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Direito e evolução:

a natureza humana e a função adaptativa do comportamento normativo

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Agenda 16/07/2005 às 00:00

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NOTAS

01 De fato, na investigação acerca da singularidade do direito, o pensamento funcional é simplesmente ineludível; não podemos enumerar as possibilidades sem pressupor um conceito de função. Tal como Aristóteles fez notar no nascimento da ciência humana, nossa curiosidade pelas coisas manifesta-se de diferentes formas, todas inerentes ao mundo mundano ( ao reino do espaço e do tempo) e que não podem existir separadamente dele. Seus pioneiros esforços por conseguir uma classificação destas formas estão prenhados de sentido. Identificou Aristóteles quatro perguntas básicas para as quais buscamos respostas a respeito de algo e denominou estas (as suas respostas) de as quatro aitia - um termo grego inexprimível , ainda que tradicionalmente traduzido, de maneira um pouco estranha , pelas quatro "causas". Nos interessa, aqui, a que se refere ao fato de que podemos mostrar curiosidade acerca do propósito, objetivo ou fim de algo, a qual Aristóteles chamou telos , às vezes traduzido, também estranhamente, como "causa final".É necessário grande esforço de compreensão e adaptação para conseguir que estas quatro aitias de Aristóteles se acomodem como respostas às quatro interrogações habituais "que", "onde" , "quando" e "por que" ; esta acomodação é só parcialmente boa. Não obstante, as perguntas que começam com "por que" mantêm mais estrita correspondência com a interrogação pela quarta "causa" de Aristóteles , isto é, pelo telos de uma coisa. "Por que isto?", perguntamos constantemente . "Para que serve isto?" é pergunta tão habitual , que já passou a fazer parte de nossa cotidiana existência. De fato, durante séculos estes "por quês" foram reconhecidos como problemáticos por filósofos e cientistas ; e tão distintos, que os problemas que suscitam acabaram por merecer um nome: teleologia (Dennett, 1995).Assim que uma explicação teleológica é aquela que explica a existência ou a ocorrência de algo citando como prova o objetivo ou propósito ao que serve essa coisa. Os artefatos são os casos mais óbvios: o objetivo ou propósito de um artefato é a função a cumprir para a qual foi desenhado por seu criador. Não existe controvérsia acerca do telos de um martelo: golpear e introduzir pregos. O telos de artefatos mais complicados, como uma câmara de vídeo , um telefone celular com suas inúmeras opções de programação, um scaner para tomografia axial computadorizada (TAC) é, inclusive, mais óbvio.A idéia é certamente natural e atrativa : se observamos um relógio de bolso e nos perguntamos por que tem um vidro transparente em um de seus lados, a resposta nos induz a pensar nas necessidades e desejos de quem utiliza estes relógios : porque desejam saber que horas são, olhando através do vidro transparente e protetor, e assim em diante. Se não fosse por estes fatos que se relacionam conosco , para quem (e por quem) o relógio foi criado, não haveria explicação para o "por que" de seu vidro. E o mesmo ocorre, como se verá mais adiante, com esse artefato cultural a que chamamos "direito".

