Resumo: O presente artigo objetiva traçar um breve panorama crítico a respeito da transformação histórica sofrida pelo instituto jurídico legítima no contexto específico do direito brasileiro. Serão sutilmente arrazoadas as premissas mais remotas que fizeram fundamentar a fixação da atual indisponibilidade de fatia ideal correspondente a 50% (cinquenta por cento) de patrimônio pertencente a determinado indivíduo, restritiva dos direitos de dar e de testar livremente, para finalmente cotejar o instituto com os fenômenos sociojurídicos ocorridos no Direito das Famílias e das Sucessões a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988.
Palavras-chave: Direito das Famílias e das Sucessões; Direito Brasileiro; Legítima; Aspectos Históricos.
INTRODUÇÃO
A ideia de suceder, enquanto ato genérico de se tomar o lugar de outro, concebido no contexto de uma relação em que pessoas, por razões variadas, arvoram-se legitimamente sobre direitos e deveres dos quais originalmente não seriam titulares, confunde-se com a própria perspectiva que se idealiza de um Estado Democrático de Direito, fomentador de um dinâmico fluxo de ambições socioeconômicas, de forma geral manifestadas por todos os integrantes de sociedades ditas civilizadas.
A sucessão obituária, como espécie desse conceito, e em seu sentido mais estrito, consubstancia-se na potencial transmissibilidade de direitos e de obrigações em decorrência do falecimento de um indivíduo, desta feita por força de determinação legal, que designa-lhes uma específica destinação, ou, no mais das vezes, em razão de expressa manifestação de última vontade deduzida pelo proprietário, na medida em que essa mesma lei o autorizar.
Nesse enleio, o instituto jurídico da legítima figura como uma complexa construção cultural, presente na tessitura normativa de uma infinidade de ordenamentos jurídicos, fundada no conceito de que sobre uma fatia ideal do patrimônio pertencente a determinado indivíduo há de incidir parcial indisponibilidade, restritiva do direito de dar e testar livremente, porque referida parcela pertenceria, paradoxalmente, não a seu efetivo titular, mas a um grupo de indivíduos indicados pela lei.
É exatamente no sítio da história desse instituto secular que o presente trabalho pretende se desenvolver, tendo-se como objetivo principal o estabelecimento de uma narrativa crítica a respeito dos eventos históricos que propiciaram sua a constituição e sua a transformação no contexto específico do direito brasileiro.
Desse modo, serão brevemente retratados, sempre sob a perspectiva do instituto de que se cuida, os acontecimentos sociais e jurídicos que impregnaram as sociedades constitutivas da história ocidental, durante a antiguidade, idade medieval e idade moderna, de forma a entrelaçá-los com as bases históricas que fizeram brotar a legítima no Brasil.
Posteriormente, serão escrutinadas as modificações havidas no direito brasileiro pelas imediações da promulgação do Código Bevilácqua de 1916, possivelmente o maior responsável pela consolidação inconsciente do instituto da legítima no cenário jurídico brasileiro.
Nesse mesmo entremeio, serão observadas algumas modificações pontuais que afetaram o funcionamento do instituto até o advento da vigência do “velho novo” Código Civil de 2002, cujos dispositivos respectivos acabaram sendo quase que integralmente reproduzidos a partir do que já havia sido anteriormente fixado no código revogado.
Finalmente, o instituto será analisado a partir dos fenômenos sóciojurídicos irrompidos em decorrência do giro principiológico observado na história recente do sistema jurídico brasileiro, caracterizado pelo protagonismo normativo da Constituição Federal de 1988, avistando-se a sua possível deformação frente ao novo paradigma hermenêutico que se instalou.
LEGÍTIMA E O DIREITO ROMANO
Em memorável ponderação, constantemente reproduzida, referindo-se aos remontes da história que originaram a ideia de sucessão de direitos e obrigações pela morte, Washington de Barros Monteiro faz seu verso: "Perde-se sua origem na noite dos tempos, parecendo que se prende à comunidade da família, de que constituiria prolongamento natural"[3].
Nessa mesma medida, parece não haver suficiente elaboração de fatos e de evidências sociológicas que determinem a origem precisa e irrefutável do que viria a ser denominado de legítima sucessória. Sua gênese jurídica é, portanto, altamente embaçada.
Mas aquilo que viria a se tornar o instituto jurídico da legítima tal como posto na sociedade brasileira hodierna não consegue ser dissociado dos rincões históricos da República Romana.
O primeiro instrumento legal de que se tem notícia a mencionar especificamente a destinação obrigatória de um percentual mínimo à figura dos herdeiros foi a Lex Falcidia, lei romana de 40 a.C. aprovada pelo Conselho da Plebe (Concilium Plebis), nomeada em homenagem ao seu autor e tribuno da plebe, Publio Falcidio[4].
