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A visão de Demétrio Magnoli sobre a políticas públicas identitárias no Brasil:breve resenha

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Agenda 17/02/2019 às 12:25

Anotações sobre a obra "Uma gota de sangue: a história do pensamento racial", de Demétrio Magnoli, com foco nas políticas étnico-raciais e identitárias no Brasil.

Considerações Iniciais

Em sua obra Uma gota de sangue: a história do pensamento racial (Ed. Contexto, 2009),[1] Demétrio Magnoli, jornalista, sociólogo e doutor em geografia humana, pretendeu apresentar investigação do conceito de raça e suas repercussões no universo político de diversos países. Segundo o autor, o multiculturalismo, dos temas centrais da obra, ao representar, reproduzir e refletir o racismo científico do século XIX, acaba por propor uma alternativa à filosofia predominante no Ocidente, fundada nos valores impulsionadores da Revolução Francesa, especialmente aquele que afirma sermos todos iguais, independente de credo, raça, cor, gênero ou outras distinções identitárias. O mapa geográfico analisado pelo autor é amplo. Aborda as questões raciais nos Estados Unidos (one drop rule),[2] na Alemanha (o volk perfeito),[3] na África (o apartheid como norma, a África como metáfora e o pan-africanismo),[4] no Oriente (o sistema de castas)[5] e, por fim, no Brasil, referindo, após algumas considerações históricas, a aplicação de algumas políticas públicas identitárias no país, especialmente pós ano 2000.[6] O presente texto irá se concentrar nessa última parte da obra, objetivando, antes de qualquer outra questão, apresentar, de forma objetiva e sistematizada, a visão de Demétrio Magnoli sobre o tema.


Anotações históricas

O autor inicia a abordagem das questões mais especificamente brasileiras ao apontar que, em 1931, Arlindo Veiga dos Santos fundou a Frente Negra Brasil (FNB), primeira organização política negra do país, que se posicionava favoravelmente ao regime varguista. A meta da FNB promover o progresso político, educacional e social da “gente negra”. O autor frisa que Veiga dos Santos impressionou-se favoravelmente com o nazismo pelos mesmos motivos do americano Du Bois.[7] Ou seja, o impressionou favoravelmente a preocupação do Nacional Socialismo alemão em entregar a mensagem de uma raça – muito embora, é importante frisar, não admitisse seus impulsos destrutivos em relação aos judeus, uma outra raça.[8]

Mais de década depois, em 1944 surge o Teatro Experimental Negro (TEN) fundado pelo intelectual Abadias do Nascimento, ex-integralista militante da FNB. Abadias lideraria um grande giro ideológico do movimento negro brasileiro na direção do racialismo de Du Bois.[9]

O autor ressalta as dificuldades na conciliação entre as reivindicações singulares de raça com a ideia mais ampla de combate à pobreza e à exclusão social? A oscilação entre o princípio do universalismo e o da raça, incompatíveis e antagônicos na visão do autor, continuou a dilacerar o pensamento das lideranças negras.[10]

Em 1949 realizou-se a Conferência Nacional do Negro, no Rio de Janeiro. Ocasião em que Abadias enfatizou as necessidades particulares dos negros, como um grupo racial: “abertura de oportunidades reais de ascensão econômica, política, cultural, social, para o negro, respeitando-se sua origem africana.” Sobre essa questão o autor aponta para a Declaração de Princípios da Conferência, aprovada por unanimidade na plenária final, que representou um compromisso entre pontos de vista antagônicos e incompatíveis. Uma recomendação solicitava a inclusão de homens de cor nas listas de candidatos das agremiações partidárias. Por outro lado, condenava-se a exploração política da discriminação de cor.[11]

Em 1982 o Programa de Ação elaborado pelo Movimento Negro Unificado, fundado em 1978, previa a necessidade de “desmistificar a democracia racial”. Os dirigentes negros explicavam, segundo o autor, contra todas as evidências, que o racismo subterrâneo brasileiro representava um mal maior que o racismo escancarado americano. A conclusão assumida na obra é de que essa narrativa era necessária para que, enfim, os negros enxergassem a si próprios como integrantes de uma raça espoliada num país controlado pelos brancos.[12]