02 Trata-se da idéia sugerida por Alan P. Fiske (1993) – cuja inovadora proposta seguiremos não somente por sua boa qualidade formal, senão também por sua abrumadora riqueza empírica –e que trata de dar resposta a muitos dos interrogantes sobre a forma como a organização domínio-específica da mente humana afeta as relações sociais e condiciona nossas intuições morais. Baseado em amplo abanico de investigações antropológicas, sociológicas e psicológicas, Fiske postula a existência de quatro formas elementares de sociabilidade, quatro modelos elementares através dos quais os humanos constroem estilos aprovados de interação social e de estrutura social. Os quatro modelos elementares são os de : 1) comunidade ( comunal sharing) ; 2) autoridade ( authority ranking); 3) proporcionalidade (market pricing); e 4) igualdade (equality matching).Como estas quatro estruturas foram encontradas de forma muito extensa em todas as culturas, e como elas formam parte dos âmbitos mais importantes da vida social, Fiske sugere como inferência possível que estão arraigadas em estruturas da mente humana. Nesse sentido, uma vez que parece impensável tratar de relação jurídica (isto é, as relações pessoais do homem que o discurso jurídico identifica como tal) sem tomar como referencial as relações que são travadas no curso da existência humana, conhecer as características dos quatro tipos de vínculos sociais propostos por Fiske permite descobrir poderosas vias de articulação dessas formas de vida social : modos adequados de combiná-las, de potenciar e cultivar seus melhores lados, e de mitigar ou jugular seus lados destrutivos e perigosos . E porque todo o direito e toda a "ordem" tem um caráter relacional , aquí reside, em última análise, a tarefa de realização do direito que, desde uma perspectiva instrumental, pragmática e dinâmica, passa a ser concebido como um intento, uma técnica, para a soluçao de determinados problemas práticos relativos a conduta em interferência subjetiva dos indivíduos (Kaufmann,1999;Atienza,2003).Trata-se, em definitivo, de uma via que conduz a considerar o direito como argumentaçao, que pressupoe, utiliza e, em certo modo, dá sentido às demais perspectivas teóricas relacionadas com as dimensoes estrutural, sociológica e axiológica do fenômeno jurídico. Por conseguinte, parece razoável supor que qualquer proposta teórica de discurso jurídico deve considerar a circunstância de que toda a argumentaçao que se efetua na vida jurídica é, fundamentalmente, uma argumentaçao sobre as diversas vias por meio da quais se articulam essas (quatro) formas de vida social arraigadas na complexa estrutura da mente humana e irredutíveis entre si.

03 Tal como assinala o evolucionista Richard Alexander (1987), a principal força hostil da natureza encontrada pelo ser humano é o outro ser humano. Os conflitos de interesses estao onipresentes e os esforços competitivos dos outros membros de nossa espécie se converteram no traço mais caracteristicamente marcante de nosso panorama evolutivo.Em virtude de que todos temos as mesmas necessidades, os outros membros de nossa própria espécie sao nossos mais temíveis competidores no que se refere a vivenda, emprego, companheiro sexual, comida, roupa, etc. Sem embargo, ao mesmo tempo, sao também nossa única fonte de assistência, amizade, ajuda, aprendizado, cuidado e proteçao. Isto significa nao somente que a qualidade de nossas relaçoes sociais foi sempre vital para o bem estar material de nossa espécie, como a soluçao pacífica dos conflitos e a igualdade passaram a ser una estratégia eficaz para evitar os altos custos sociais da competiçao e da desigualdade material. Essas consideraçoes vao ao âmago mesmo dos dois tipos distintos de organizaçao social encontrados entre os humanos e os primatas nao homínidos: o que se baseia no poder e domínio ("agônico") e o que se baseia em uma cooperaçao mais igualitária ("hedônico").Devido a que as sociedades de classes tem sido predominante ao largo da história da humanidade, temos a tendência a considerar como norma humana as formas agônicas de organizaçao social. Mas isso passa por alto da evidência de que durante nossa pré-historia como caçadores-recoletores – a maior parte da existência humana- vivemos em grupos hedônicos. De fato , os antropólogos qualificaram de "firmemente" igualitárias as sociedades modernas de caçadores-recoletores – recentes em termos evolutivos e na qual transcorreu 99% da história evolutiva da espécie humana.

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04 Em realidade, nosso comportamento, nossas sociedades, nossa cultura e nossas normas de conduta (éticas ou jurídicas) sao a resposta que elaboramos, com os mecanismos psicológicos evolucionados de que dispomos, para solucionar os problemas relativos às exigências e contingências de uma existência essencialmente grupal. E isto se dá graças a uma arquitetura cerebral que confirma a longínqua idéia de Konrad Lorenz, a saber, a existência de um imperativo biológico capaz de combinar respostas instintivas e códigos morais.Como afirma Antonio Damasio(2001), os valores éticos constituem estratégias adquiridas para a sobrevivência dos indivíduos de nossa espécie, mas tais habilidades adquiridas encontram um apoio neurofisiológico nos sistemas neurais de base que executam as condutas instintivas. Os processos cerebrais que têm uma relação com as emoções articulam-se profundamente com os que provocam cálculos de avaliação.Assim que se o juízo ético-jurídico está baseado em raciocínios que provocam cálculos de avaliaçao, mas também em emoçoes e sentimentos morais produzidos pelo cérebro, nao pode ser considerado como totalmente independente da constituiçao e do funcionamento desse órgao cuja gênese deverá entao ser reintegrada na história evolutiva própria de nossa espécie.

