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Cânhamo industrial: um possível case de litígio estratégico de interesse público

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Agenda 26/11/2018 às 12:15

IV - Cânhamo Industrial

Cânhamo é uma planta da espécie Cannabis sativa L.. É longa e fibrosa com uma diversidade muito grande de aplicações, mas talvez a Cannabis talvez seja mais conhecida por um de seus canabinóides, o delta-9-tetra-hidrocanabinol (THC), principal agente psicoativo da maconha, que se encontra na Cannabis em variadas concentrações, a depender de sua espécie.

A Convenção da ONU, de 1961, sobre drogas e entorpecentes define Cannabis como “a extremidade dos ramos floridos ou frutificados da planta de cânhamo (com a exclusão das sementes e das folhas que não sejam acompanhadas de sumidades), cuja seiva não tenha sido extraída, qualquer que seja a sua aplicação”[13].

Por conter delta-9-tetra-hidrocanabinol (THC), a Cannabis sativa está prevista na Lista ‘E’ da Portaria nº. 344/98 - ANVISA, o regulamento técnico de substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial, na parte que trata sobre plantas que podem originar substâncias entorpecentes ou psicotrópicas.

A Lista “E” da Portaria 344/98 da Anvisa ignora que a Cannabis sativa L. pode conter quantidades variadas de canabinóides[14] e que existem variedades de planta com índices muito baixos de delta-9-tetra-hidrocanabinol (THC) – o canabinóide psicoativo -, insuficientes para consequências psicotrópicas, que é largamente utilizada há séculos, por países ao redor do mundo para fins exclusivamente agrícolas e industriais. A essa variedade de Cannabis é dado o nome de “cânhamo industrial”, “industrial hemp” ou tão somente “hemp”, comercializado no mundo inteiro como um commodity agrícola.

Utilizaremos o termo “cânhamo”, “cânhamo industrial” e “hemp” para todas as vezes em que estivermos no referindo à espécie de Cannabis com concentrações baixas de delta-9-tetra-hidrocanabinol (THC), variando entre 0.01% a 0.03%, uma vez que a legislação internacional estipula esses índices como indicativos da Cannabis utilizada para fins industriais[15] (VANTREESE, 1997).

Utilizaremos o termo “maconha” todas as vezes em que estivermos nos referindo à Cannabis com índices de THC superiores a 0.03%, mais comumente utilizado para fins recreativos em razão da sensação de euforia e bem estar causada pela substância. Estudos toxicológicos concluíram que níveis de THC abaixo de 1% não têm condição de causar efeitos psicotrópicos[16] (WEST, 1998) e geralmente a maconha varia de índices de THC entre 3%-15%[17] (KOSOLOV, 2007).

Do ponto de vista botânico, é superada a unicidade biológica de cada espécie do gênero Cannabis L., existindo meios de testes para examinar a genética da planta, bem como para aferir níveis de THC[18] (WEST, 1998) entre outros micro e macro nutrientes e canabinóides.

A Convenção Única da ONU sobre Drogas, em seu artigo 28 prevê expressamente que o documento que proíbe as substâncias ali descritas, não se aplicará a cannabis “exclusivamente destinada a fins industriais (fibras e sementes) ou fins agrícolas”[19].

Tal previsão justifica-se por motivos econômicos, uma vez que o cânhamo possui grande utilidade industrial. O Congressional Research Service, dos Estados Unidos, estima que existam mais de 25.000 utilidades industriais aplicáveis em 9 submercados: agricultura (fonte de energia renovável), têxtil, reciclagem, automotivos, mobília, alimentos/nutrição/bebidas, papel, material de construção e cosméticos[20] (JOHNSON, 2015).

Examinaremos, ainda que brevemente, algumas das principais utilidades do cânhamo para daí concluir que suas vantagens econômicas, ecológicas e medicinais, que em nada se confundem com a maconha, não podem sofrer embargos legais do ordenamento jurídico brasileiro porquanto violariam direitos econômicos fundamentais, apresentando o litígio estratégico de interesse público como mecanismo jurídico viável para proteger esses direitos e alterar essa realidade social.        


