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A proteção do direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro

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Agenda 04/01/2019 às 12:13

Não se justificam publicações lesivas à vida privada de um indivíduo, por atingir, além da intimidade, a própria dignidade da pessoa.

No atual contexto da sociedade, globalizada e informatizada, com facilidade e rapidez no acesso a qualquer tipo de informação, com rápida propagação através dos meios comunicativos, como televisão, jornal, revista, internet, blogs etc., o estudo do direito ao esquecimento é de grande importância.

O direito ao esquecimento consiste na faculdade da pessoa não ser molestada com a exploração indevida de episódios passados carentes de interesse público.[2] Trata-se, portanto, de um direito inerente à própria personalidade humana, como será tratado neste estudo, de maneira que a sua proteção está intimamente ligada à dignidade humana.

Para chegar aos seus fundamentos jurídicos, será necessário passar por suas origens, a partir da análise de casos enfrentados por Tribunais Superiores nacionais e estrangeiros, bem como analisar as principais correntes doutrinárias a respeito do direito ao esquecimento. Isso porque não há previsão expressa no ordenamento jurídico brasileiro, então o estudo será feito de forma a revelar o que há de mais importante no conceito de direito ao esquecimento e a sua afinidade com os princípios já existentes.

O direito ao esquecimento protege a pessoa contra a exposição de fatos embaraçosos, infelizes ou desabonadores[3] nos veículos de comunicação que causem constrangimento e ofendam a personalidade, sendo, portanto, um desdobramento do resguardo pessoal, com a ideia de que ninguém pode ser perseguido por atos praticados no passado, que já não refletem a identidade atual daquela pessoa, que está protegida contra a “recordação opressiva de fatos que pode minar a capacidade do ser humano de evoluir e se modificar”.[4]

Por toda história o homem buscou formas de guardar na memória acontecimentos marcantes e informações importantes, sendo o esquecimento algo natural. Ocorre que, com o surgimento da Internet, a situação inverteu. A memória passou a ser a regra e o esquecimento a exceção. Uma vez disponibilizadas na rede, as informações integram uma memória digital, congelada no tempo.[5]

Dessa forma, os fatos não reconstruídos prejudiciais à personalidade da pessoa que teve a capacidade de evoluir e seguir um rumo diferente do seu próprio passado, podem ser acessados por qualquer indivíduo, influenciando negativamente a percepção da sociedade sobre a pessoa.[6]

Importa destacar que o direito ao esquecimento não se limita a tutelar os conflitos originados no ciberespaço ou aqueles oriundos de casos criminais, protege a personalidade do homem como um todo, buscando a “não recordação de fato constrangedor ou de crime em relação ao lesado direto ou indireto, preservando sua imagem, privacidade e não a pessoa do ofensor”, ou seja, tutela os próprios direitos da personalidade em todos os âmbitos.[7]

Não se trata de ocultar, editar ou apagar uma informação desatualizada sobre a pessoa, também não se trata de reescrever a própria história. Quando este direito se opõe à memória de fatos verídicos ocorridos no passado e causadores de constrangimento no presente, busca impedir que publicação lesiva atinja a personalidade, reconhecendo e dando a oportunidade ao homem de se desenvolver e superar episódios passados.[8]

Para Silva[9], o primeiro caso envolvendo o direito ao esquecimento foi jugado pelo Tribunal da Califórnia em 1931. Tratava-se de processo envolvendo Gabrielle Darley e Reide. A lide iniciou-se quando este produziu um filme sobre a vida de Gabrielle, marcada por prostituição e um processo criminal em que havia sido absolvida. Os constrangimentos inerentes à exposição de fatos passados da vida de Gabrielle a fizeram ajuizar ação na justiça contra o produtor Reide. A valorização do direito à intimidade, frente à expressão de um fato passado, mas verdadeiro, com o acolhimento da demanda, reconheceu pela primeira vez, ainda que tacitamente, o direito ao esquecimento.

O Caso Lebach ocorrido na Alemanha em 1983 é considerado um marco na doutrina do direito ao esquecimento, quando quatro soldados foram brutalmente mortos enquanto dormiam. Muito tempo depois do terror que a cidade viveu, quando o caso já havia sido esquecido quase por completo, uma emissora de televisão planejou exibir um documentário intitulado como “O assassinato de soldados em Lebach”. Um dos autores, que estava em processo de ressocialização, conseguiu na justiça o direito de impedir a exibição do documentário, por decisão do Tribunal Constitucional Alemão.

