela lei aos direitos dos indivíduos quando, à pergunta: "por que foi ela instituída?" "a resposta não for senão: porque o legislador assim quis". O interesse público e o proveito social - identificáveis a partir de padrões de razoabilidade - são a única justificativa possível para os atos do Estado. A vontade do legislador não tem valor por si, mas apenas na medida em que, observados de racionalidade.

            A autorização de limitação dos direitos fundamentais pelo poder de polícia decorre da relatividade ou convivência harmônica dos direitos, não existindo "direito absoluto", visto que, no mínimo, encontrará limite em direito de igual dignidade.

            EDIMUR FERREIRA DE FARIA (25) ensina que além dos cinco elementos de validade dos atos administrativos, o exercício do Poder de polícia, para encontrar validade no ordenamento jurídico, deve observar a proporcionalidade entre a restrição imposta ao particular e o benefício social pretendido, e também a proporcionalidade entre o dano causado pelo infrator da norma administrativa e a sanção imposta ao agente. A desproporcionalidade no comportamento de polícia da Administração, quanto aos citados aspectos, implica a nulidade do ato.

            A respeito do princípio da proporcionalidade ensina BONAVIDES (26):

            Em verdade, trata-se daquilo que há de mais novo, abrangente e relevante em toda a teoria do constitucionalismo contemporâneo; princípio cuja vocação se move sobretudo no sentido de compatibilizar a consideração das realidades não captadas pelo formalismo jurídico, ou por este marginalizadas, com as necessidades atualizadoras de um Direito Constitucional projetado sobre a vida concreta e dotado da mais larga esfera possível de incidência – fora, portanto, das regiões teóricas, puramente formais e abstratas.

            Ressalte-se, por fim, que consideramos sinônimas as expressões proporcionalidade e razoabilidade, embora exista divergência doutrinária, nesse aspecto.

            1.2.3 Discricionariedade

            A discricionariedade no direito administrativo é objeto de eternas discussões, principalmente quanto à distinção do abuso de poder, razão pela qual apontaremos apenas alguns traços relevantes de sua incidência no exercício do poder de polícia.

            Caso haja margem para o administrador optar entre duas possíveis soluções para o problema, valendo-se de conveniência e oportunidade, haverá discricionariedade.

            O poder de polícia administrativo não se confunde com a discricionariedade. É exercício de poder que objetiva conformar e restringir direitos e liberdades, tendo em vista o interesse público.

            A discricionariedade não é atributo do poder de polícia em si, mas qualidade de alguns atos administrativos.

            Vale citar a advertência do Professor Bandeira de Mello (27) de que, em rigor, não há propriamente dito, um poder que seja discricionário fruível pela Administração Pública. Há, na verdade, atos em que a Administração Pública pode manifestar competência discricionária e atos a respeito dos quais a atuação será totalmente vinculada.

            Da discricionariedade decorre a possibilidade de optar pelo melhor momento de agir, qual o meio mais adequado, ou qual a sanção cabível, entre outras situações do cotidiano administrativo.

            Não podemos, todavia, deixar de estabelecer alguns parâmetros para distinção entre atos vinculados e atos discricionários.

            Normalmente, diz LÚCIA VALLE FIGUEIREDO (28), os atos vinculados são praticados quando esteja o administrador diante de conceitos unissignificativos ou teoréticos. Já os atos discricionários são aqueles em que o administrador tem opções diferentes, sendo que qualquer delas dará cumprimento à norma legal.

            Ninguém melhor que o mestre MARCELLO CAETANO (29) para tratar do tema, a saber:

            Os poderes discricionários de polícia têm, porém, de ser entendidos relativamente ao fim legal da sua instituição: nem há discricionaridade quanto ao fim, pois uma o arbítrio do agente pode ir ao ponto de usar da competência para realização de interesses diferentes dos da Administração pública, sob pena da invalidade dos seus actos por desvio de poder (sic).

            ONOFRE ALVES BATISTA JÚNIOR (30) aproveita os ensinamentos do referido mestre para dizer que a polícia é um setor só parcialmente controlado pela lei, porque nunca foi possível cingi-la completamente na legalidade, diante das manifestações multímodas das condutas individuais e da vida social, que forçam a que se deixe certa margem de liberdade de atuação.