05 É da natureza do existir humano que quando observamos o comportamento de nossos congêneres, raras vezes, e é possível até que nunca, observamos um mero mosaico de atos incidentais; o que vemos detrás deles é uma estrutura causal mais profunda, a presença oculta de planos, intençoes, emoçoes, recordaçoes, etc., e partindo dessa base, podemos tratar de compreender o que fazem os demais. Em outras palavras, parece que estamos desenhados pela seleçao natural para ter uma capacidade de prever ou de ter uma imagem, uma espécie de modelo conceitual da mente humana, sem o qual uma espécie essencialmente social como a nossa nao haveria conseguido prosperar no entorno sócio-cultural em que plasma sua existência. A compreensao interna é nosso direito desde o nascimento e nosso maior presente.Cada um de nós começa sua vida preparado pela natureza para criar o mundo dos demais a sua própia imagem.Para una criança nao há outra alternativa; nao vê nos demais nem mais nem menos que os sentimentos que ele mesmo conheceu e, à medida em que se enriquece, o mundo que lhe rodea se enriquece com ele. Em verdade , é no trato de uns com outros quando temos que pensar, sentir, recordar, calcular e sopesar as coisas , ou seja, em que a empatia , a cooperaçao (e desde logo o egoísmo) e o altruismo fluem com maior naturalidade. E a inteligência social requer até a última gota do poder cerebral que possuímos. Os seres humanos nao podem sobreviver, em nenhum lugar da terra, à margem da sociedade: nao podem sobreviver , quero dizer, em nenhum lugar da terra, de forma autonoma e separada, se carecem de uma profunda sensibilidade e capacidade de compreensao do "outro".Assim como ensinam mesmo as mais laicas entre as ciências, é o outro, é seu olhar, que nos define e nos conforma. Nós (assim como nao conseguimos viver sem comer ou sem dormir) nao conseguimos compreender quem somos sem o olhar e a resposta do outro. Na falta desse reconhecimento, o recem-nascido abandonado na floresta nao se humaniza (ou, como tarzan, busca o outro a qualquer custo na cara de um mono); e poderíamos morrer ou enlouquecer si vivessemos em uma comunidade na qual, sistematicamente, todos houvessem decidido nao nos olhar jamais ou comportar-se como se nao existíssemos: seríamos, por certo, como uma especie de Adao bestial , solitário e sem consciência, que nao viveria em sua "existência" o significado da relaçao sexual, o prazer do diálogo e do consenso, o amor pelos filhos e a dor da perda de uma pessoa amada (Umberto Eco, 2000).De fato, várias teorias modernas da evoluçao do cérebro humano mantêm que o principal estímulo ambiental seletivo para seu rápido crecimento podem haver sido as exigências de ter que tratar com a complexidade da vida social. Em vez de pensar que o cérebro humano se desenvolveu simplesmente para solventar os problemas do entorno material, temos que considerar mais bem como um orgao social desenvolvido no interior do espirito coletivo de um grupo social, mas nao como uma máquina calculadora generalizada, senao como provisto de módulos para tratar com os distintos aspectos da vida social, ao igual que tem também módulos para a adquisiçao da linguagem ou para a reconhecimento facial.

06 A noção de "função própria" foi cunhada por Ruth Millikan em 1984. Segundo Domènech (1998), o último Hayek se mostrou muito preocupado por este fato, uma vez que via nas funções próprias de nossas intuições morais uma ameaça e uma fonte inamovível de descontentamento e oposição à ordem capitalista ultraliberal que era de seu gosto: "Os instintos inatos do homem não são a propósito para uma sociedade como a que vivemos. Os instintos estavam adaptados à vida em pequenos grupos (...).Só a civilização trouxe individualização e diferenciação. O pensamento primitivo consiste fundamentalmente em sentimentos comuns dos membros dos pequenos grupos. O coletivismo moderno é uma recaída nesse estado selvagem, um intento de reconstruir esses fortes vínculos que se dão nos grupos limitados...- Hayek (1983: 164-165)".