No Brasil, o tema ganhou destaque após a publicação do Enunciado 531 do Conselho da Justiça Federal (CJF) na VI Jornada de Direito Civil, ao dispor que “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”. Na justificativa do enunciado consta que o direito ao esquecimento “assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados”. Além disso, recentemente, dois casos relevantes que envolviam o tema foram julgados pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ, que serão estudados em momento posterior.

Superado o histórico, observa-se que não existe previsão expressa do direito ao esquecimento na legislação brasileira. O único diploma que disciplina e propõe algo que muito se assemelha ao direito em estudo é a Lei do Marco Civil, (Lei 12.965/2014), ao estabelecer o direito à exclusão definitiva dos dados pessoais, in verbis:

O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania e ao usuário é assegurado o direito à exclusão definitiva dos dados pessoais que tiver fornecido a determinada aplicação da internet, a seu requerimento, ao término da relação entre as partes, ressalvadas as hipóteses de guarda obrigatória de registros previstas em lei.[10]

A doutrina entende que o direito ao esquecimento pode ser estudado sob duas perspectivas, uma material e outra procedimental. Enquanto que a primeira questiona o seu reconhecimento como forma de impedimento da propagação de uma informação verídica ocorrida no passado, a segunda desloca a sua atenção ao sujeito passivo da relação jurídica, para descobrir contra quem se pode postular o direito ao esquecimento e questiona a legitimidade de litigar contra um intermediário.[11]

O questionamento ocorre frequentemente nas demandas contra o Google, empresa que foi sentenciada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, e foi obrigada desindexar links para informações que contenha dados pessoais irrelevantes, em atendimento ao direito ao esquecimento. No entanto, diferente foi o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, que entendeu pela impossibilidade de se impor ao motor de busca a desindexação específica de alguns resultados, devendo ser apurada a responsabilidade do provedor original do conteúdo, aquele que pública a informação.[12]

O que importa, neste primeiro momento é o conceito do direito em estudo e o seu conteúdo. É certo que o respeito à dignidade humana deve estar presente na ética jornalística. O direito ao esquecimento é um direito fundamental que está intimamente ligado à dignidade da pessoa humana. [13] Nesse sentido é o entendimento de Simón Castellano, para o qual o direito de ser esquecido se configura como um direito de autonomia e liberdade, sendo sustentado e decorrente da dignidade da pessoa humana. [14]

O direito ao esquecimento, como já foi demonstrado, se desenvolveu de maneira conjunta com o próprio Direito, que precisou se adaptar às novas demandas sociais decorrentes do surgimento e popularização da Internet. Destarte, o seu exercício pleno se dá quando há uma permissão de que os dados pessoais deixem de ser acessíveis na web, a pedido do interessado, eliminando as informações pessoais e tornando-as indisponíveis, nas palavras de Simón: “(...) cuando hablamos de ‘derecho al olvido’ hacemos referencia a posibilitar que los datos de las personas dejen de ser accesibles en la web (...)”.[15]

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Simón pontua ainda que nos últimos anos houve um aumento significativo de demandas judiciais buscando a proteção contra perseguição de eventos passados. A grande maioria postula o cancelamento das informações contidas em sites da web, após a recusa do responsável pelo conteúdo. Além da remoção, o direito ao esquecimento também garante o direito a desindexação do conteúdo pelos provedores de busca. Existem dois princípios basilares para entender a proteção de dados e a necessidade do direito a ser esquecido no ciberespaço, são eles: princípio do consentimento e princípio do propósito.

Pelo primeiro se compreende que todo o processamento de dado pessoal deve ser realizado com o consentimento do titular. Por consentimento entende-se a manifestação inequívoca de vontade, livre e específica. Este princípio é aplicado de duas formas: a) quando o próprio titular, ao publicar informações contendo dados pessoais na Internet, hipótese muito comum nas redes sociais, tais como fotos, vídeos, textos, etc., revoga o consentimento; e b) pode o cidadão se opor a dados pessoais publicados por terceiros, mas neste caso há que ser feita uma ponderação dos direitos de personalidade e das liberdades comunicativas, a ser estudado em momento oportuno.

