Resumo: Litígio estratégico de interesse público tem surgido como via alternativa para discutir temas políticos e proteger direitos fundamentais. No Brasil, o cânhamo industrial tem potencial para um caso concreto em defesa pelos direitos econômicos fundamentais.
Palavras-chave: Litígio estratégico. Direitos econômicos fundamentais. Cannabis Sativa. Cânhamo industrial.
I -Apresentação do tema
Existe algum consenso entre teóricos e práticos do direito que o Poder Judiciário tem se tornado um Poder mais forte, com competência e capacidade legitimada de interferir e influenciar no Legislativo e no Executivo, ainda que carente de legitimidade representativa direta da população.
Essa tendência também pode ser observada no Brasil, onde o Poder Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal, tem alcançado uma posição de protagonismo no jogo da vida pública e por que não dizer, no jogo da vida política do país, a ponto de alguns autores acreditarem que esse fenômeno sinaliza uma mudança no equilíbrio do sistema de separação dos Poderes (VILHENA, 2008)[1].
Essa atuação marcante na vida pública se concretiza a partir da possibilidade de proferir a última palavra, ainda que provisória[2] (HUBNER, 2008), quanto ao que supostamente a Constituição quer dizer sobre os direitos ali encartados, o que lhe disponibiliza a viabilidade instrumental legítima de tomar ou contrariar decisões de natureza política ou até mesmo influenciar decisões futuras tomadas pelos os outros Poderes, tendo em vista o alcance de suas decisões.
A judicialização da vida cotidiana traduz-se num número crescente de ações processadas pelo Poder Judiciário, realçando a importância deste Poder sobre os demais na dinâmica habitual da vida pública.
Há quem defenda que o fortalecimento do Judiciário, enquanto poder público, decorra de uma omissão do Legislativo e há quem sustente não existir relação entre a produção legislativa e o protagonismo do Poder Judiciário, cujo fortalecimento é consequência natural do crescimento da própria democracia.
Certo é que independente da causa, Juízes e Tribunais, enquanto instâncias públicas de tomadas de decisões destinadas a solução de conflitos, têm sido cada vez mais chamados para examinar possíveis violações a direitos em contextos que envolvam debates de natureza política e que, portanto, poderiam ou deveriam ficar restritos às esferas do Legislativo e do Executivo.
É a autoridade da última palavra cronológica quanto à interpretação do texto constitucional e da resolução de conflitos judicializáveis e judicializados, que influencia a atuação de outros Poderes, seja pautando ou contrariando atuações do Legislativo e do Executivo quanto a alguns temas sensíveis à vida política ou social, e que traz o Judiciário e o Supremo Tribunal Federal mais próximos da vida cotidiana brasileira.
De todos os efeitos dessa atuação destacada, aquele que nos interessa é o surgimento desse Poder como uma via alternativa para a discussão de temas e preenchimento de lacunas jurídico-normativas, inseridas no plano dos direitos econômicos fundamentais, que poderiam ou deveriam ser decididos pelo Legislativo no Congresso, mas que por motivos políticos não o são.
A experiência tem revelado que o Poder Judiciário pode provocar mudanças legislativas e em políticas públicas e isso tem estimulado agentes interessados, sejam de direito público ou privado, a recorrer ao Judiciário por intermédio de ações que possam causar mudanças sociais. A esse tipo de processo tem-se dado o nome de litígio estratégico ou litígio de impacto[3] (CARDOSO, 2012).
O intuito deste ensaio é fazer uma breve incursão em litígios estratégicos como alternativa para a satisfação de direitos econômicos fundamentais, para daí examinar a viabilidade jurídica de um potencial caso concreto de litígio estratégico a que se pretende caracterizar de interesse público, ainda que a partir da solução de um caso individual.
Para tanto, abordaremos primeiro, sem pretensão de esgotar o tema, a justiciabilidade de direitos econômicos e como demandas dessa natureza podem causar mudanças sociais a partir de decisões judiciais.
Segundo, examinaremos melhor o que é litígio estratégico e litígio estratégico de interesse público como alternativas viáveis e, por vezes, mais fáceis, de se tutelar direitos econômicos fundamentais, em comparação às tradicionais arenas políticas, como Câmara dos Deputados e o Senado Federal.
Feito isso, analisaremos a viabilidade de um litígio estratégico de interesse público para o cânhamo industrial, como forma de alterar a realidade social atual, na qual o plantio, produção, processamento e comercialização do cânhamo para fins industriais é tido como proibido.