V - Benefícios econômicos e ecológicos do Cânhamo Industrial

O Cânhamo Industrial enquanto commodity agrícola tem sido cultivado por séculos, especialmente para a produção de extração de fibras e produção de óleo da semente[21]. Em meados do Século XIX, o cultivo de cânhamo era muito comum nos Estados Unidos para utilidades têxteis, cordas e papel, tendo a produção caído perto de 1890´s em função dos avanços tecnológicos de outros cultivos para fins têxteis, em especial o algodão[22]. Atualmente, o cânhamo é cultivado em mais de 30 países, entre os quais: China, França, Alemanha, Uruguai, Hungria, Rússia e Canadá.

Não existem números oficiais referentes ao valor da comercialização de produtos à base de cânhamo no mundo, mas a Associação das Indústrias do Hemp, a Hemp Industries Association (HIA) estima que o varejo do comércio do cânhamo apenas nos Estados Unidos tenha movimentado cerca de US$ 581 milhões em 2013, incluindo alimentos, cosméticos, roupas, partes automotivas, materiais de construção entre outros produtos. Um relatório da instituição (HIA) estima que desse valor total, US$ 184 milhões tenham sido relacionados a alimentos, suplementos nutricionais e produtos de beleza, e ainda aproximadamente US$ 100 milhões anuais da indústria têxtil[23].

Como insumo têxtil, a fibra do cânhamo é quase duas vezes mais resistente do que o algodão e suporta uma tensão de aproximadamente 40.000kg por polegada quadrada, com a vantagem de não necessitar de pesticidas químicos em seu cultivo e plantação. O North American Industrial Hemp Council estima que 50% de todos os pesticidas usados no planeta são para plantações de algodão[24]. Isso significa que ao autorizar e estimular, em vez de proibir o cultivo do cânhamo, poderia reduzir a emissão de pesticidas das plantações de algodão, ao mesmo tempo em que se poderia fabricar produtos têxteis mais resistentes.

Para a indústria de alimentos, o óleo do cânhamo é muito valioso por suas propriedades nutricionais e benefícios associados. Embora predominantemente composta de ácidos graxos, a semente integral do cânhamo contém de 20-25% de proteína, 20-30% de carboidratos e 10-15% de fibras, além de outros minerais. O óleo da semente do cânhamo contém ácido linoleico (LA) e a-linoleico (LNA) como seus maiores ácidos graxos poliinsaturados omega-6 e omega-3, respectivamente, numa proporção de 3:1, otimizando seu valor nutricional, criando maior resistência a câncer, inflamações e coagulação do sangue, entre outros benefícios à saúde [25] (LEIZER, RIBNICKY, POULEV, DUSHENKOV, RASKIN, 2000).

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Outra utilidade do cânhamo que entrelaça benefício econômico com benefício ecológico é na indústria de papel. Estima-se que entre 75-90% do papel do mundo até 1883 era feito de cânhamo[26]. No Brasil, o Eucalipto é a madeira mais utilizada para a produção de papel e seu ciclo de vida até o corte é de seis a sete anos[27]. Uma árvore de Eucalipto consegue produzir algo entre 20.000 e 24.000 folhas de papel A4, sendo necessárias aproximadamente 11 árvores para produzir uma tonelada de papel[28]. Um hectare de cânhamo pode produzir 4 vezes mais fibras para papel do que um hectare de árvores e duas vezes mais fibra para tecido do que um hectare de algodão[29].

O Eucalipto tem em média 45% de celulose[30] em comparação a 77% do cânhamo industrial[31], entretanto, o ciclo de vida do cânhamo é consideravelmente mais curto do que do Eucalipto, uma vez que desde a semeadura até a colheita, são aproximadamente 120 dias[32]. O alto percentual de celulose (principal matéria prima para o papel) e a reduzida quantidade de químicos necessários (a polpa do cânhamo apenas é acrescida a soda cáustica reciclável) fazem com que papel do cânhamo chegue a durar até 200 anos, três vezes mais do que papel do Eucalipto, sem que o papel fique amarelado no processo de envelhecimento, portanto, melhor papel num período muito mais curto[33] (KOSOLOV, 2009).