A obra parte da premissa narrativa e histórica de que o abolicionismo reuniu brasileiros de todas as cores e classes sociais, homens livres e escravos, numa luta pela igualdade dos indivíduos perante a lei. Assim, defende o autor, o 13 de maio passa a ser estigmatizado justamente pelo seu sucesso, por ser uma metáfora antirracial. Em seu lugar as lideranças negras teriam erguido uma data alternativa, remetendo a Palmares[13] e sustenta uma metáfora racial. A operação simbólica de substituição de um mito pelo outra era a senha das lideranças negras à ideia do separatismo negro: Brasil deixava de ser visto como uma nação única para se tornar apenas o nome de uma entidade política na qual coabitam as raças branca e negra.[14]

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Já nos anos 2000, no Fórum Social Mundial realizado em Porto Alegre no ano de 2002, o autor lembra o que escreveu Abadias. Um texto que foi uma ode ao pan-africanismo, defendendo concessão de canais de televisão para “nós africanos e seus descendentes.” Na mesma linha separatista, reivindicou a criação das “instituições negras de ensino” para que os jovens negros “tenham outra versão da história e da realizada”. A ideia de nação única, apoiada no princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, estava praticamente morta entre os dirigentes do movimento negro entregue ao controle de ONGs racialistas. Um movimento cada vez mais integrado às instituições de Estado e às agências públicas definiu uma ampla agenda de reparações coletivas.[15]

Ilustrativo da força que foi ganhando esse movimento é o exemplo trazido pela obra de uma vereadora de São Paulo solicitou a abertura de ação coletiva contra a União por danos materiais e morais causados pela escravidão. Estimou as indenizações em dois milhões de reais por pessoa.[16]

Dentre os movimentos racialistas citados pelo autor, o ponto fora da curva fica pela referência ao Movimento Negro Socialista (MNS), fundado em São Paulo em 2006. Em carta aberta dirigida aos parlamentares em 2008, o movimento deplorou a aprovação, na Câmara dos Deputados, de um projeto de lei de cotas raciais nas universidades. Na missiva afirmava: “Nenhum democrata que se orgulhe da grande Revolução Francesa, que reivindique a República onde todos têm o direito jurídico da igualdade perante a lei, ninguém que aprecie a liberdade e a igualdade pode aceitar essa monstruosidade.”[17]


A construção da ideologia e pedagogia racialistas.

Tentando ilustrar a construção de uma ideologia e pedagogia racialistas, o autor lembra a publicação, por Abadias, do texto O genocídio do negro brasileiro. De acordo com Demétrio Magnoli, o referido texto resumiria a história do Brasil à trajetória de uma sociedade branca genocida. Era preciso, no lugar dela, edificar uma “história do negro”, isto é, da nação africana na diáspora brasileira.[18]

A obra refere ao fato histórico de que o tráfico transatlântico e a escravidão fazem parte da história do sistema colonial-mercantil que articulou na sua teia toda a economia mundial, inclusive a África. Mas Abdias, o MNU e as ONGs racialistas do Brasil escolheram enterrar a sua história, a fim de narrá-los como fenômenos raciais. Sob uma tal perspectiva, os “brancos”, como raça, escravizaram e comercializaram os “negros”, também como raça.[19]

O autor pretende apontar a incongruência de tal narrativa ao lembrar o complexo cafeeiro paulista onde, por meio do colonato, os imigrantes funcionaram como mão de obra barata num sistema flexível de relações de trabalho que propiciou a modernização das fazendas exportadoras. Mas a narrativa histórica racista interpreta tudo isso como um empreendimento do Estado para assegurar a hegemonia da “raça branca”. E, assim, fazendeiros e os colonos semi assalariados não são mais que elementos funcionais de um mesmo ato político e social: a “raça branca”, unida contra a “raça negra”. Mas não basta contar essa história em ensaios e artigos. É preciso difundi-la na escola, sob o selo de verdade oficial.

