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Globalização e genocídio econômico

Agenda 01/05/2000 às 00:00

O processo histórico e irreversível da globalização, no alvorecer desse novo Milênio, não poderá destruir o ideal humanístico de Pêro Vaz de Caminha, quando de sua ocasional visita colonialista ao continente que veio depois a se chamar Brasil, afirmara, em sua primeira Carta ao Rei de Portugal, que desta terra "muito chã e muito formosa, o melhor fruto que dela se pode tirar será salvar esta gente".

          Na ética desse sonho inaugural, precisamos salvar esta gente do genocídio econômico que nos é imposto pela ganância capitalista da agiotagem internacional, comandada pela ditadura das reformas do FMI e do Banco Mundial, responsáveis pela globalização da pobreza.

          Michel Chossudovsky, professor de Economia da Universidade de Ottawa e pesquisador do Centro de Estudos de Áreas em Desenvolvimento da Universidade McGill de Montreal, no Canadá, mostra-nos, com sua autoridade e clareza, como as estruturas da economia global foram fundamentalmente modificadas, neste final de século, gerando conseqüências de uma nova ordem financeira global, que se alimenta da pobreza humana e da destruição do meio ambiente, criando o appartheid social, com estimulação do racismo e dos conflitos étnicos.

Numa visão melancólica da virada do século, este é o cenário da tragédia humana, na geopolítica global:

Desde o começo dos anos 80, os programas de "estabilização macroeconômica" e de "ajuste estrutural" impostos pelo FMI e pelo Banco Mundial aos países em desenvolvimento (como condição para a renegociação da dívida externa) têm levado centenas de milhões de pessoas ao empobrecimento. Contrariando o espírito do acordo de Bretton Woods, cuja intenção era a "reconstrução econômica" e a estabilidade das principais taxas de câmbio, o programa de ajuste estrutural (PAE) tem contribuído amplamente para desestabilizar moedas nacionais e arruinar as economias dos países em desenvolvimento.

O poder de compra interno entrou em colapso, a fome eclodiu, hospitais e escolas foram fechados, centenas de milhões de crianças viram negado seu direito à educação primária. Em várias regiões do mundo em desenvolvimento, as reformas conduziram ao ressurgimento de doenças infecciosas, entre elas a tuberculose, a malária e o cólera. Embora a missão do Banco Mundial consista em "combater a probreza" e proteger o meio ambiente, seu patrocínio para projetos hidrelétricos e agroindustriais em grande escala também tem acelerado o processo de desmatamento e de destruição do meio ambiente, causando a expulsão e o deslocamento forçado de vários milhões de pessoas.

Após a guerra fria, a reestruturação macroeconômica passou a contemplar interesses geopolíticos globais. O ajuste estrutural é usado para minar a economia do antigo bloco soviético e desmantelar seu sistema de empresas estatais. Desde o fim da década de 80, o "remédio econômico" do FMI-Banco Mundial vem sendo aplicado no Leste Europeu, na Iugoslávia e na ex-União Soviética, com conseqüências econômicas e sociais devastadoras.

O mesmo cardápio de austeridade orçamentária, desvalorização, liberalização do comércio e privatização é aplicado simultaneamente em mais de cem países devedores. Estes perdem a soberania econômica e o controle sobre a política monetária e fiscal; seu Banco Central e Ministério da Fazenda são reorganizados (freqüentemente com a cumplicidade das burocracias locais); suas instituições são anuladas e é instalada uma "tutela econômica". Um "governo paralelo" que passa por cima da sociedade civil e é estabelecido pelas instituições financeiras internacionais (IFIs). Os países que não aceitam as "metas de desempenho" do FMI são colocados na lista negra.

