VI – O ARTIGO 461 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973 E AS POLÍTICAS PÚBLICAS
6.1 – O PROBLEMA DA INCONSTITUCIONALIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Disse J. J. Gomes Canotilho[47] que os juizes não se podem transformar em conformadores sociais nem é possível, em termos democráticos processuais, obrigar jurisdicionalmente os órgãos políticos a cumprir um determinado programa de ação. No entendimento de Konder Komparato[48], a política deliberativa sobre as políticas da República pertence à Política e não à Justiça. Dir-se-ia, outrossim, que as normas constitucionais sobre direitos sociais dependeriam de acolhida pelo legislador, e aí poderiam ser alegadas em juízo (art. 53.3 da Constituição Espanhola).
Realmente, não cabe ao Judiciário a formulação de políticas públicas de caráter social. Não se trata aqui de direito subjetivo público, mas de algo que envolve a adoção clara de políticas econômicas voltadas, globalmente, para o atendimento à saúde, educação, habitação. A formulação de programas nacionais de saúde, por exemplo, com suas estratégias de combate a endemias, é problema do Executivo e do Legislativo, observando as necessárias carências sociais. Aliás, no REsp 169.876/SP, relator Min. José Delgado, de 16.06.98, DJU de 21.09.98, p.70, já se decidiu que a realização de políticas dependeria de prévia disponibilidade de recursos orçamentários, não cabendo ao Judiciário imiscuir-se. Eduardo Talamini, em obra de realce[49], vê, nesse âmbito, discricionariedade na eleição orçamentária de prioridades.
No entanto, tal ilação não pode servir para que, descaradamente, o Poder Público omita-se em suas tarefas, não dando combate a epidemias, em desleixo ao princípio da dignidade da pessoa humana, de valor fundamental. O não oferecimento de ensino obrigatório, o desrespeito aos limites mínimos impostos pela Constituição no desenvolvimento do ensino (art. 212 da Constituição) são passíveis de apreciação judicial.
Cabe o ajuizamento da ação civil pública, refletindo a efetiva participação da sociedade civil desde que não se trate de prestações estatais normativas (mandado de injunção e ação direta de inconstitucionalidade por omissão) que imponham o dever de produção normativa (dever de fazer).
Em sede de controle concentrado, pode haver censura a atos normativos afirmativos de política contrária à fixada na Constituição.
No entanto, concretizada a política pública, surge para a sociedade o direito de exigir a oferta de serviços públicos de forma igual, na medida em que não se permite qualquer retrocesso. A tutela coletiva tem na ação civil pública, como revela João Batista de Almeida[50], excelente instrumento, de defesa democrática pluralista e participativa, concluindo no sentido de que se deve prestigiar a tese que admite o uso da ação civil pública, quando o pedido é a implementação de políticas públicas, pois, do contrário, o administrador fica totalmente livre para descumprir normas constitucionais e dispositivos legais. Seria o exemplo o fornecimento de ensino fundamental obrigatório a aplicação de um mínimo de 25% das receitas de impostos estaduais, em educação.
A esse respeito, aliás, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento de Recurso Extraordinário n.° 190.938-MG, rel. Min. Carlos Velloso (Inf. STF n.° 272), em que o Ministro Relator proferiu voto no sentido de dar provimento ao recurso por considerar que na espécie (Ação Civil Pública e Desenvolvimento da Educação) a ação tem por objeto interesse social indisponível, cabendo ao Ministério Público promover a sua defesa, e, ainda, que o fato de o descumprimento do disposto no art. 212 da CRFB pode implicar a intervenção estadual no Município.
As pretensões relativas a fazer e não fazer formuladas em ação civil pública passam a ser atendidas através do regime previsto no artigo 461 do Código de Processo Civil, e pelo art. 84 do Código do Consumidor.