            Defende, com acerto, que:

            O Poder de polícia, assim, encontra um de seus braços no Poder Legislativo e outro no Poder Executivo, não sendo mais, por cento, monopólio da Administração. (...) Assim, o Poder Legislativo cria, por ato legislativo, limitações ao exercício das liberdades públicas; por outro lado, a Administração Pública, fazendo uso do seu poder de polícia Administrativa, impõe medidas coercitivas, regulamenta a leis, controla a sua aplicação através de licenças ou autorizações, ou mesmo por ordens ou notificações.

            Por fim, conclui:

            As variedades das manifestações da vida social, que não obedecem, por vezes, a nenhum padrão imaginável, apresentando sempre surpresas quanto à forma ou lugar, tempo ou modo de sua produção, são razões palpáveis para que a própria lei atribua uma margem de discricionariedade à Administração.

            A doutrina clássica do Direito Administrativo, que tem JOSÉ CRETELLA JÚNIOR (31) como exemplo, ao tentar conceituar deixa claro que o poder de polícia é a faculdade discricionária do Estado de limitar a liberdade individual ou coletiva, em prol do interesse público.

            A chamada competência discricionária da Administração só se justifica como garantia de concretização das finalidades assinaladas pelo ordenamento jurídico.

            Apesar do poder de polícia ser caracterizado em regra como discricionário, há casos, a exemplo da concessão de alvará de licença para construção, que assume o caráter vinculado.

            Feitas as considerações principiológicas relativas ao tema, analisaremos alguns atributos pertinentes aos atos de polícia.

            Abstraindo-se divergências terminológicas, é sabido que, em regra, os atos administrativos exteriorizam os seguintes atributos: presunção de legitimidade, imperatividade, exigibilidade e executoriedade.

            1.2.4 Presunção de legitimidade:

            A presunção de legitimidade significa que todo ato administrativo, a priori, deve ser considerado verdadeiro e adequado ao direito, até prova em contrário, motivo pelo qual se diz haver presunção iuris tantum.

            Assim, a administração não necessita comprovar a veracidade, a legalidade do ato, presumidamente praticado nos estritos limites da lei, conforme deve ser toda atuação do Estado.

            Todavia, como ressaltado, a presunção de legitimidade é relativa, admitindo-se prova em contrário, como medida de controle dos atos públicos.

            1.2.5 Imperatividade ou Coercibilidade

            A imperatividade resulta no poder que tem o ato administrativo em constituir uma situação jurídica, que vincula o administrado ao seu cumprimento, independente de consentimento ou da aquiescência.

            Os atos administrativos são cogentes, obrigando a todos que se encontrem em seu círculo de incidência, ainda que contrarie interesses privados, porquanto o seu único alvo é o atendimento do interesse coletivo.

            Nem todo ato administrativo, entretanto, é dotado do atributo da imperatividade, a exemplo do que ocorre com os atos enunciativos, de conteúdo meramente declaratórios.

            1.2.6 Exigibilidade

            A exigibilidade é conseqüência lógica dos atributos supramencionados, visto que de nada adiantaria ser presumidamente legítimo e imperativo, caso não houvesse exigibilidade.

            Nada mais é a exigibilidade, que o poder que possui o Estado, no gozo das funções administrativas, de exigir o cumprimento das obrigações estabelecidas pelo ato administrativo, cuja obediência é impositiva.

            1.2.7 Auto-executoriedade

            O Estado procura organizar a segurança pública dos indivíduos e das instituições, monopolizando o uso da força.

            Na ausência de consenso entre as pessoas, há que se recorrer ao Poder Judiciário para solução de conflitos, não sendo possível, em regra, a execução forçada por meios particulares, salvo autorização expressa em lei.

            Daí porque é inarredável o dever de prestação da tutela jurisdicional.

            Contudo, o dever de recorrer ao Poder Judiciário para solução dos conflitos de interesses nem sempre será exigido do particular, pois existem situações em que o direito salvaguardado não pode esperar a intervenção judicial, sob pena de sucumbir diante da injusta agressão, a exemplo da legítima defesa da integridade.

            Os fundamentos para a executoriedade são traçados de forma peculiar por JOSÉ CRETELLA JÚNIOR (32):

            A segurança das pessoas e das coisas é elemento básico das condições universais, fato absolutamente indispensável para o natural desenvolvimento da personalidade humana. Proclamada inviolável pelo direito, não fica, porém, livre de forças exteriores, pessoais e impessoais, que ameaçam a todo instante a paz física e espiritual dos indivíduos. Tais ameaças que se originem em perigo contra o qual a personalidade oferece, primeiro, a própria força particular, em seguida, a força organizada do meio social, pelo motivo muito simples de que a ameaça dirigida a uma pessoa constitui ameaça indireta a toda a coletividade, precisam ser coibidas.