07Em realidade, uma das consequências mais importantes dos experimentos pioneiros de Cosmides e Tooby - seguramente hoje um dos melhores trabalhos de psicologia darwiniana (Dennett,1995)- , é o fato de que, hoje, sabemos que a formação de um contrato não é simplesmente o produto de uma única faculdade racional, que opera igualmente através de todos os acordos que estabelecem entre si as partes que negociam. Ao contrário, uma capacidade, a detecção do engano , desenvolve-se até níveis excepcionais de agudeza e cálculo rápido. A detecção do "trapaceiro" destaca em agudeza da detecção do mero erro e do estabelecimento do intento altruísta por parte dos demais: um contrato é uma implicação da forma " se queres obter um benefício, tens que satisfazer um requisito" ; os tramposos se levam o benefício sem satisfazer o requisito (Pinker,2000).Além disso, esta capacidade de detecção é desencadeada como um procedimento computacional somente quando se especificam os custos e os benefícios de um contrato social. Mais que o erro, mais que as boas razões, e mais inclusive que a margem de benefício, o que atrai a atenção é a possibilidade de que outros nos enganem : excita nossas intuições e emoções morais e serve como fonte principal de chispas hostís e de desequilíbrio dos quatro vínculos que estabelecemos em nosso intercambio social. De tal maneira , a mente parece dispor de um detector de mentiras com uma lógica própria : quando a lógica standard e o detector lógico de mentiras coincidem, as pessoas atuam como lógicos; quando se separam, seguimos buscando quem faz trapaça. E foi a predição do biólogo evolutivo Robert Trivers de que os seres humanos, os altruístas mais chamativos do reino animal, devemos ter desenvolvido um algoritmo detector de tramposos hipertrofiado , que levou Cosmides a buscar (e descobrir) este mecanismo mental , partindo da análise evolutiva do altruísmo (Pinker,2000).

08 Nossas mentes, dizem Sober e Wilson (2000), foram formadas por mecanismos psicológicos que evolucionaram por seleçao natural para motivar e produzir comportamentos adaptativos, entre os quais se encontra um interesse remoto pelo bem estar dos demais e as predisposiçoes típicas de uma espécie desenhada para ser social, fidedigna e cooperadora. Os seres humanos estao prenhados de instintos sociais: vêm ao mundo equipados com predisposiçoes para aprender a cooperar, a distinguir o fidedigno do traiçoeiro, a procurar ser leais, a conquistar boa reputaçao, a intercambiar produtos e informaçoes , a dividir o trabalho e a modelar sua individualidade e seus vínculos sociais a partir das reaçoes do outro. Nisso, estamos sozinhos. Espécie alguma avançou tanto em sua caminhada evolutiva, pois nenhuma outra construiu uma sociedade tao integrada, à exceçao dos parentes dentro de uma grande família, como a colônia de formigas. Devemos nosso êxito como espécie aos instintos sociais que possuímos; eles nos permitiram colher benefícios inimagináveis de nossa entranhável vida social (por exemplo, ao nascer com um cérebro imaduro, que leva certo tempo para desenvolver-se, jamais poderíamos sobreviver, como espécie, se nao dispusessemos de intensas emoçoes morais e de rígidos códigos de ética compartidos pelo grupo ao qual pertencemos). São eles os responsáveis pela rápida expansão do nosso cérebro nos últimos dois milhoes de anos e, conseqüentemente, por nossa criatividade. A sociedade e a mente humana evoluíram juntas, uma reforçando tendências da outra. Longe de ser uma característica universal da vida animal, a tendência a cooperar e a raciocinar em termos de contrato social é a marca de qualidade e legitimidade do ser humano, aquilo que nos distingue de outros animais.

