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A visão de Demétrio Magnoli sobre a políticas públicas identitárias no Brasil:breve resenha

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Agenda 17/02/2019 às 12:25

Tribunais raciais no Brasil.

Alguns fatos são destacados na obra como fundamentais para compreensão da natureza da política pública de cotas raciais. Existem exemplos de tentativa de ingresso em universidades públicas mediante o sistema de cotas raciais nas quais candidatos de pele mais clara foram rejeitados, mesmo com irmãos de pele mais escura e avós negros descendentes de escravos. Romilda Macarini, diretora geral do Cespe, ofereceu um esclarecimento, afirmando que a comissão homologatória estava encarregada de analisar fenótipos, não ancestralidade.[34]

Dione Moura, relatora do plano de cota da UnB, de acordo com a obra, previra com monótona tranquilidade o surgimento de casos em que a fronteira da raça homologada separaria irmãos biológicos. Essa previsão talvez não contemplasse que as fronteiras desenhadas pelos tribunais raciais passasse entre gêmeos univitelinos, como ocorreu com Alex e Alan, no vestibular de 2007, deixando-os um de cada lado. Um aceito no sistema de cotas, o outro rejeitado. A partir desse fato que, na Universidade de Brasília (UnB), o método de certificação racial por imagens fotográficas não resistiu à desmoralização provocada pelo caso dos gêmeos univitelinos. Ao invés de procurar a “marca” aparente da raça, o tribunal racial agora buscava uma “marca” de consciência: a chamada negritude ideológica.[35]

A obra traz ainda testemunho do candidato Alex Muniz, “a entrevista tem um cunho altamente político [...] perguntaram se eu havia participado de algum movimento negro ou se tinha namorado alguma vez alguma mulata.”[36]


Uma alternativa ao projeto Constitucional brasileiro.

A obra aponta, corretamente, que Constituição brasileira é antirracista e define a nação em termos não raciais (artigos 3º, 4º e 5º). Desse modo, não há no texto constitucional que admita a produção de leis raciais, de segmentação e divisão da sociedade em raças.

O multiculturalismo representa, portanto, segundo a abordagem do autor, uma alternativa ao projeto da Constituição brasileira (1988), fundada especialmente nos ideais republicanos da Revolução Francesa (1789). A fala de Ricardo Henrique, uma das referências em termos de defesa nas políticas de preferências raciais no Brasil, dá respaldo à afirmativa feita na obra: “Nosso desafio é romper com a matriz republicana francesa. Todos fomos educados com base nessa grande matriz francesa universalista, que acha que o imperativo da igualdade é a melhor matriz para fazer qualquer intervenção, tratando todos por iguais. Está é a estratégia mais cínica de lidar com problema.”[37]

O multiculturalismo pretende, portanto, persuadir os brasileiros a se definirem segundo a taxonomia bipolar branco/negro. A pretensão é dividir o país. A “pedagogia racial” se difunde e sedimenta na consciência nacional por meio de incentivos materiais bastante palpáveis que fazem diferença na vida prática e nas expectativas de jovens que completam o ensino médio.[38]


Conclusões.

Demétrio Magnoli lembra que o Instituto Histórico e Geográfico, fundado em 1838, abriu um concurso de monografias baseado na seguinte pergunta: “como se deve escrever a história do Brasil?” O vencedor da ocasião, Friedrich von Martius, sugeriu uma narrativa em torno do eixo da formação do povo brasileiro, a partir da “mescla das raças”. A metáfora lírica escolhida para representar essa mescla foi a confluência de três rios, que simbolizariam as raças brancas, negra e indígena. O mito de origem do encontro dos rios situa-se na base de uma visão otimista sobre o Brasil, que se desdobraria no pensamento antirracista que tem na miscigenação seu ponto empírico de estofo e respaldo.[39]

O Brasil do século XX fez uma escolha, mediante seu texto normativo-político fundamental (1988), pelo mito de origem formulado por Matius. Essa escolha nos diz que somos todos iguais, sem discriminação de qualquer espécie e assim devemos ser tratados pelos Poderes constituídos e por nossos semelhantes. Mas o mito da raça ressurge como alternativa de refundação nacional neste início de século XXI.

Nesse cenário é que o autor afirma que os arautos do multiculturalismo estão dizendo que o Brasil fracassou historicamente como nação e que, portanto, deve começar de novo. O projeto da igualdade teria fracassado. Inversamente, os críticos das políticas raciais pensam que há algo de muito positivo, para toda a humanidade, no projeto nacional do Brasil, fundado nos valores fundantes do Ocidente. Os brasileiros não aprenderam a separar as pessoas segundo o cânone do mito da raça. A conclusão fundamental do autor, retornando à metáfora dos rios, é a de que as águas podem – e devem! – se misturar, pois a única raça é a raça humana.[40]

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Notas

[1] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue: história do pensamento racial. São Paulo: Contexto, 2009.

[2] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p.113-194.

[3] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 39-60.

[4] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 195-278.

[5] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 279-316.

[6] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 317-384.

[7] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 317-318.

[8] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p.223.

[9] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 319.

[10] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 320.

[11] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 321.

[12] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 326.

[13] Descrito por Abadias como “a primeira e única experiência de verdadeira liberdade, harmonia racial e igualitarismo na história do Brasil.” O autor discorda e pretende demonstrar os contrastes entre o mítico e o real (p. 327).

[14] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 326.

[15] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 329.

[16] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 330.

[17] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 330.

[18] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 331.

[19] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 332.

[20] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 335.

[21] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 341.

[22] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 342.

[23] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 349.

[24] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 349.

[25] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 351.

[26] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 351.

[27] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 354-355.

[28] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 358.

[29] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 358-359.

[30] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 361-362.

[31] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 363-364.

[32] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 365.

[33] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 366.

[34] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p.368.

[35] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 369.

[36] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 370.

[37] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 370.

[38] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 371.

[39] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 376.

[40] MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue ..., p. 383.

Sobre o autor
Fábio Luiz Bragança Ferreira

Advogado e Professor de Processo Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Fábio Luiz Bragança. A visão de Demétrio Magnoli sobre a políticas públicas identitárias no Brasil:breve resenha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5709, 17 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69791. Acesso em: 17 nov. 2024.

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