Essa difusão no sistema escolar, segundo o autor, começou com uma Resolução do Conselho Nacional de Educação (2009) que institui diretrizes para a “educação das relações étnico-raciais” no ensino superior, médio e fundamental. A resolução traz explícita a crença numa desigualdade essencial, irremediável, entre seres humanos. O texto estabelece uma série de princípios, entre os quais “o fortalecimento de identidades e de direitos.” Este “princípio” por sua vez, deve orientar para “o esclarecimento a respeito de equívocos quanto a uma identidade humana universal.” O autor entende que tal resolução seria uma negativa do núcleo filosófico que rege a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e inúmeros outros tratados internacionais. A crítica é dura: “Eles escrevem como militantes de uma causa, não como historiadores ou cientistas sociais.”[20]


Racialismo e ciência médica.

O autor afirma que cada um dos mais relevantes mapas genéticos produzidos nas últimas décadas comprovou não ser possível encontrar nada parecido com fronteiras de raça no amplo continuum cheio de pequenas oscilações que forma a humanidade. Ou seja: a ciência genética comprovou a unidade racial da humanidade. Assim, se a equação que identifica raça e genes deve ser descartada, não há como sustentar uma conexão entre raça e ancestralidade. [21]

Líderes dos projetos de mapeamento do genoma humano afirmaram que “somos todos 99,9% geneticamente iguais, independente de raças.” Contudo, o senso comum involuntariamente inspirado no “racismo científico” do passado contaminava o trabalho prático dos laboratórios. O exemplo trazido pelo autor é o da montagem de grupos de amostra da população americana, os voluntários que seriam submetidos aos exames eram separados segundo as categorias raciais do censo.[22] Circunstância que não deveria ter nenhuma relevância para fins de separação em grupos.

Sob o rótulo da “saúde da população”, procura-se riscar na pedra da medicina uma fronteira racial indiscutível. A finalidade do empreendimento não tem relação verdadeira com a saúde. O autor afirma trata-se de construir, a partir do Estado, uma série de prática identitárias que, pela sua repetição como rotina, inscrevam nas mentes uma classificação racial bipolar.[23]

No panorama das relações internacionais, no ano 2000, por ocasião da Conferência Regional das Américas contra o Racismo realizada no Chile, as lideranças apresentaram uma requisição à Organização Pan-americana de Saúde pretendendo obter “o reconhecimento de raça/grupo étnico/gênero como variável significante em matéria de saúde.”[24]

No governo Lula o discurso impulsionou a ação. Foi instituída, no âmbito do SUS, a rotulação racial nominal de todos os usuários de hospitais e postos de saúde. Em 2004, constituiu-se o Comitê Técnico de saúde da População Negra, formado por representantes do Ministério da Saúde e da Secretaria de Igualdade Racial (Seppir). A operação racialista na saúde, que o autor entende movida inteiramente por uma doutrina política, à revelia das ciências médicas e sociais, ocultou-se através de uma cerrada argumentação supostamente científica.[25]

Em 1º de dezembro de 2004, Dia Mundial de Luta Contra a Aids, o empreendimento de racialização da saúde pública avançou sobre novo território. A conexão entre negros e a aids como fenômeno médico e social está estabelecida por uma rede de ambiguidades. Pedro Chequer, diretor do PN-DST/Aids, esclareceu que “a aids não é uma doença associada com a raça negra, tanto que a maioria dos casos registrados é de gente branca”, mas enfatizou que a população negra de baixa escolaridade é pouco informada e, portanto, mais exposta à doença. O autor afirma que, resguardando, prudentemente sua credibilidade, Chequer providenciou uma ponte social de ligação entre raça e aids. Ele não disse que toda população de baixa escolaridade, de todas as cores, está mais exposta ao HIV em virtude da desinformação, pois o reconhecimento do óbvio evidenciaria o sentido político da iniciativa governamental.[26]

A Revolução Francesa teve como combustível os ideais iluministas do século XVIII, que proclamaram a igualdade natural de todos os seres humanos. Esses ideais podem ser considerados como razões fundantes das nações ocidentais. Um avanço do Ocidente para a modernidade. No Brasil, entretanto, a intervenção dos arautos da “saúde da população negra”, considerada pelo autor como um eco da doutrina pan-africanista, não tem o interesse ou finalidade de apontar caminhos para a universalização de serviços de saúde de qualidade. A meta explícita, portanto, consistiria em solapar a ideia antirracial da mestiçagem, substituindo-a pela imagem de um país dividido em duas raças polares e cindidas.[27]


A cor da pobreza.