O segundo princípio, denominado princípio do propósito, poderia servir de fundamento sólido para o direito ao esquecimento pela determinação de exclusão da informação quando atingido o seu propósito, quando perderem a utilidade.

Terminando a parte conceitual, Rallo entende ser “bastante razoável” que uma informação ultrapassada sem nenhum interesse público não apareça nas buscas dos provedores intermediários – indexadores. O referido autor, defendente do esquecimento no campo da proteção de dados pessoais, também sustenta o princípio da finalidade apontado por Simón Castellano, ao inserir no âmbito de proteção deste direito que o dado pessoal alcançado licitamente, inclusive quando concedido pelo próprio titular, deve ser retirado do ar quando atingida a sua função, quando atingida a sua finalidade.[16]

Aos poucos o direito ao esquecimento ganha espaço no mundo jurídico, sendo objeto de diversos estudos científicos feitos por importantes nomes nacionais e internacionais. Terwangne[17] em Privacidad en Internet y el derecho a ser olvidado/derecho al olvido levanta três aspectos do direito ao esquecimento: o direito de esquecer o passado judicial, o direito de ser esquecido estabelecido pela legislação de proteção de dados e o direito derivado do mundo digital, a seguir expostos detalhadamente.

O primeiro aspecto está ligado ao passado judicial de uma pessoa. Surgiu da ideia clássica de esquecimento dos registros criminais, de que ninguém pode sofrer permanentemente por um erro cometido no passado, cabendo à sociedade oferecer novas oportunidades de reabilitação e reinserção do indivíduo ao meio social. Ocorre que hoje, o direito de esquecer a história judicial ultrapassa os limites do registro criminal, e entra em conflito com o direito à informação.

Terwangne aponta o tempo como critério preponderante para a solução do conflito.[18] É certo que o interesse jornalístico na divulgação de um fato é imediato, ou seja, é vinculado ao fator tempo. Assim, por exemplo, se um indivíduo comete o crime de roubo, interessa à população a informação acerca da fase de inquérito e julgamento. Passado o tempo, encerrada a fase judicial, tendo sido o agente condenado pela prática do delito, tendo cumprido a pena em sua integralidade e buscando a ressocialização e novas oportunidades, ocorre a perda do interesse público na informação.

Assim, a autora sustenta que o direito à informação prevalece sobre o direito de ser esquecido quando interessa a divulgação dos fatos. Duas são as hipóteses levantadas por ela: quando os fatos possuírem interesse histórico e quando forem relacionados ao exercício de atividade pública por uma pessoa pública. Nesses casos o direito à informação prevalecerá sobre o direito de ser esquecido, apesar do tempo decorrido.

Diante dos avanços tecnológicos e da propagação da internet, que deram espaço a multiplicação do uso, processamento e armazenamento de dados, o direito ao esquecimento deixa de proteger apenas o passado judicial e passa a se preocupar com a questão da proteção de dados, sendo este o segundo aspecto do direito ao esquecimento levantado pela autora. Elenca como princípio basilar do regime de proteção de dados a finalidade. Por este princípio entende-se que os dados devem ser tratados com um objetivo determinado, legítimo e transparente.

Assim, os dados atendem uma finalidade específica e o processamento e o armazenamento só se justifica para atender os fins pelos quais deram origem ao armazenamento. Ao propor que os dados pessoais devem ser eliminados uma vez alcançado o seu objetivo, este princípio traz a ideia de direito ao esquecimento.

A reivindicación de un nuevo derecho digital al olvido é o terceiro aspecto do direito ao esquecimento e diz respeito às informações existentes no ciberespaço, sua facilidade de disseminação e dificuldade de remoção do conteúdo. Esse direito ao esquecimento digital está ligado a duas peculiaridades da Internet: o efeito eterno da memória eletrônica, que segundo Mayer-Schönberger é composta por fatos que não puderam ser reconstruídos, sendo uma memória congelada, e a eficiência dos motores de busca, capazes de encontrar os mais diversos textos sobre um indivíduo de maneira descontextualizada, que podem causar prejuízos a personalidade.[19]