09 Aquí se coloca o problema de que as intuições e as emoções morais da gente podem estar irreparavelmente marcadas por seus interesses. Também é possível, e inclusive não infrequente que uma diferença de intuições morais de origem biológica seja amplificada pela elaboração cultural dessas intuições: sabemos que os ciúmes sexuais masculinos (desenvolvidos evolucionariamente como uma estratégia psicológica para proteger a certeza masculina da paternidade), uma vez manipulados pela elaboração cultura, podem causar sofrimentos, inclusive até a morte, a muitas mulheres do mundo, amplificada que pode ser até o execrável uma diferença de intuições morais de origem biológica. Assim, por exemplo, determinadas hipóteses biológico-evolucionárias sobre a filogênesis humana e o estudo etológico do comportamento de nossa espécie coincidem em insistir no chamado "lado escuro da sexualidade masculina" ( Wilson e Daly, 1992). De acordo com esta tese , o comportamento sexual masculino estaria em boa medida guiado pelo temor do "cuco": pelo temor à prosmicuidade de sua companheira feminina e a consequente inversão de recursos próprios na criação de filhos alheios. Daí derivariam umas tendências "proprietaristas" sobre as mulheres, isto é, umas intuições morais tendentes a considerar a mulher como uma propriedade. Dessas intuições digamos "naturais" – para seguir com a hipótese - se podem fazer elaborações culturais muito distintas : desde a "mulher dona de casa" de nossa cultura, até a ablação de clitóris, habitual em certas culturas norte e centro-africanas, passando pelo chador islâmico e a vendagem e a molduração dos ossos dos pés da tradição chinesa. Neste tipo de culturas, que amplificam até o abominável disposições de raiz presumivelmente biológica, parece difícil achar soluções menos radicais que a posta em marcha pelo governo revolucionário da China em 1949: varrer sem contemplações toda a tradição cultural (Domènech,1998).

10 Como recorda Camilo J. Cela-Conde (1999), esses dois patrimônios coletivos (gens/cultura) também têm uma expressao individual: eles confluem em um ser humano particular. Parece , assim , necessário acrescentar aos dois domínios acima indicados um terceiro domínio denominado de "atualizaçao" ética, cujo sentido ontológico é diferente dos dois precedentes e que pode vir a tornar viável uma concepçao ética universalista e, dessa forma, evitar a bancarrota dos chamados direitos humanos. O novo domínio de atualizaçao ética é totalmente individual: ele toma corpo numa combinaçao duplamente única de alelos, por um lado; e de valores, por outro, que confluem no cérebro de cada indivíduo, ou se preferirmos, em seu espírito. A atualizaçao de todas as combinaçoes genéticas e ideológicas possíveis se realiza, em cada um de nós, de forma individual e única. E nao se poderá compreender como se articulam as duas dimensoes (da motivaçao da açao moral e os critérios éticos), sem compreender a forma pela qual se realiza o processo do conhecimento em nosso espírito – ou seja, sem entender a importância do cérebro na compreensao dos fenômenos mentais.Em realidade, ainda nao se pode dizer grande coisa sobre este processo. Mas parece razoável supor que a chave para compreender as relaçoes entre natureza humana e construçao cultural, entre individuo e sociedade, consiste em evitar os dois tipos de dualismo: o que separa o individuo de seu grupo social e o que distingue o espírito do cuerpo. Daí que, se existe alguma esperança, ainda que remota , será,uma vez mais, nossa natureza humana a responsável em fornecer ; ou , talvez , seria melhor dizer, ela será medida por sua adesao ao que há de comum em nossa inerente e compartida humanidade. Ela é a que pode dar argumentos a favor da existência de universais éticos e jurídicos , desses que John Rawls considerava princípios essenciais da justiça. Afinal, uma vez que todos os homens têm um cérebro cujos grandes principios de organizaçao e funcionalidade sao os mesmos para o conjunto da humanidade, os valores de "vida justa" , "o ideal de vida justa", "com e para os outros" de acordo com os termos de Paul Ricoeur, que cada um concebe, podem perfeitamente ser compartidos , em detrimento das diferenças culturais e de opiniao a primera vista inconciliáveis.

11Os conflitos intergrupais se acentuam em populaçoes animais de grande complexidade social, mas a maioria das espécies altamente sociais estao equipadas com dispositivos para condutas altruístas e com a capacidade de resolver conflitos sem necessidade de recorrer à agressividade. Sem embargo, parece razoável supor que unicamente os humanos temos alguna noçao do correto e do incorreto, e que ademais estamos capacitados para refletir sobre ele, assim como para corregir nossa conduta ou submetê-la a regras de comportamento. Em nosso caso, acrescentamos a estes recursos básicos de nossa natureza um conjunto de prescriçoes culturalmente sancionadas e às quais denominamos normas de conduta (morais e/o jurídicas).