Na obra o autor afirma que, dadas as condições brasileiras, especialmente sob uma perspectiva socioeconômica, a produção de uma “consciência racial” passa por uma instância conceitual decisiva, que é elaborar uma identificação entre classe social e raça.[28] Para tanto, aponta um estudo de Carlos Hasenbalg, publicado em 1979, no qual erguia um edifício estatístico pretendendo demonstrar que “a pobreza tem cor e raça”. Investia contra a interpretação histórica de que a concentração de negros nas camadas mais pobres representava herança da escravidão. A tese de Hasenbalg, segundo observado por Magnoli, era de que o preconceito racial e insidiosa discriminação conservavam os “negros” na pobreza. A operação crucial do empreendimento estatístico foi a reunião em categorias censitárias “pretos” e “pardos” na categoria ideológica “negros”. A leitura objetiva das informações evidenciaria uma difusão maior da pobreza entre “pretos” e mestiços dos mais variados tons de pele. Contudo, salienta o autor, a “retificação” propiciada pelo “pardocídio estatístico” conduziu à interpretação de que o país divide-se rigidamente em duas raças separadas por profundo abismo social.[29]

A supressão dos “pardos”, conforme observado na obra, produziu um Brasil artificialmente dividido quase exatamente ao meio em duas raças polares, circunstância tida como modelo ideal para os engenheiros de leis raciais. Também oculta a ampla difusão da pobreza entre os mestiços que, de acordo com a classificação censitária, representam 42% da população total, e 70% da população da região Norte. Ou seja: o que se esconde não é irrelevante, tanto o contrário.[30]

Desse modo, é a partir da abordagem do autor que a geografia assume relevante posição, tendo, enfim, algo a dizer sobre o cenário das desigualdades. No Brasil Setentrional, constituído pelas regiões Nordeste e Norte, por trechos do Centro-Oeste e pelo Norte de Minas-Gerais, os pardos predominam entre os mais pobres e, como é de se esperar, entre os mais ricos. Simetricamente, no Brasil Meridional constituído pelo sul, por São Paulo, Sul de Minas e trechos do Centro-Oeste, os brancos predominam entre os ricos e, como é de se esperar, entre os mais pobres. Não existem maiores surpresas. E desses dados o autor conclui: os mapas do atlas são prova contundentes da existência de uma sociedade de classes, não de castas raciais.[31]

Por essas razões é que o autor defende a tese de que as cotas raciais para ingresso na universidade não teriam o condão de alterar o panorama da exclusão, cuja natureza não é racial, mas socioeconômica. Mas elas cumprem, conforme apontado na obra, um duplo objetivo no projeto de racialização das relações sociais.[32]

O primeiro desses objetivos, conforme abordagem do autor, é criar uma elite intelectual “negra”, capturando estudantes cotistas para sua causa política, convertendo-os em ativistas do multiculturalismo. Os cotistas teriam obrigação moral de compensar o benefício recebido voltando para ajudar a comunidade. O segundo objetivo seria fabricar uma comunidade racial consciente de si mesma. O autor lembra que nos EUA e na África do Sul leis segregacionistas históricas traçaram uma fronteira indelével. No Brasil, pelo contrário, a fronteira racial não existe na consciência das pessoas. O paradigma da mestiçagem, junto com a ausência de leis segregacionistas – ou seja, de um segregacionismo institucionalizado –, impediu a emergência de grupos raciais nitidamente delimitados.[33]

Sobre o autor
Fábio Luiz Bragança Ferreira

Advogado e Professor de Processo Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Fábio Luiz Bragança. A visão de Demétrio Magnoli sobre a políticas públicas identitárias no Brasil:breve resenha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5709, 17 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69791. Acesso em: 19 dez. 2024.

Mais informações

Texto/Roteiro para apresentação em seminário no PPGD-UniCEUB.

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