Por outro lado, é legítima a atuação do Judiciário, sempre que houver vícios de motivo e objeto identificados no ato administrativo de tal forma a entender como não razoável a conduta Administrativa. Numa democracia participativa, temos espaço para o exercício da tutela de interesses legítimos dos cidadãos existindo violação de norma protetora de interesse geral[51]. Do contrário, ter-se-ia o abuso de ser o administrador totalmente livre para descumprir a Constituição. Será o caso de ajuizar ação civil pública em defesa da saúde (CRFB, art. 196), da cultura (CRFB, art. 215), da família, da criança, do adolescente, do idoso, do meio ambiente, por exemplo.
Na tutela da segurança pública, há formidável exemplo, no Rio de Janeiro, com a intervenção do Judiciário na administração do Presídio Bangu I, com o afastamento de 78 guardas penitenciários e de toda a direção daquele estabelecimento em que o Parquet, diante do caos ali instalado, solicitou providências como escuta telefônica, que permitiram verificar o quadro dantesco de uma unidade prisional, em que seu Diretor mais parecia alheio a negócios ilícitos que ali se efetivaram.
6.2 – AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A RESPONSABILIDADE CIVIL QUANTO AOS DANOS CAUSADOS POR NÃO IMPLEMENTAÇÃO
Quando as diretrizes estatais estão estabelecidas, surge para o Ministério Público, na tutela do direito da coletividade, o direito de exigir judicialmente sem que possa reconhecer evolução reacionária na concretização dessas políticas públicas. Se há dano, a tutela será ressarcitória.
Discute-se com relação a necessidade de comprovação de culpa da Administração na omissão da implementação dessas políticas sociais ou se basta a utilização da teoria do risco no que concerne aos prejuízos causados pela não implementação de políticas públicas.
Data vênia, a adoção da tese de que essa responsabilidade por omissão adquiria por culpa, resquício da teoria civilista ajustada ao direito público, oriunda da falha do agente público, significa um passo atrás, e um complicador sensível na concretização da norma constitucional que, numa Constituição-Dirigente determina a efetividade de políticas sociais.
Para os subjetivistas, tem-se, desde logo, o dano como injusto. Afinal, a tutela ressarcitória relaciona-se com o dano e ter-se-ia de exigir o elemento subjetivo, culpa ou dolo.
A ser indispensável a culpa, surge a necessidade de verificar que teoria deve ser utilizada: equivalência das condições, condições qualificadas ou causalidade adequada. A primeira é criticada sob o argumento de que o fato de cada condição ser igualmente necessária, no complexo de condições, não quer dizer que sejam equivalentes entre si, e, afinal, se a causa é E e a, b, c, as condições, se tenho E = a + b + c, não parece lógico que E = a.
Nos ilícitos omissivos, por sua vez, a teoria das condições qualificadas é insuficiente.
Na Alemanha, explicou Paulo José da Costa[52], as Câmaras Cíveis da Suprema Corte Germânica filiaram-se à causalidade adequada, através do qual o juiz, retrocedendo no tempo até o momento da conduta, colocando-se no lugar do agente, analisa os fatos já verificados, como se ainda devessem verificar-se, excluindo acontecimento extraordinários, fortuitos, anormais. A adequação é expressão da causalidade, e não expressão da responsabilidade.
Ao contrário, bem fundamenta Canotilho[53], todo dano deve ser reparado por quem se arriscou, com ou sem intenção de tirar proveito, a exercer uma atividade que possa causá-lo.
Pressupostos para reparação são: evento danoso; nexo de causalidade, desvinculada de demonstração de culpa para que se diga que foi o serviço público que causou o ilícito; e a qualidade de funcionário na prática do ato.
No caminho das cartas constitucionais, desde 1946, a Constituição de 1988 preceitua que o dano injusto causado sujeita o Estado à obrigação de reparar. É a regra constitucional, na exuberância de seu significado, que estabelece a responsabilidade objetiva para cujo reconhecimento basta o nexo de causalidade. É a teoria do risco que deve ser aplicada ao caso (art. 37, § 6.° da CRFB).
Continua atual a doutrina de Martinho Garcez Neto[54] ao referir que o risco é o fundamento da responsabilidade civil do Estado, apenas exigindo nexo causal entre o dano e o ato, ainda que regular, do agente do poder público.