O ajuste estrutural é conducente a uma forma de "genocídio econômico" levado a cabo pela deliberada manipulação das forças do mercado. Comparando-o a outros tipos de genocídio, em vários períodos da história colonial (por exemplo, trabalhos forçados e escravidão), seus impactos sociais são devastadores. Os PAEs afetam diretamente a subsistência de mais de quatro bilhões de pessoas. Sua aplicação em grande número de países devedores favorece a "internacionalização" da política macroeconômica sob o controle direto do FMI e do Banco Mundial, atuando em nome de poderosos interesses políticos e financeiros (por exemplo, os Clubes de Londres e de Paris, o G-7). Essa nova forma de dominação econômica e política - de "colonialismo de mercado" - subordina o povo e os governos por meio da interação aparentemente "neutra" das forças do mercado. A burocracia internacional sediada em Washington foi investida, pelos credores internacionais e corporações multinacionais, do poder de execução de um plano econômico global que afeta a sua subsistência de mais de 80% da população mundial. Em nenhuma época da história o "livre" mercado - operando no mundo por meio dos instrumentos da macroeconômica - desempenhou um papel de tal importância na determinação do destino de nações "soberanas". (1)

O Brasil está mergulhado, infelizmente, neste contexto histórico, tragicamente melancólico e funerário do capitalismo selvagem, indiferente aos valores humanos e sociais.

Precisamos realizar ainda o sonho idealista de Pêro Vaz de Caminha, salvando toda esta gente do holocausto neoliberal.

Com inteira razão, observa Paulo Bonavides que "a ditadura de 64 encarcerou, torturou e assassinou nos calabouços da repressão muitos de seus opositores; o neoliberalismo, todavia, sem derramar o sangue dos patriotas, parece se achar inclinado a perpetrar atos igualmente reprováveis na esfera da economia, da ética, da tributação e do serviço público.

Assim, por exemplo, quando intenta - e em alguns casos já o fez - desnacionalizar a ordem econômica, despedaçar o Estado, abdicar a soberania nos acordos lesivos ao interesse nacional, promover a recessão, perseguir com emendas constitucionais e medidas provisórias o corpo burocrático da administração pública, cercear direitos adquiridos, arruinar o pequeno e médio empresário, esparzir o medo e o sobressalto na classe média, diminuir o crédito ao produtor rural, elevar à estratosfera a taxa de juros, esmorecer a reforma agrária, confiscar o bolso do contribuinte com novos impostos, fazer da reforma tributária um engodo e da reforma administrativa uma falácia, conduzir o trabalhador ao desespero, praticar sistematicamente uma política de desemprego que, levando a fome ao lar de suas vítimas, desestabiliza a ordem social, abater as autonomias estaduais e municipais, mediante mudanças na Constituição que afetam os entes federativos e só fortalecem a União, semear a descrença do povo na melhoria de sua qualidade de vida pela brutal indiferença com que trata a questão social, estabelecer o retrocesso político nas instituições republicanas com a reeleição presidencial, desestruturar o ensino público e comprimir com indigência de meios financeiros a autonomia universitária, abrir sem freios o mercado à voracidade dos capitais especulativos de procedência externa, que ameaçam de mexicanização a economia brasileira, descumprir oito artigos da Constituição que regem interesses fundamentais das Regiões, o que ocorre na medida em que sua política do Mercosul acelera os desequilíbrios regionais no País e, finalmente, jungir o Brasil a uma política de sujeição externa vazada na obediência aos interesses da chamada globalização econômica.

Esta poderá significar para as economias periféricas o começo da mais nova e irresgatável servidão, aquela aparelhada por um colonialismo tecnológico e informático, que fará os fortes mais fortes e os fracos mais fracos. Entre estes, sem dúvida, há de arrolar-se, caudatariamente, na miragem do desenvolvimento, países como o Brasil, a Argentina e o México.