12 De fato, uma compreensao mais profunda das causas últimas, radicadas em nossa natureza, do comportamento moral e jurídico humano, pode ser muito importante para saber quais sao os limites e as condiçoes de possibilidade da moral e do direito no contexto das sociedades contemporâneas. Afinal, estabelecer princípios e preceitos normativos que nao têm nada que ver com a natureza humana é o mesmo que condená-los ao fracasso.É possível, por que nao dizer, que a maior parte das propostas de fundamentaçao dos princípios e preceitos normativos que já se formularam ao longo da história pequem por sua inviabilidade em funçao dessa desatençao com relaçao a realidade biológica que nos constitui , ou seja, pela falta de precisao de sua adesao à natureza humana.

13 Parece inegável o fato de que somos o resultado de dois processos diferentes , cujo encontro, se podemos dizer, nos constitui: um processo biológico de hominizaçao (pelo qual o Homo sapiens se distingue progressivamente das espécies de que descende :mutaçoes e seleçao natural) e um processo histórico de humanizaçao (pelo qual ele se destaca pouco a pouco da natureza : regras, moral, linguagem, cultura, civilizaçao...).Esses dois processos existem evidentemente. Nao obstante, compartimos da idéia de que a hominizaçao é primeira: a humanizaçao, sem ser um simples resultado (os indivíduos também têm seu papel, com o que isso supoe de contigência e criatividade), depende dela. De início, é afinal a natureza humana unificada e fundamentada na herança o que faz a diferença.

14 Ao mesmo tempo, diz F. de Waal (1996) – para quem o processo evolutivo nos proporcionou a habilidade e os requisitos para desenvolver uma moralidade, assim como um conjunto de necessidades e de desejos básicos que a moralidade deve ter em conta - , deveria ser óbvio que a moralidade humana nao pode ser infinitamente flexível. O que nós nao desenhamos sao as ferramentas da moralidade nem as necessidades básicas e os desejos que criam a substância com a qual atua. As tendências naturais nao podem ser equiparáveis aos imperativos morais, mas sim que desempanham uma funçao quando tomamos decisoes. Por conseguinte, ainda que algumas regras morais reforcem as predisposiçoes típicas de uma espécie e outras as reprimam, nenhuma as passa por alto ou as ignora. Em resumo, em lugar de considerar a moralidade como uma invençao radicalmente nova, F. de Waal tende a vê-la como uma extensao natural de antigas tendências sociais , como parte integrada do lote da natureza humana que se desenvolve através de nossas interaçoes sociais.

15 Nesse sentido , uma formulaçao mais sofisticada e complexa do nexo entre o "ser" e o "dever ser" , implica que a ponte entre a natureza inata do homem – código genético, organizaçao domínio-especifico da mente, etc.- e todo o tipo de fenômeno cultural ( sejan juízos éticos ou juridicos, condutas altruístas ou, em geral, açoes nas quais está implicada a moralidade e a juridicidade) tem de considerar esta última como uma manifestaçao, um epifenômeno que expressa uma forma determinada de conduta adaptativa , produto de uma arquitetura cognitiva estruturada de forma funcionalmente integrada e relativamente homogênea. Tomando como base as neurociências , e considerando o "dever ser" como produto de um processo material de mentes funcionalmente integradas – e que durante mais de mil geraçoes favoreceu e aumentou a sobrevivência, o intercambio social e o êxito reprodutivo daqueles que se adaparam à "fé da tribo" - , se poderia resumir da seguiente maneira: a conduta social humana se transmite mediante a cultura, mas a cultura é produto da atividad mental humana, e esta é produto do cérebro. O cérebro é, por sua vez, produto da evoluçao genética. Apesar de ser um orgao tao complexo, estruturado e flexible, o cérebro apresenta uma grande quantidade de predisposiçoes geneticamente programadas para o aprendizado e a adoçao de determinadas condutas : predisposiçoes a aprender certas coisas melhor que outras e a adotar certos comportamentos antes que outros. Estas predisposiçoes estao aí, sao fruto da evoluçao do cérebro por seleçao natural, e como a seleçao natural atua sobre os gens, os responsáveis de nossas predisposiçoes sao os gens que constróem o cérebro. Observe-se, por outro lado, que parece haver um vínculo bastante forte entre a natureza humana, o comportamento moral, o valor semântico da linguagem e do diálogo, e seu papel adaptativo. O valor funcional da conduta moral é imenso e permite, por outro lado, compreender, provavelmente, como os antigos hominídos poderam sobreviver. Nao sabemos quais foram as primeiras palavras que deram lugar ao surgimento da linguagem. Mas em um contexto completamente diferente, o da análise semântico da linguagem moral, Ernest Tugendhat indicou que a categoria semântica de qualquer predicado moral se baseia no significado inteiramente incontestável da palavra "bom". Para que a linguagem moral tenha um sentido ou, melhor ainda, para que possa ser funcionalmente adaptativo, "bom" deve significar "bom para todos". Nenhuma moral em sua origem pode fixar um significado de "bom" como "bom somente para mim" e ser, ao mesmo tempo, útil para transmitir informaçoes adaptativas relativas ao meio .