Conseguir que os dados pessoais sejam apagados não é tão simples. Em primeiro lugar, aquele que se sentir lesado deve requerer a remoção ao próprio site. No entanto, atendida a solicitação, as informações ainda poderão ser encontradas pelos motores de busca por dias ou semanas até a sua desindexação. Durante o processo, as informações continuam acessíveis, sendo ainda possível a cópia e a republicação em outro site. Além disso, “la arquitectura de los siste-mas informáticos se ha vuelto mucho más compleja. La mul-tiplicación de vínculos hace cualquier eliminación de datos difícil y costosa”.[20]

Limitado à proteção de dados no ciberespaço, Peter Fleischer[21], embora um fervoroso opositor ao direito ao esquecimento divide o estudo deste em três aspectos: direito de apagar os dados que a própria pessoa torna disponível na internet; direito de apagar as informações disponibilizadas pelo próprio usuário e utilizadas por terceiros; e o direito de apagar os dados disponibilizados por terceiros.

Ocorre que o tema está longe de ser pacífico na doutrina. Existem hoje três posições em relação ao direito ao esquecimento, a da informação absoluta, do esquecimento absoluto e, por fim, a posição intermediária.[22]

Para os defensores da primeira posição, a liberdade informação deve sempre prevalecer. Aqui, o direito ao esquecimento inexiste, portanto, não há o que se discutir a cerca do seu reconhecimento ou não. Para esta corrente, o prazo de validade do conteúdo quando atingida a finalidade, em relação ao conteúdo disponibilizado pelo próprio usuário nas redes sociais ou armazenado por empresas, na tentativa de fazer com que a Internet esqueça como a mente humana, é uma justificativa implícita para a censura em nome da privacidade.[23] Para esta corrente:

Esquecimento, em qualquer léxico, é o antônimo de memória e, desse modo, se alguém tem o direito de não ser lembrado por fatos passados desabonadores ou desagradáveis, a sociedade não tem o direito de manter a memória sobre esses fatos. O seu efetivo reconhecimento representaria, em última instância, a ruína da memória coletiva. [24]

Fleischer expõe que existe um conjunto de conceitos não relacionados, com implicações completamente não relacionadas, o que torna o estudo e posterior elaboração de legislação específica ainda mais difícil. Grande opositor ao direito ao esquecimento, finaliza a exposição do seu pensamento da seguinte forma: “Next time you hear someone talk about the Right to be Oblivion, ask them what exactly they mean. Foggy thinking won't get us anywhere.”[25]

Os defensores do esquecimento absoluto entendem que este deve sempre prevalecer em conflito com qualquer outro direito, o que pode causar desequilíbrio na balança do direito. O que deve ser feito, na verdade, é estabelecer critérios para ponderar os valores constitucionais, pensamento que vai de encontro às ideias de Gilmar Mendes[26], por exemplo, para quem o Poder Judiciário jamais poderia intervir na divulgação de fatos que ofendam os direitos da personalidade, para evitar a censura.

Pensando nisso, o Instituto Brasileiro de Direito Civil – IBDCivil adotou a Posição intermediária, através do próprio Anderson Schreiber[27]. Para esta corrente, não há regra sobre qual direito fundamental deve prevalecer em um eventual conflito. Defendem que deve ser feito um critério de ponderação a fim de pesar os princípios, de modo que seja aplicado em cada caso concreto.

Superada a análise das principais correntes, bem como dos aspectos históricos e das principais características, passamos ao estudo dos fundamentos jurídicos do direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro, que se dará em dois aspectos, um de direito privado, na esfera cível, através da exposição de algumas características dos direitos de personalidade, e outro de direito público, com as devidas notas sobre os direitos fundamentais.

A personalidade humana é protegida sob vários aspectos, como direitos humanos, direitos fundamentais e direitos da personalidade. Por essa razão, importa destacar, inicialmente, a principal diferença entre esses direitos. Os direitos humanos se preocupam com o plano internacional e independem de previsão legal no ordenamento jurídico dos Estados soberanos, enquanto que os direitos fundamentais são garantias legais positivadas em uma constituição. Já os direitos da personalidade manifestam também a proteção da pessoa, mas no âmbito das relações privadas.