A globalização é ainda um jogo sem regras; uma partida disputada sem arbitragem, onde só os gigantes, os grandes quadros da economia mundial, auferem as maiores vantagens e padecem os menores sacrifícios".(2)

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Em veemente manifesto ao povo e à nação brasileira, nos idos de abril de 1997, os eminentes Subprocuradores-gerais da República, órgãos de cúpula do Ministério Público Federal, conscientes de lhes incumbir a defesa da ordem jurídica e do regime democrático, pronunciaram-se, nestes termos:

"1º) Constitui invasão à independência e harmonia dos Poderes (CF, art. 2º) assenhorear-se o Executivo da função legislativa, reeditando indefinidamente medidas provisórias que já haviam perdido a eficácia pela sua não-conversão em lei no prazo de trinta dias (Cf, art. 62 e par. único) resultando num caos legislativo que atropela o Poder Judiciário, alvo ainda de desapreço pelas críticas a seus julgamentos e de medidas restritivas a seu livre exercício;

2º) são injustos os chamados reajustes estruturais mediante reformas que só atingem a sacrificada massa do povo, mantidos os privilégios de castas como o preço que se tem de pagar pela democracia (às avessas!) - quer achatando os salários a pretexto de salvaguardar o plano de estabilidade financeira, quer promovendo ou ameaçando demissões dos funcionários públicos - , agravando ainda mais o imenso desemprego, que já afeta a classe trabalhadora, numa insensibilidade aos problemas sociais daí decorrentes. Se o Estado tem como um de seus fundamentos os valores sociais do trabalho (CF, art. 1º, IV), cabe-lhe proporcionar condições indispensáveis á sobrevivência. A receita de um regime econômico que organismos internacionais intentam implantar nos países do terceiro mundo tem transformado a Constituição-cidadã num subproduto da economia, desmantelando o próprio arcabouço do Estado;

3º) agride a soberania nacional, em sua integridade e independência, entregar à cobiça privada ou estrangeira a exploração de nosso subsolo ou da plataforma oceânica, o controle de nosso espaço aéreo e a incomensurável devastação de nossa mata amazônica. A privatização de nossas riquezas minerais estratégicas e ecológicas – baluarte da independência econômica e altivez do país perante as demais Nações – não pode implicar a alienação daquelas, como sendo ilegítima sua imposição de cima, ninguém individualmente sendo dono do País, eis que a soberania - conceito absoluto que não admite restrições - emana do povo e em seu nome é exercida (CF, art. 1º, par. único);

4º) constituem crimes de responsabilidade os atos que atentem contra o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e do Ministério Público (CF, art. 85, II). Por isso são absolutamente inaceitáveis os projetos de lei que amesquinham este último e transformam o livre exercício de suas funções institucionais (CF, art. 129), tipificando-se em crimes de abuso de autoridade: pois é através de suas garantias (CF, art. 128, § 5º, I) — que não são privilégios! —, consagradas multissecularmente, que são protegidos os direitos do cidadão".(3)

Em verdade, o regime de exceção, que a normativa abusiva das medidas provisórias implantou no Brasil, dispondo o Sr. Presidente da República, com força despótica, sobre todas as matérias de sua competência privativa e da competência dos demais órgãos e Poderes da União não tem respaldo constitucional, nem encontra abrigo na geografia globalizante dos povos livres.

Um República conduzida por "Medidas Provisórias" é uma República apenas provisória, tendente a falir e onde não se constrói jamais uma ordem jurídica justa, mas um complexo normativo, propício à ditadura e ao arbítrio dos que gerenciam interesses econômicos do colonialismo de grupos financeiros alienígenas.

          Walter Gordon, ex-Ministro das Finanças canadense, já dizia, em Toronto, que "a independência econômica anda de mãos dadas com a independência política. Ao desejar a independência, não somos diferentes de outros povos, como os Estados Unidos da América. Alguns podem chamar isso de nacionalismo e é o que realmente é: respeito, lealdade e entusiasmo pelo próprio país além de legítimo otimismo e confiança em relação a seu futuro". (4)