II - Direitos econômicos fundamentais no Brasil e sua exigibilidade
Antes de estabelecermos o que queremos significar ao utilizarmos o termo direitos econômicos fundamentais e de nos voltarmos ao Texto Constitucional em busca deles, cabe assentarmos, o que entendemos por direitos econômicos.
Um bom ponto de partida é o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do qual o Brasil é signatário, firmado perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1966, segundo o qual
“Os Estados Partes no presente Pacto:
Considerando que, em conformidade com os princípios enunciados na Carta das Nações Unidas, o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no Mundo;
Reconhecendo que estes direitos decorrem da dignidade inerente à pessoa humana;
Reconhecendo que, em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o ideal do ser humano livre, liberto do medo e da miséria não pode ser realizado a menos que sejam criadas condições que permitam a cada um desfrutar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos.
Considerando que a Carta das Nações Unidas impõe aos Estados a obrigação de promover o respeito universal e efetivo dos direitos e liberdades do homem; Tomando em consideração o fato de que o indivíduo tem deveres para com outrem e para com a coletividade à qual pertence e é chamado a esforçar-se pela promoção e respeito dos direitos reconhecidos no presente Pacto, acordam nos seguintes artigos:
(...)
Art. 6º - Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito ao trabalho, que compreende o direito que têm todas as pessoas de assegurar a possibilidade de ganhar a sua vida por meio de um trabalho livremente escolhido ou aceito, e tomarão medidas apropriadas para salvaguardar esse direito.
As medidas que cada um dos Estados Partes no presente Pacto tomará com vista a assegurar o pleno exercício deste direito devem incluir programas de orientação técnica e profissional, a elaboração de políticas e de técnicas capazes de garantir um desenvolvimento econômico, social e cultural constante e um pleno emprego produtivo em condições que garantam o gozo das liberdades políticas e econômicas fundamentais de cada indivíduo.”[4]
Deste documento legal com status constitucional, mas que antecede a Carta Federal de 1988, colhemos duas ponderações que nos parecem pertinentes à discussão que queremos suscitar.
A primeira delas é o grau de importância que os países signatários do Pacto, Brasil incluso, dão aos direitos econômicos, quando reconhecem que não há como se realizar o ideal humano sem que sejam criadas condições para que cada um possa desfrutar de seus direitos econômicos. Os pactuantes acreditam, portanto, que não há como haver dignidade da pessoa humana sem que lhe sejam preservados os direitos econômicos.
A segunda, que o termo “direitos econômicos fundamentais” utilizado neste paper advém do termo “liberdades (...) econômicas fundamentais” já cunhado pelo Pacto antes mesmo da Constituição de 1988. Embora haja elementos da proteção ao trabalho e à livre iniciativa dispersos por todo o texto constitucional, eles foram em grande parte acomodados sob o Título II – Dos direitos e garantias fundamentais, sendo este o motivo pelo qual podemos dizer que também no ordenamento jurídico nacional o termo “direitos econômicos fundamentais” parece-nos adequado.
Sem querer divagar por um assunto tangente ao do proposto neste ensaio, acrescentemos que os direitos fundamentais contidos no conceito – em especial naquele do qual partimos – são aqueles relacionados à liberdades, igualdade e dignidade, sendo que, para fins da nossa discussão, restringiremos ainda mais os direitos fundamentais econômicos aos direitos de liberdades, por sua vez entendidos como direito de fazer ou deixar de fazer algo relacionado à produção e circulação de produtos e serviços sem que sofra embaraços de terceiros ou do Estado.
Por óbvio, apenas consideramos produtos e serviços lícitos, mas exatamente por isso estamos tratando também da impossibilidade de tormentas que busquem rotular, injustificadamente, em especial por motivos éticos ou morais, produtos e serviços como ilícitos sem que efetivamente o sejam.
Na Constituição de 1988, a proteção desses direitos – fundamentais econômicos - primeiro se apresenta no inciso IV, do art. 1º, no qual o texto estabelece que o Estado Democrático brasileiro terá, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, um dos seus fundamentos[5], é dizer, a regra é sempre pela preservação do direito ao trabalho e a possibilidade e desnecessidade de autorização estatal de trabalhar e empreender.
É, contudo, nos incisos do artigo 5º, que a Constituição evidencia mais destacadamente esses direitos e os aquilata, na linha do Pacto internacional firmado anteriormente, com a qualidade de direitos e garantias fundamentais.