Todos esses se igualam no valor tutelado: a dignidade da pessoa humana, segundo Schreiber[28], que conceitua o princípio como sendo o “valor-síntese que reúne as esferas essenciais de desenvolvimento e realização da pessoa humana”. Assim, o rol dos direitos da personalidade na legislação constitucional e infraconstitucional não impede o reconhecimento de novos direitos, uma vez que são todos fundados no princípio maior da dignidade da pessoa humana.

Nesse sentido, dispõe o enunciado 274 da IV Jornada de Direito Civil, realizada no ano de 2006, sobre o rol meramente exemplificativo desses direitos: “os direitos da personalidade, regulados de maneira não exaustiva pelo CC, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, III, da CF”.

Os direitos da personalidade, conhecidos por seu caráter absoluto, geral, extrapatrimonial, indisponível, imprescritível, impenhorável e vitalício, conforme a legislação pátria[29], e não apenas eles, mas todos os direitos deles decorrentes, são expressões da cláusula geral, prevista expressamente no art. 1.º, III da Constituição Federal de 1988, que constitui-se como um meio de flexibilização das regras, de maneira que o aplicador da norma, nos casos de difícil resolução, quando houver interesses conflitantes e a tutela de um prejudique a de outro, possa empregar a tutela geral.

Feita essas considerações, destaca-se que o direito ao esquecimento, como meio de proteção da intimidade da pessoa, no sentido de impedir a recordação indiscriminada e lesiva, é um direito subjetivo excludendi alios que, segundo Maria Helena Diniz, são aqueles direitos subjetivos no qual o titular exige uma conduta negativa dos indivíduos, não para impor um dever de esquecimento de determinada informação, mas para impedir a sua recordação indiscriminadamente e injustificadamente.

A dignidade da pessoa humana consiste no fundamento primordial do direito ao esquecimento, tanto é verdade que o Enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil ocorrida em 2013, dispôs que “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”. O princípio maior dos direitos da personalidade e dos direitos fundamentais consiste nas palavras de Sarlet em um complexo de

(...) direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.[30]

Segundo Maria Helena Diniz[31], essa “interdependência” entre os direitos da personalidade e os direitos fundamentais, faz com que esses direitos não se oponham, pelo contrário, elas se “interpenetram”, dificultando a delimitação da fronteira entre o direito público e privado, o que, segundo a autora, faz parte da constitucionalização do direito civil.

E essa publicização e constitucionalização do direito civil, iniciada com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, em virtude da sua característica fundamental a passar por todo o ordenamento jurídico, incluindo as relações privadas, tornou inevitável uma releitura do direito privado à luz do novo texto constitucional, passando a considerar os sujeitos das relações jurídicas, dando maior atenção e enxergando-os como pessoas, sujeitos de direitos, que possuem dignidade.

A conceituação clássica da dicotomia direito público e privado, atualmente superada, pressupunha uma incomunicabilidade rígida, conforme Pastora do Socorro Teixeira Leal e Alexandre Pereira Bonna[32], que traduzem essa rigidez por meio da expressão romana publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat, privatum, quod ad singulorum utilitatem, isto é, o direito público preocupava-se tão somente com a organização e estruturação da república, enquanto que o direito privado visava à utilidade das relações privadas.

Nesse sentido, Claudio Ari Mello muito bem demonstra que não mais se faz necessária a construção de uma ponte entre o direito público e o privado, uma vez que hoje os dois em muitos pontos se confundem, estando os direitos da personalidade nesses pontos e “para eles confluem métodos e concepções civilistas e constitucionalistas”.[33]

O direito ao esquecimento, por sua vez, por seu conteúdo e âmbito de proteção, considera-se não apenas como uma manifestação particular de algum dos direitos da personalidade, mas como um direito da personalidade incluso nos direitos à integridade moral e, consequentemente, um direito fundamental fundado na dignidade humana. E esse princípio deve ser respeitado não apenas nas relações públicas, mas também no âmbito privado, vinculando, portanto, a imprensa, a internet e todo o ordenamento jurídico.