Analisando o Estado e o desafio tecnológico, neste contexto histórico, Miguel Reale apregoa que "os que se inquietam com o futuro do homem, numa época de marcada transição curiosamente coincidente com a passagem para o novo milênio, não escondem a mais profunda preocupação perante certos desgarramentos da sociedade de massa, sempre mais dominada pela obsessiva posse e gozo das últimas benesses propiciadas pelo progresso tecnológico, que tende a transformar as novas gerações em atormentados joguetes da "civilização do orgasmo", que se caracteriza pela incontida ansiedade de imediata fruição de tudo aquilo cujas virtudes e vantagens os poderosos meios de comunicação enaltecem, em perene e aliciosa propaganda, que obedece tão-somente, à nunca satisfeita ambição empresarial".(5)

Ressalta o eminente filósofo que a "civilização do orgasmo", na globalidade da cultura contemporânea, vem marcada "de um lado, pela sofreguidão do gozo incontinenti de todos os prazeres que a vida possa proporcionar, tendo o sexo como centro referencial e, de outro lado, pela carência de um ideal ético, tanto individual como coletivo, em virtude de ter-se perdido a consciência de que o significado maior da existência consiste na oportunidade de aperfeiçoamento espiritual que ela proporciona".

Precisamos salvar esta gente, nestes 500 anos de Brasil, como preconizava, no longe do tempo, o espírito idealista de Pêro Vaz de Caminha, pois os argonautas do colonialismo brutal dos dias de hoje não possuem qualquer sentimento humano de solidariedade ou sintomas de idealismo, ante a dominação sensorial da ganância dos lucros, no mercado globalizado dos capitais financeiros.

Neste mundo novo que amanhece em nossa terra "muito chã e muito formosa", como bem lhe predicava Pêro Vaz de Caminha, no limiar de nossa história, é preciso lutar para salvar esta gente, com "a fé no direito, como o melhor instrumento para a convivência humana, na justiça, como destino normal do direito; na paz, como substitutivo benevolente da Justiça; e, sobretudo, com fé na liberdade, sem a qual não há direito, nem justiça, nem paz" (6), pois "a justiça coroa a ordem jurídica, a ordem jurídica assegura a responsabilidade, a responsabilidade constitui a base das instituições livres; e sem instituições livres não há paz, não há educação popular, não há honestidade administrativa, não há organização defensiva da Pátria contra o estrangeiro". (7)


B I B L I O G R A F I A

1 – CHOSSUDOVSKY, Michel. A Globalização da Pobreza – tradução de Marlene Pinto Michael – 1ª Edição – Ed. Moderna Ltda – 1999 – São Paulo – pp. 26/30.

2 – BONAVIDES, Paulo. A Constituição Aberta – Malheiros Editores – 2ª Edição – 1996, São Paulo, pp. 282/283.

3 – SUBPROCURADORES-GERAIS DA REPÚBLICA. Manifesto ao Povo e à Nação Brasileira – 28 de abril de 1997

4 – GORDON, Walter. A Choice For Canada Independence or Colonial Stratus – Toronto – 1996

5 – REALE, Miguel. Paradigmas da Cultura Contemporânea – Editora Saraiva – 1999 – São Paulo – 1ª Edição, pp. 119 e 135

6 – COUTURE, Eduardo J. Os Mandamentos do Advogado – Tradução de Ovídio A. Baptista da Silva e Carlos Otávio Athayde – Sérgio Antônio Fabris Editor – Porto Alegre, p. 61.

7 – BARBOSA, Rui. Discursos no Instituto dos Advogados Brasileiros – Sérgio Antônio Fabris Editor – Porto Alegre - 1985, p. 37

Sobre o autor
Antônio Souza Prudente

juiz do Tribunal Regional Federal da 1ª Região especialista em Direito Privado e Processo Civil pela USP e em Direito Processual Civil, pelo Conselho da Justiça Federal (CEJ/UnB), mestrando em Direito Público pela AEUDF/UFPE, Professor

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PRUDENTE, Antônio Souza. Globalização e genocídio econômico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 41, 1 mai. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70. Acesso em: 23 dez. 2024.

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