O inciso XIII, estipula que será “livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. O direito de propriedade previsto no inc. XXII, constitui um outro elemento relacionado ao direito ao desenvolvimento econômico.
O inciso XXIX assegura aos autores de inventos industriais, privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País.
O artigo 6º prevê o direito ao trabalho como um direito social fundamental, pois a despeito de sua topografia constitucional o situar fora dos direitos e garantias individuais fundamentais, encontra-se inserto sob o mesmo Título II, do Texto, sob o nome “Dos direitos e garantias fundamentais”.
O Título VII da Constituição trata da Ordem Econômica e Financeira e estabelece que a “ordem econômica será fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa”, assegurando “a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. Por fim o art. 190, prevê que a ordem social terá como base o primado do trabalho.
Tudo isso para dizer que a Constituição dispõe de forma protetiva e garantista com relação aos direitos de natureza econômica, que devem estar sob tutela do Poder Judiciário, caso provocado a proteger alguém de intervenção desnecessária ou injustificada, por parte de terceiros ou do Estado, em seu trabalho e livre iniciativa, pois do contrário estar-se-á mitigando o direito ao trabalho e à livre iniciativa; direitos econômicos fundamentais.
É certo que apenas a previsão no texto constitucional não significa a observância desses direitos. Cientes dessa realidade, alguns países latino americanos visando a um fortalecimento da eficácia e efetividade dos direitos econômicos, entre outros direitos, assinaram em 1998, em Quito no Equador, a Declaração de Princípios sobre a Exigibilidade e Realização dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais na América Latina.
O Brasil também é signatário dessa Declaração, o que, aliado ao texto constitucional, não deveria deixar margem para dúvidas normativas sobre a justiciabilidade e exigibilidade desses direitos perante o ordenamento jurídico-processual brasileiro e sul-americano.
A declaração afirma que os signatários entendem ser necessária não só a previsão de garantia desses direitos, mas também e, acima de tudo, a exigibilidade desses direitos perante o Poder Judiciário e os organismos internacionais, para efetivá-los e preservá-los.
“O gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais são determinantes para a possibilidade do exercício efetivo, igualitário e não discriminatório dos direitos civis e políticos. Assegurar o gozo dos direitos civis e políticos sem considerar o pleno exercício dos direitos econômicos, sociais e culturais constitui discriminação intolerável, que favorece os setores beneficiados pela desigual distribuição da riqueza e reprodução das iniquidades sociais
A pessoa e sujeito de todos os direitos e liberdade, e os Direitos Humanos implicam no fortalecimento de oportunidades e capacidades para que as pessoas possam desfrutar.
Os Estados têm a primordial obrigação de respeitar, proteger e promover os direitos econômicos, sociais e culturais frente a comunidade internacional e frente a seu povo. Não obstante, outros atores tem o dever de respeitar tais direitos e ser responsáveis frente a eles. Por esta razão, tanto a sociedade civil, como a comunidade internacional e os Estados, frente as violações por ação ou omissão perpetradas por atores como as empresas multinacionais e/ou organismos multilaterais, devem adotar individualmente e mediante a cooperação internacional, medidas efetivas para prevenir, repelir e sancionar as violações a esses direitos em qualquer parte.
Os direitos econômicos, sociais e culturais estão diretamente relacionados com os tratados internacionais de comercio e finanças que vêm adaptando-se aos marcos do atual processo de globalização, de modo que seu respeito, proteção e promoção devem considerar-se como elementos para ser considerados em tais acordos.”[6]
O Pacto Internacional, a Constituição de 1988 e a Declaração de Princípios confortam uma premissa normativa necessária para um avanço na discussão, isso é, direitos econômicos são direitos fundamentais.