Outra forma de incorporar o direito ao esquecimento em nosso ordenamento é por meio da cláusula aberta a novos direitos fundamentais, que a Constituição Federal trouxe expressamente, seguindo o mesmo entendimento das constituições anteriores. Dispõe o art. 5º, § 2º que “os direitos expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

Canotilho ensina que existem direitos fundamentais que pelo simples fato de estarem expressos na Constituição, gozam de constitucionalidade e fundamentalidade, ainda que o seu conteúdo não seja considerado materialmente fundamental. Há ainda aqueles que além de serem formalmente constitucionais, as matérias por eles protegidas são fundamentais. Assim:

direitos fundamentais materiais seriam, nesta perspectiva, os direitos subjectivos conformadores de um espaço de liberdade de decisão e de autorealização, servindo simultaneamente para assegurar ou garantir a defesa desta subjectividade pessoal.[34]

Segundo o autor lusitano, existem dois fenômenos, o da constitucionalização e o da fundamentalização. Enquanto que o primeiro diz respeito à incorporação de direitos na constituição formal, a fundamentalização versa sobre direitos fundamentais em sentido formal e material.

Os direitos fundamentais não se esgotam no texto constitucional[35]. A chamada “cláusula aberta” ou “norma de fattispecie aberta” permite que outros direitos fundamentais não expressos na Constituição sejam reconhecidos como fundamentais. Existem direitos formal e materialmente fundamentais, direitos apenas formalmente fundamentais e direitos apenas materialmente fundamentais.

A fundamentalidade formal está ligada ao próprio texto constitucional, de modo explicito ou implícito, sendo composta de três características trazidas por Ingo Wolfgang Sarlet: supremacia hierárquica das normas constitucionais; submissão aos limites formais e materiais de reforma constitucional; e aplicação e vinculação imediata às entidades públicas e os atores privados.[36] Em relação aos direitos apenas materialmente fundamentais, a Constituição não delineou critérios objetivos para a sua identificação. Em razão disso o autor[37] tenta construir parâmetros a serem utilizados futuramente pela doutrina e pela jurisprudência.

Inicialmente, faz a observação de que os direitos fundamentais em sentido material, ou seja aqueles não escritos, são aqueles equiparados aos demais expressos na Constituição. Assemelha-se à previsão constitucional portuguesa dos “direitos fundamentais de natureza análoga”[38] e por isso, devem ser protegidos, ainda que minimamente, por outros direitos formal e materialmente reconhecidos na ordem jurídica. O autor destaca ainda o princípio da dignidade da pessoa humana como sendo um dos parâmetros, de modo que todos os demais direitos convergem para tal princípio.

Nesse sentido, o direito ao esquecimento, ao trazer a ideia da não perseguição por fatos pretéritos, respeita a dignidade, como já tivemos a oportunidade de perceber através do estudo dos direitos da personalidade, assim como se assemelha materialmente a outros valores protegidos pela constituição, como a intimidade, privacidade, honra, etc.

Sobre a inviolabilidade da intimidade, privacidade e honra, dispõe o art. 5º, X, da Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Da breve leitura do artigo mencionado, percebe-se que tais conceitos não se confundem. A privacidade, por possuir um significado amplo, abrange a intimidade que, por sua vez, está diretamente ligada ao íntimo da pessoa, àquilo que terceiros não necessariamente possuem acesso. Por outro lado, a vida privada compreende a relação da pessoa com a sociedade, às suas relações sociais, ao que pensam de si.[39]

Em virtude dessa proteção constitucional, não se justificam publicações lesivas à vida privada de um indivíduo, por atingir, além da intimidade e vida privada, a própria dignidade da pessoa. Quanto a isso, a Constituição assegurou o direito a indenização pelo dano decorrente de publicações injuriosas, bem como de informações verdadeiras, mas sem qualquer interesse público atual.

Neste ponto, de acordo com os defensores do direito ao esquecimento, o instituto encontra resguardo e proteção dentro do ordenamento jurídico brasileiro, ao proteger a vida privada da pessoa, em respeito a sua dignidade. No entanto, a sua proteção no ordenamento não é absoluta, pois, assim como todo e qualquer direito fundamental, possui natureza relativa, devendo ser utilizadas técnicas de ponderação em eventuais colisões com as liberdades comunicativas, que compreendem a liberdade de imprensa, liberdade de informação, e o consequente direito à informação.

Sobre o autor
Alvaro Carneiro

Advogado com atuação na área civil e criminal na cidade de Belém e região metropolitana. Formado em Direito pela Universidade da Amazônia (UNAMA).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARNEIRO, Alvaro. A proteção do direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5665, 4 jan. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69858. Acesso em: 18 dez. 2024.

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