            Verifica-se que o fundamento reside na ponderação dos direitos envolvidos pelo particular, sem prejuízo de apreciação posterior pelo Poder Judiciário dos atos praticados.

            É inegável que o Estado, no exercício da função de julgar, nem sempre atua tempestivamente na tutela dos direitos.

            Todavia, a regra é o dever de se recorrer ao Poder Judiciário, tornando-se, assim, exceção no direito pátrio a executoriedade, motivo pelo qual é imprescindível autorização legal expressa, garantindo-se, com isso, a ampla defesa e o contraditório ao administrado.

            A executoriedade é traço marcante no exercício do poder de polícia, mas não prescinde de autorização legal.

            EDIMUR FERREIRA DE FARIA (33) ensina que os atos administrativos em geral, podem ser executados pela Administração sem a interferência do Poder Judiciário. Os atos decorrentes do poder de polícia inserem-se entre os auto-executáveis. A regra, não absoluta, é a de que a Administração impõe os atos decorrentes do poder de polícia e os executa, diretamente, sem a colaboração do Judiciário.

            SUNDFELD (34) adverte que a executoriedade de certos atos administrativos não se confunde com a exigibilidade de todos eles. A exigibilidade é o atributo de impor-se à obediência, independentemente do consentimento do destinatário: é a obrigatoriedade do ato. A executoriedade do ato é a condição de admitir o uso, pela Administração, da coação para fazê-lo cumprir.

            Adverte JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO (35) que a auto-executoriedade não é inerente a todos os atos administrativos:

            A prerrogativa de praticar atos e colocá-los em imediata execução, sem dependência á manifestação judicial, é que representa a auto-executoriedade. Tanto é auto-executória a restrição imposta em caráter geral, como a que se dirige diretamente ao indivíduo, quando, por exemplo, comete transgressões administrativas. É o caso da apreensão de bens, interdição de estabelecimentos e destruição de alimentos nocivos ao consumo público. Verificada a presença dos pressupostos legais do ato, a Administração pratica-o imediatamente e o executa de forma integral. Esse o sentido da auto-executoriedade. Impõem-se, ainda, duas observações. A primeira consiste no fato de que há atos que não autorizam a imediata execução pela Administração, como é o caso das multas, cuja cobrança só é efetivamente concretizada pela ação própria na via judicial. A outra é que a auto-executoriedade não deve constituir objeto de abuso de poder, de modo que deverá a prerrogativa compatibilizar-se com o princípio do devido processo legal para o fim de ser a Administração obrigada a respeitar as normas legais.

            Admite-se a executoriedade pela presunção de legitimidade dos atos administrativos em geral, bem como ante a urgência e relevância do direito a ser tutelado pelo Estado.

            ONOFRE ALVES BATISTA JÚNIOR (36) faz relevante distinção entre executoriedade e autotutela defensiva, senão vejamos o que diz:

            Também vale a pena estabelecer a distinção entre autotutela defensiva e autotutela ativa. A primeira se dá quando, por ação ou omissão, se pretende resistir ao interesse de um terceiro, de alterar uma dada situação de que o titular é possuidor. A segunda tem por conteúdo uma conduta positiva, pretendendo-se uma alteração no estado das coisas vigente, por ação preventiva ou pela força ou renovação de uma situação de fato, contrária ao direito, protegendo direitos existentes ou procurando realizar as pretensões resultantes de poderes unilaterais de conformação.

            JOSÉ MARIA PINHEIRO MADEIRA (37) sustenta que somente em três casos a auto-executoriedade do ato de polícia pode ser realizada, a saber, quando a lei expressamente autorizar, a medida for urgente para a defesa do interesse público, inexistir outra via de direito capaz de assegurar a satisfação do interesse público.

            É o denominado poder extroverso, isto é, a capacidade de impor unilateralmente sua vontade a terceiros, interferindo em suas esferas jurídicas.

Sobre o autor
Carlos Alberto Silva

Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Professor de Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Carlos Alberto. O poder de polícia e o domicílio à luz da jurisprudência do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 729, 4 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6957. Acesso em: 24 dez. 2024.

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