16 Por exemplo: os direitos humanos e dos menores poderiam estar baseados em nossas inclinaçoes naturais pelas idéias de libertade individual e de igualdade, de justiça social e de proteçao no que se refere a infância; isto é devido ao fato de que: a) somos animais que nao gostamos de viver enjaulados ou constrangidos; b) reacionamos (para o bem ou para o mal) a qualquer comportamento que implique desigualdade com relaçao a nossa pessoa; c) nos comove o sofrimento de nossos semelhantes; e d) gostamos de ver que nossas crianças crescem em um entorno seguro.

17 Nesse sentido, porque permite enfrentar-se às hipertrofias e hipotrofias dos distintos vínculos sociais relacionais: aos excessos e defeitos, isto é, das relações de comunidade, de autoridade , de proporcionalidade e ainda dos mesmos vínculos sociais de parigualdade nos que se inserta a própria relação de concidadania. Da mesma forma, e em igual medida, porque permite enfrentar também a fagocitação de um tipo de vínculo social por outros: as restrições anti-alienatórias e anti-acumulatórias ao uso da propriedade privada, por exemplo, tratam de evitar que os vínculos sociais de proporcionalidade ( o mercado) socavem tanto as bases da vida social comunitária como a eficácia mesma da cidadania ; as restrições anti-alienatórias e anti-acumulatórias ao uso do direito de sufrágio tratam de evitar a corrupção da relação de parigualdade cidadã por contágio dos vínculos de proporcionalidade. E a famosa "eterna vigilância cidadã" republicana que trata de evitar que o abuso de autoridade por parte dos magistrados rompa os vínculos da parigualdade cidadã e degrade a res publica a imperium.

18 Por conseguinte, o objeto do discurso jurídico, em última instância, só pode ser o homem, mas nao o homem puramente empírico, nem sequer o homem meramente como noumênico , mas o homem como pessoa (em sentido ontológico-relacional, situado no tempo e no espaço, em sua história e em sua natureza), quer dizer, como o conjunto de relaçoes em que se encontra e para o qual está desenhado para estabelecer ao longo de sua existência. E como as relaçoes jurídico-pessoais do ser humano sao aquelas que o discurso jurídico identifica como tal, a legitimidade do direito está condicionada ao fato de que o processo de sua concreta realizaçao e de sua atuaçao ocorra de modo a : a) negativamente, impedir o homem do esquecimento de sí próprio ; b) positivamente, de o afirmar no seu ser e, assim, no seu incondicional valor ; e, c) positiva e negativamente , de plasmar e realizar historicamente as expectativas normativas de uma comunidade de indivíduos (ante qual o discurso jurídico deve apresentar-se justificado) que, como estratégias adaptativas, sirvam para iluminar , fundamentar e constituir determinado agrupamento social em uma comunidade ética.

19 Neste particular, um modelo institucional desenhado a partir de uma concepçao republicana democrática parece ser o mais adequado, nao somente pelo fato de que a tradiçao republicana seja capaz de reconhecer a pluralidade das motivaçoes da vida social humana – o que seguramente já constitui uma gigantesca vantagem de partida com relaçao ao monismo motivacional da tradiçao liberal -, mas principalmente porque seu peculiar talante de modelo ético-político aberto aporta valores de cidadania e de metodologia jurídico-política essencialmente úteis para tomar a lei como um instrumento de construçao social e, muito particularmente, para assimilar os cambios formais e materiais no processo de toma de decisoes ante a dinâmica fluída ( e por vezes enlouquecida) do "mundo da vida" cotidiana.

Sobre o autor
Atahualpa Fernandez

Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDEZ, Atahualpa. Direito e evolução:: a natureza humana e a função adaptativa do comportamento normativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 742, 16 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6999. Acesso em: 26 dez. 2024.

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