Quanto aos direitos fundamentais, parece ser ainda mais clara a exigibilidade desses direitos perante o Poder Judiciário. Numa reflexão acerca da aplicabilidade e eficácia dos direitos fundamentais num contexto do regime constitucional pátrio, Ingo Wolfgang Sarlet recorre à Alexy para explicar que
“(...) direitos fundamentais são posições jurídicas a tal ponto relevantes que o seu conhecimento não pode ser pura e simplesmente colocado plenamente à disposição das maiorias parlamentares simples. Também por essa razão, os direitos fundamentais – para que tenham assegurada uma posição preferencial e privilegiada – devem estar blindados contra uma supressão ou um esvaziamento arbitrário por parte dos órgãos estatais, em outras palavras, pelos poderes constituídos, além de terem sua normatividade plenamente garantida, o que implica o reconhecimento de uma dupla finalidade formal e material. Alinhando-se à tradição constitucional contemporânea, também a CF de 1988 aderiu a este modelo e, além de inserir – expressa e implicitamente – os direitos fundamentais no seleto rol das assim designadas “cláusulas pétreas” tornando-os limites materiais ao poder de reforma constitucional (art. 60, §4º, inciso IV, da CF), afirmou que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são aplicáveis (art. 5º, §1º, da CF)[7](SARLET, 2008)
Estamos convencidos nessa linha, de que os direitos fundamentais, além de serem protegidos de maiorias parlamentares, são exigíveis por força de autorização constitucional, o que inclui, necessariamente os direitos econômicos fundamentais.
Para fins do nosso debate, é útil, ainda, distinguir, dentre os direitos fundamentais mencionados na Declaração, os direitos econômicos dos sociais e culturais, na medida em que estes requerem uma prestação efetiva do Estado e por isso estão submetidos a reserva do possível. Os direitos fundamentais econômicos, que consistem em direitos de liberdades - daí o Pacto se referir às “liberdades econômicas fundamentais” -, em tese não se sujeitam diretamente à reserva do possível, já que o Estado estará tutelando-os tão somente através da garantia de não embaraço, sem qualquer necessidade de ajuste ou interferência no orçamento.
Assim, tecidas essas considerações, continuaremos adiante, utilizando como premissa a exigibilidade dos direitos fundamentais econômicos no ordenamento pátrio, acrescidas do fato de que por não demandarem uma prestação estatal senão no sentido de poder, dentro de sua liberdade, trabalhar e empreender de modo a desenvolver-se economicamente, estes deveriam ser mais facilmente tutelados pelo Estado do que outros direitos fundamentais, como os sociais e culturais, que exigem, ao invés, prestação efetiva do Estado, que por sua vez encontra restrições na disponibilidade de seus recursos, sempre atento à reserva do possível.
III - Litígio estratégico
Litígio estratégico é uma terminologia utilizada para caracterizar conflitos judicializáveis que buscam promover mudanças e transformações sociais positivas que ultrapassem os limites de um determinado caso concreto.
“(...) a transformação e o impacto social, o litígio estratégico, apesar de se dar em cortes, tem como endereçados não apenas os órgãos judiciais, mas também os tomadores de decisão (decision makers), os formuladores de políticas públicas (policy makers) e a sociedade em geral. Por essa razão, o litígio estratégico não se limita ao trâmite do caso no judiciário. Ele combina uma série de técnicas legais, políticas e sociais desde o início do caso (ou mesmo até antes de configurar-se em um caso, quando ainda é apenas um problema) até o seu término, que não é dado pela decisão judicial favorável, mas por sua real implementação” (CARDOSO, 2008)[8].
É perfeitamente possível que um determinado caso concreto de litígio estratégico tenha um resultado desfavorável nos tribunais, mas que seja exitoso em sua investida, provocando o debate, trazendo algum assunto para a pauta da agenda pública e, por vezes, provocando alterações legislativas e na maneira como as pessoas enxergam um assunto.
Quanto à capacidade de litígios judiciais improcedentes estimularem mudanças legislativas, cabe lembrar a Lei da Ficha Limpa. Em meados dos anos 2000, havia uma crescente sensação de repúdio a um número significativo de políticos com condenações judiciais que, carentes de trânsito em julgado, continuavam elegíveis e aptos a exercerem cargos político-eletivos.
A Associação dos Magistrados do Brasil – AMB ajuizou uma ação de descumprimento de preceito fundamental, autuada sob o nº. ADPF 144/STF, cujo desfecho foi desfavorável à pretensão erguida na inicial.
Os Magistrados buscavam, por meio da demanda, que o STF, ao interpretar a Constituição, flexibilizasse a presunção de inocência e autorizasse Juízes julgarem inelegíveis candidatos com base em sua vida pregressa. A demanda foi amplamente noticiada, o julgamento acompanhado de perto pela mídia, pela opinião pública e pelo povo.
A ADPF foi julgada improcedente, tendo, naquela oportunidade, o STF declarado que o princípio da presunção de inocência gozava de status absoluto e, nos termos da Constituição não comportaria flexibilização.