Utilizar o cânhamo para substituir o Eucalipto na produção de papel não só economizaria matéria prima, dada a concentração maior da matéria prima principal – celulose -, mas também no tempo de produção, uma vez que o ciclo de vida do cultivo do cânhamo é 1/18 em comparação ao do Eucalipto. Sua exploração para papel poderia evitar desmatamento de florestas para esse fim, tornando-se também vantajoso sob esse ponto de vista.

A fibra do cânhamo ainda pode ser prensada para produzir compensados de madeira. Sua utilização na confecção de madeira MDF (modern density fiber) e na indústria de móveis de madeira é comum, com a vantagem de ter um ciclo de vida reduzido, economizando tempo, recursos e árvores.

O Cânhamo pode ser utilizado na fabricação de bioplásticos e tem se tornado uma alternativa viável e ecologicamente correta a plásticos feitos à base de petróleo e fibra de vidro[34] (KOSOLOV, 2009).

A indústria da construção civil também pode se beneficiar da utilização de cânhamo industrial em comparação aos insumos hoje utilizados. A fibra do cânhamo pode ser usada para criar um concreto, Hempecrete, que além de ser 50% mais leve do que concreto convencional, é 7 vezes mais forte, mais flexível, menos susceptível à rachadura, sendo à prova de fogo e de água. Entretanto, essas não são as características que mais chamam atenção no Hempcrete. Ele desencadeia um processo químico chamado sequestro de carbono, que captura gás carbônico da atmosfera para o enrijecimento do concreto, tendo sido registrados níveis de sequestro de até 200kg de gás carbônico por metro quadrado de parede[35] (KOSOLOV, 2009). O impacto ambiental de construções com Hempcrete em larga escala poderia proporcionar uma limpeza ou filtragem do ar, ao mesmo tempo em que renderia créditos de carbono, compatibilizando ganhos ecológicos e econômicos de forma sustentável.

O cânhamo pode fazer dois tipos de combustíveis: biodiesel (óleo da semente) e etanol/metanol (fermentação do talo), sendo, em razão de seu curto ciclo de vida e produção, uma fonte de energia renovável[36], que poderia, eventualmente, substituir motores movidos a combustível fóssil, como o petróleo.

Outra vantagem ecológica do cânhamo é que seu cultivo realiza um processo de fitoremediação, ou seja remove, imobiliza ou torna inofensivos ao ecossistema, orgânicos e inorgânicos presentes no solo e na água[37], havendo registros de que o cânhamo foi utilizado para recuperar porções de terra após o acidente de Chernobyl, na Ucrânia, uma vez que a planta não é afetada por metais pesados presentes no solo[38].

Cabe também mencionar a utilidade do cânhamo industrial para fins medicinais, em sua maior parte relacionado ao Cannabidiol ou CBD, um dos canabinóides do cânhamo. O CBD tem demonstrado propriedades farmacológicas importantes, sem qualquer relação com propriedades psicoativas do THC. Há registros médicos de benefícios do CBD relacionados a Distonia, um distúrbio neurológico, em especial no nível de tremor do paciente. Além disso há diversos estudos médicos que documentam atividades anticonvulsivante e antiepiléptica[39].

Um estudo da American Society for Pharmacology and Experimental, conduzido em 2014, concluiu que o Cannabidiol (CBD) atua contra insulite, inflamações em geral, dores neuropáticas e disfunção do miocárdio em modelos pré-clínicos de diabetes[40].

Todas essas características do cânhamo foram listadas para demonstrar sua utilidade industrial e os benefícios provenientes de seu cultivo.


VI - Situação legislativa do cânhamo industrial no Brasil

Não existe legislação específica relacionada ao cânhamo no Brasil, nem tampouco há distinção, por parte das autoridades, entre cânhamo industrial e maconha.

A Cannabis está listada no rol da Portaria 344/98 da ANVISA, como planta proibida que pode produzir substâncias psicoativa, situação que atrai a incidência da Lei 11.346/06, conhecida como a Lei das Drogas ou Lei Anti-Drogas.

A citada lei “institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crimes”[41].

O art. 2º da Lei determina que “Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso”.