Conforme a redação do citado dispositivo legislativo editado pela assembleia da plebe, limitava-se a três quartos a porção do património que podia ser testada livremente, estabelecendo-se a quarta debita portionisou, como também é denominada, a quarta falcídia, que deveria obrigatoriamente ser destinada aos herdeiros legitimários[5].
Com a decadência da República Romana e a ascensão do Império, retornou-se ao Direito Romano a livre disposição patrimonial sucessória, de tal sorte que ao sucedido era permitido definir, por meio de testamento, quem seriam os sucessores de seus bens e direitos. Volta então a vigorar a regra da livre disposição hereditária de bens, permitindo assim que o de cujus elegesse herdeiro da integralidade de seu patrimônio, ainda que fosse pessoa com quem não guardasse qualquer vínculo consanguíneo. Importante ressaltar, neste ponto, que acaso o sucessor não deixasse herdeiro testamentário, a sucessão ab intestatoseguiria a ordem sucessória legal[6].
Não obstante a regra da livre disposição da integralidade de bens por testamento, decorrente justamente da ausência de regramento definindo quota parte indisponível, havia no ordenamento jurídico romano a previsão de ação própria para impugnar o testamento que não designasse patrimônio algum para os herdeiros próximos[7].
Conforme Luiz Antônio Vieira da Silva, em História Interna do Direito Romano Privado até Justiniano, caberia a “qualquer herdeiro próximo ab intestado, que se julgasse prejudicado, apresentar-se com a querela inofficiosi testamenti, e estaria então ao arbítrio dos centumvires rescindir o testamento, ou não.”[8]
Continuando sua lição sobre o tema, o autor explica que mencionada querela poderia ser ajuizada lastreada na queixa de o testador haver deserdado ou ainda instituído diminuta porção que atentava contra a piedade e o amor, sendo, por isso, inoficioso. Assim, supondo não estar o testador em seu perfeito juízo, poderiam os centumviresanular o testamento[9].
É de importância salutar já daí observar-se que o nascedouro do instituto da legítima no direito romano valeu-se, portanto, de um pretexto jurisprudencial calçado numa visão patrimonializada do afeto familiar, com vestes de solidariedade e misericórdia, pois que suficiente a inexistência de deixa para caracterizar-se a inoficiosidade do testamento, sendo irrelevante a verificação das condições financeiras do herdeiro preterido.
E isso se confirma na medida em que, naqueles tempos, assentou-se o entendimento judicial de que, caso o sucedido deixasse a quarta parte de seu patrimônio a determinado herdeiro, restava inadmissível a querela de testamento inoficioso. E assim ficou a Quarta Falcídia irrefletidamente entranhada na consciência jurídica dos povos romanos.
Foi então em 542, d. C., já sob o domínio dos visigodos no império romano, no início do período histórico da Idade Média, ambientado no Império Romano do Oriente, sob a regência de Flávio Pedro Sabácio Justiniano, que o direito romano reincorporou em seu arcabouço legislativo a quarta debita portionisou, como é hoje conhecida, a legítima, estatuída no Digesto de Justiniano[10].
Sob evidente influência da Lex Falcídia, Justiniano, através da Novela 115, estabelece que o autor da herança deve reservar a quarta debita portionis como porção legítima. Referida parcela indisponível majora-se para pelo menos um terço do património quando o número de filhos fosse quatro e em metade da porção intestada para a hipótese de cinco filhos. Estavam, assim, construídas as bases do instituto jurídico da legítima.
LEGÍTIMA E A INFLUÊNCIA ÁRABE NA PENÍSULA IBÉRICA
A derrocada do Reino Visigótico pela conquista muçulmana da Península Ibérica, ocorrida a partir de 711 d.c., quando tropas islâmicas do Norte de África, sob o comando do general Tárique, cruzaram o estreito de Gibraltar e venceram Recaredo I, o último rei dos visigodos da Hispânia, na batalha de Guadalete, trouxe para os habitantes daquele território fortes influências culturais do Direito Islâmico[11].
Como é cediço, no Direito Muçulmano, assim como no Direito Canônico, não há o que se falar em distinção entre Direito e Religião, sendo a Xaria (Direito Islâmico), emanação da interpretação dada ao Alcorão, livro sagrado da religião muçulmana.