O objetivo principal da ADPF era criar um mecanismo de maior rigor no processo de julgamento dos pedidos de candidatura, mas o STF não acolheu o pedido. Talvez impulsionada pelo insucesso da demanda, vista por muitos como esperança de melhorias, a sociedade se mobilizou de tal forma que atingiu um quociente processual mínimo necessário estipulado pela Constituição para que fosse proposta uma lei de iniciativa popular que, aprovada por quórum qualificado – unanimidade nas duas Casas Legislativas – formalizou-se na Lei Complementar nº. 135, popularmente conhecida como Lei da Ficha Limpa, que flexibilizou a presunção de inocência de cidadãos que desejem extrapolar sua condição de cidadão-do-povo para encarnar o Estado, na condição de cidadão-representante-do-povo.
Ainda que uma decisão favorável não seja a única forma de se ter êxito em um litígio estratégico, um pressuposto factual para a ocorrência e resultados do litígio estratégico é que o Poder Judiciário seja independente e criativo, com capacidade de inovar. É fator contributivo para o litígio, que os Julgadores consigam enxergar novos contextos em velhos textos.
“O litígio de interesse público, no contexto em que o direito está conectado às transformações socioeconômicas, é um instrumento importante, pois tem o potencial de promover o desenvolvimento à medida em que busca avançar na luta pela garantia e efetividade de direitos sociais, e dar voz a minorias ou setores marginalizados da sociedade. Muito embora se reconheça não ser o Poder Judiciário o lócus tradicional ou ideal para realizar debates políticos, por vezes, os debates nas vias políticas tradicionais, como Legislativo e o Executivo, não são responsivos às necessidades de minorias ou de setores marginalizados da sociedade, não sendo traduzidos em ações efetivas ou desconsideradas”[9] (LANGENEGGER e CUNHA, 2013).
Logicamente o litígio estratégico tem vantagens e desvantagens e nem sempre o resultado pode ser o antecipado. A maior vantagem do litígio é que ele, em tese, despolitizaria algumas discussões, pois a função do Poder Judiciário é examinar violações a direitos. Debates políticos nas arenas parlamentares estão sujeitos a jogo de interesses políticos e não necessariamente estão em estrito compasso com direitos individuais ou mesmo o melhor interesse público.
Entre suas desvantagens, Evorah Cardoso aponta que às vezes uma decisão desfavorável pode vir a institucionalizar ou reafirmar uma prática que não só piore o problema, mas também dificulte uma resposta ao problema no futuro[10] (CARDOSO, 2011).
Mas o que torna um litígio estratégico, de interesse público? É saber, o que qualifica a demanda como de interesse público?
Cardoso distingue litígios com base na finalidade ou orientação da causa. Assim, é possível distinguir uma advocacia “client oriented” e uma advocacia “issue oriented” ou “policy oriented”; a primeira busca defender interesses de um cliente, enquanto o segundo busca promover um impacto social através do avanço jurídico de um tema sensível à sociedade; tem uma pauta temática, portanto, designada a provocar transformações sociais[11] (CARDOSO, 2012).
“The notion of public interest law assumes the existence of a ‘public sphere’, as understood by thinkers such as Habermas, or – to use the term popularized by Vaclav Havel – ‘civil society. The essence of this idea is that society includes a variety of fomal and informal, interlinked, self-organized associations that somehow connect the private and public spheres. The idea that private organizations shoud take active part in public discourse and processes sound unremarkable to Western ears, but it stands in marked contrast to the socialist legal order, in which the public sphere was coextensive with the state (PILI, 2002, p.2)”[12].
Podemos entender, portanto, um litígio estratégico como de interesse público, quando sua questão – seu “issue” – estiver interligado com interesses difusos, ainda que individuais. Em assim o sendo, é razoável que atribuamos a locução adjetiva “de interesse público” a todo litígio estratégico que vise à salvaguarda de direitos econômicos, pois a proteção dos direitos econômicos de um indivíduo, com base na igualdade, deve aproveitar a todos os outros concidadãos, estando umbilicalmente ligado aos interesses da sociedade civil que as pessoas tenham seus direitos econômicos fundamentais protegidos.
Feitas essas considerações acerca dos direitos econômicos fundamentais e como eles podem ser exigíveis através de processos judicializáveis com potencialidade de alterar uma determinada realidade social, passamos agora a abordar um possível caso concreto, ao qual se pretende qualificar como de interesse público.