É dito, na doutrina[55], que se houve omissão, a responsabilidade administrativa deve ser por culpa subjetiva. A par disso, é conhecida a lição de que não há qualquer afronta ao princípio objetivo da responsabilidade sem culpa (art. 37, § 6°, da CF), porque a Constituição só abrange a atuação funcional dos servidores públicos, e não os atos de terceiros e os fatos de natureza (Resp n°44.500-MG, rel. Min. Eliana Calmon).
Nesse raciocínio, a responsabilidade do Estado necessita, em caso de omissão, comprovação de culpa. Penso que a matéria exige, data venia, no campo das políticas públicas um enfoque específico. É necessário que se comprove que o Estado não implementou, quando deveria, políticas públicas, seja porque não as formulou, ou se as fez, não as implementou.
Vem aqui a abordagem de Rosemberg, exposta por Luis Eduardo Boaventura Pacífico[56], disciplinando a necessidade do autor provar a realidade dos pressupostos fáticos do preceito sobre a qual funda sua pretensão, prevalecendo o ônus abstrato sobre o ônus concreto. Levam-se em conta normas constitutivas, que constituem a base de uma pretensão; normas impeditivas, que impedem, desde o início, a produção do efeito previsto na norma constitutiva e normas destrutivas, que se opõem, mais tarde, à norma constitutiva. O juiz deve considerar, em primeiro lugar, as características abstratas das normas para, em seguida, verificar se os fatos abstratos a elas se amoldam.
Isso porque a distribuição do ônus da prova é consequência da estruturação do direito material. É insuficiente atribuir-se ao autor a prova dos atos constitutivos e ao réu, no caso o Estado, a dos fatos impeditivos, extintivos e modificativos. Tal critério basta no campo da valoração judicial em que se procura atingir o convencimento sobre a pretensão formulada em juízo.
Não se confunda técnicas de valoração judicial com ônus da prova em que se procura pôr em evidência o conteúdo de direito material do preceito jurídico, não simplesmente para valoração de indícios.
Ora, o art. 37, VI, da CRFB como preceito jurídico determina ao autor provar a realidade dos pressupostos fáticos da omissão da administração na prática de políticas públicas, onerado que fica com relação aos pressupostos da norma constitutiva (criativa do direito, base de sua pretensão).
Na forma específica, os artigos 461 do Código de Processo Civil e 84 do CDC permitem a postulação das sentenças mandamental (ordem sob pena de multa) e executiva (determinação de que o fazer seja prestado por um terceiro às custas do réu). Porém, na insuficiência da tutela ressarcitória, naquela modalidade, surge a tutela pelo equivalente, prestada pela técnica da condenação – execução forçada.
De toda sorte, fundamental é o papel da equidade instituto que dava e deu menos rigidez ao direito, por ser mais fértil em expedientes e aproximado do dia a dia da efetividade da norma.
Excepcional, como tal, e como mecanismo de indução se revelam os meios coercitivos, que para Chiovenda[57] são atividade de natureza executiva, assim como nos meios de sub-rogação (penhora, expropriação, busca e apreensão). Ao influenciar a vontade e comportamento do sujeito, mediante ameaça (multa diária, nos casos de obrigações de fazer e não fazer continuadas), induze-se o comportamento da Administração para o cumprimento de políticas públicas.
A marca de superioridade das normas constitucionais traz à luz o fato de que a implementação de políticas públicas é direito evidente que dispensa a dilatada fase de conhecimento que antecede qualquer condenação. Estamos diante de direitos absolutos, sendo, daí, a impropriedade de utilização das ações condenatórias para o caso. Protege-se situações jurídicas finais, e não meramente instrumentais (que compreendem obrigações), em que há tutela da obligatio[58].
Condena-se, pois, a relativação dos direitos absolutos, adotando-se o raciocínio de que não estamos tratando de ações in personam, como se tem ensinamentos desde o processo romano clássico e desvirtuadas nas instituições justinianéias (4,13,15).