É nos versículos de An-Nisaaque se encontram as principais disposições atinentes ao Direito das Sucessões na realidade jurídica muçulmana. Na esfera de estudo que compete ao artigo em espeque, a obrigatoriedade de dispor bens para os filhos está explicita no Alcorão, An-Nisaa(4:7):
7. Aos filhos varões corresponde uma parte do que tenham deixado os seus pais e parentes. Às mulheres também corresponde uma parte do que tenham deixado os pais e parentes, quer seja exígua ou vasta - uma quantia obrigatória.[12]
Da leitura do verso acima extraído do texto sagrado islâmico já se infere a obrigação do de cujus em legar uma parte do que lhe foi propriedade em vida, assim como o faz o instituto da legítima atual, ou como faziam os romanos desde a Lex Falcídia.
Segundo a Xaria, a interpretação que se extrai do Hadith – coletânea de versos/leis que complementam o Alcorão, mais especificamente do Sahih al-Bukhari, a mais importante das seis grandes coleções de Hadith – dois terços dos bens do autor da herança devem necessariamente ser destinados aos seus herdeiros baseados na distribuição definida no Alcorão. Pode, no entanto, o autor da herança por meio de testamento, indicar a quem pretende destinar um terço de seu patrimônio[13].
Portanto, verifica-se que, também no Direito Islâmico, havia forte tendência pela manutenção de uma parcela do patrimônio do autor da herança para seus parentes próximos.
Como não poderia ser diferente, a forte influência muçulmana durantes os mais de setecentos anos de permanência na península ibérica (711 d.c.-1492 d.c.), deixou fortes marcas no corpo de leis que vigoraria em Portugal no futuro, conforme será analisado adiante.
LEGÍTIMA NO DIREITO PORTUGUÊS, NO BRASIL COLONIAL E IMPERIAL
O Brasil, como colônia portuguesa, durante séculos ficou sob a regência das leis de Portugal. Neste toar, é de suma importância para a pesquisa em tela verificar quais as principais fontes de direito lusitano culminaram na legislação sucessória acerca do instituto da legítima atual.
Jorge Silva Santos aponta, em brilhante e extenso artigo sobre os impactos históricos da livre disposição mortis causa no direito das sucessões português, que a solução da terça quota como montante disponível em Portugal verifica-se desde os Comunicados de Évora, datados de 1280, que determina que todo o homem ou mulher que não tiver descendentes nem ascendentes no momento da morte, pode deixar a totalidade dos seus bens a quem lhe aprouver mas que, caso sobreviva descendência ou ascendência, só poderá dispor da terça parte[14].
A partir de 1448, entra em vigo no Reino de Portugal as Ordenações Afonsinas, ou Código Afonsino, uma das primeiras coletâneas de leis da era moderna, promulgadas durante o reinado de Dom Afonso V. O código serviria para esclarecer a aplicação do direito canônico e romano no Reino de Portugal. As ordenações afonsinas vigoraram até a sua substituição pela ratificação das Ordenações Manuelinas em 1513[15].
Na Ordenação Afonsina, conforme leciona Jorge Silva Santos[16]: “As referências à terça enquanto quota disponível são uma constante das disposições coligidas no texto afonsino, surgindo em legislação de D. Dinis (títulos 98, ), D. João (títulos 97)”.
A terça parte disponível como reminiscência da tradição muçulmana no Direito português é inferida justamente da continuidade desta regra mesmo após a reconquista do território ibérico pelos reinados de influência majoritariamente cristã, como o foi o caso do Reinado de Dom Afonso V[17].
Neste esteio é também a conclusão empregada por Merêa, citado por Jorge Silva Santos, o qual trazemos a colação:
Ora, como demonstrou PAULO MERÊA, o uso da terça tornou-se comum na região de Coimbra durante a primeira metade do século XII. Era igualmente admitida e utilizada em regiões da estremadura e do alentejo nos séculos XII e XIII. Acresce que se encontra em alguns forais da Beira e da Estremadura a terça como quota devida à igreja em caso de morte ab intestato. Isto, enquanto a norte prevaleciam ainda os vários costumes locais próprios da reserva hereditária. Há, assim, no sul e no centro do pais um costume, que MERÊA atribui a influência árabe, a que é dado preferência por D. João I. Entende, então, Merêa que não pode exagerar-se o papel do Direito. Romano; embora este seja predominante, não é monopolizador. Se assim tivesse sido, afirma Merêa, “ter se ia implantado entre nós a legítima justinianeia, como aconteceu em França no país de droit écrit, e mesmo em algumas regiões de direito costumeiro. Teríamos a liberdade de testar como regra, e a legítima de um terço em certos casos, metade como officium pietatis. Ora, em vez disso o que nós vemos é que se mantém um wartrechtde dois terços para os parentes na linha recta”.[18]
A legislação posterior, as Ordenações Manuelinas, não modificaram esta interpretação, e mesmo sendo reformada em 1603, quando da promulgação das Ordenações Filipinas, deu manutenção ao já costumeiro terço disponível. Sobre o tema ensina Luiz Gonçalves da Cunha:
Com efeito, as Ordenações Filipinas, Liv. IV, Tít. 82, concedendo a faculdade de testar, não admitiam a plena liberdade de dispor em testamento. Pelo contrário, estabeleciam a sucessão legitimaria, fixando em têrça parte dos bens a quota disponível dos pais, ou dos avós, quando existissem só netos em vez dos filhos pré-defuntos; e bem assim a quota disponível do testador quando só tivesse pais ou outros ascendentes. É interessante salientar que as mesmas Ordenações consideravam a quota legitimaria como tàcitamente testada, conforme se infere do texto seguinte: ‘Porquanto, pois tomou (o pai) a têrça de seus bens no testamento, e sabia que tinha filhos, parece que as duas partes quis deixar aos filhos e os instituiu nelas, pôsto que delas não faça expressa menção, e assim devem ser havidos por instituídos herdeiros, como se expressamente o fôssem, em favor do testamento.[19]
Esta mesma regra se aplicava aos filhos daqueles menos valorizados pela nobreza, os quais denominavam peões, veja o que dispõe o texto integral do Livro IV, Título 92 da Ordenação Filipina:
Se algum home houver ajuntamento com alguma mulher solteira, ou tiver huma só manceba, não havendo entre eles parentesco, ou impedimento, por que não possam ambos casar, havendo de cada huma delas filhos, os taes filhos são havidos por naturaes. E se o pai for peão, suceder-lhe-hao, e virão à sua herança igualmente os filhos legítimos, se os o pai tiver. E não havendo filhos legítimos, herdarão os naturaes todos os bens e herança de seu pai, salvo a terca, se a o pai tomar, da qual poderá dispor como lhe aprouver. E isto mesmo haverá lugar no filho, que o homem solteiro peão houver de alguma serava sua, ou alheia, se por morte de seu pai ficar foro.[20]
Após séculos de vigência exclusiva das Ordenações, o Brasil imperial passou então a ter editos próprios que passaram a dar forma ao direito brasileiro.
No que concerne o instituto da legítima, o primeiro instrumento legal brasileiro de que se tem notícia é o Decreto nº 463, de 2 de Setembro de 1847, que passou a estender a literalidade das Ordenações Filipinas que eram aplicáveis apenas aos filhos naturais dos chamados peões à também aos dos nobres. Vejamos abaixo o que dispôs este primeiro decreto imperial relativo à legítima:
Decreto nº 463, de 2 de Setembro de 1847
Declara que aos filhos naturaes dos nobres ficão extensivos os mesmos direitos hereditarios, que, pela Ordenação livro quarto, titulo noventa e dous, competem aos filhos naturaes dos plebeos.
Hei por bem Sanccionar, e Mandar que se execute a Resolução seguinte da Assembléa Geral Legislativa.
Art. 1º Aos filhos naturaes dos nobres ficão extensivos os mesmos direitos hereditarios, que, pela Ordenação livro quarto, titulo noventa e dous, competem aos filhos naturaes plebeos.
Art. 2º O reconhecimento do pai, feito por escriptura publica, antes do seu casamento, he indispensavel para que qualquer filho natural possa ter parte na herança paterna, concorrendo elle com filhos legitimos do mesmo pai.
Art. 3º A prova de filiação natural, nos outros casos, só se poderá fazer por hum dos seguintes meios; escriptura publica, ou testamento.
Art. 4º Ficão revogadas quaesquer disposições em contrario.
Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, do Meu Conselho, Ministro e Secretario d'Estado dos Negocios da Justiça, o tenha assim entendido, e faça executar. Palacio do Rio de Janeiro em dous de Setembro de mil oitocentos quarenta e sete, vigesimo sexto da Independencia e do Imperio.
Com a Rubrica de Sua Megestade o Imperador.
Nicolau Pereira de Campos Vergueiro[21].
A legislação acima demonstra que o reconhecimento da paternidade de filhos naturais era um ato de escolha exclusiva do pai nobre, seja por escritura pública ou testamento. Assim, a partir de 1834, a legítima de uma terça parte passou a ser de observação obrigatória também para os filhos ditos naturais dos nobres.
Desta forma, vê-se que a legítima ficou incrustada nas precedências jurídicas que embasaram a formatação de sua atual configuração no Brasil, sendo sempre marcada, nesses tempos remotos, por uma manifesta patrimonialização das relações familiares.