A parte das considerações da Convenção da ONU de 1971 sobre psicotrópicos parece um bom ponto de partida para compreender a intenção do tratado e a que ele se destina.

“As partes,

Preocupadas com a saúde e o bem-estar da humanidade;

Observando, com preocupação, os problemas sociais e de saúde-pública que resultam do abuso de certas substâncias psicotrópicas;

Determinadas a prevenir e combater o abuso de tais substâncias psicotrópicas;

Determinadas a prevenir e combater o abuso de tais substâncias e o tráfico ilícito a que dão ensejo;

Considerando que as medidas rigorosas são necessárias para restringir o uso de tais substâncias aos fins legítimos;

Reconhecendo que o uso de substâncias psicotrópicas para fins médicos e científicos é indispensável e que a disponibilidade daquelas para esses fins não deve ser indevidamente restringida;

Acreditando que medidas eficazes contra o abuso de tais substâncias requerem coordenação e ação universal;

Reconhecendo a competência das Nações Unidas no campo do controle de substância psicotrópicas e desejosos de que os órgãos internacionais interessados se situem dentro do âmbito daquela Organização;

Reconhecendo a necessidade de uma convenção internacional para a consecução de tais objetivos, (...).”   

A parte introdutiva da Convenção é clara com a ideia de que são as substâncias psicotrópicas que a ONU considera uma ameaça à saúde e o bem estar dos seres humanos e por isso a entidade acredita que devam ser combatidas através de “todas as medidas viáveis para impedir o abuso de substâncias psicotrópicas e para a pronta identificação, tratamento, pós-tratamento, educação, reabilitação e reintegração social das pessoas envolvidas, e deverão coordenar seus esforços para tais fins[42].”

A Convenção traz em seu anexo, Lista de Substâncias Psicotrópicas divididas em 4 relações, entre as quais não se encontra a Cannabis, mas sim menção específica à substância psicoativa da Cannabis, o tetraidrocanabinol (THC), em sua Relação I.

Já foi dito, por outro lado, que a Convenção Única da ONU, de 1961, sobre substâncias entorpecentes, especificamente excetuou a cannabis para usos industriais e agrícolas, como se colhe do item 2, do art. 28,

“2 - A presente Convenção não se aplicará à cultura da planta de cannabis exclusivamente destinada a fins industriais (fibras e sementes) ou a fins hortícolas.”

Em 2014, Dep. Jean Wyllys, do PSOL/RJ protocolou projeto de lei que (pretende)

“Regula a produção, a industrialização e a comercialização de Cannabis, derivados e produtos de Cannabis, dispõe sobre o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, cria o Conselho Nacional de Assessoria, Pesquisa e Avaliação para as Políticas sobre Drogas, altera as leis 11.343, de 23 de agosto de 2006, 8.072, de 25 de julho de 1990, e 9.294, de 15 de julho de 1999 e dá outras providências”[43]

Esse projeto de lei reconhece a diferenciação entre a maconha e o cânhamo industrial.

“Artigo 2º - A Cannabis é toda a parte da planta do gênero Cannabis, em crescimento ou não, as sementes da mesma, a resina extraída de qualquer parte da planta, e todo o composto, manufatura, sal, derivados, mistura ou preparação da planta, suas sementes, ou sua resina, incluindo concentrado de Cannabis.

§ 1º “Cannabis” não inclui o cânhamo industrial, nem sua fibra produzida a partir do caule, óleo ou bolo feito a partir das sementes da planta, sementes esterilizadas da planta incapazes de germinar, ou qualquer outra substância combinada com Cannabis para preparar administrações tópicas ou orais, comida, bebida, ou outro produto.

§ 2º “Cânhamo industrial” é a planta do gênero Cannabis e qualquer parte dessa planta, em crescimento ou não, com uma concentração de delta-9-tetrahidrocanabinol (THC) que não exceda três décimos por cento com base no seu peso quando seco.”

Alguns aspectos desse projeto de lei coincidem com a legislação internacional quanto ao conceito de cannabis, sua distinção quando cultivada para fins industriais - hemp – e a concentração de THC para que seja classificada como cânhamo industrial, em três décimos por cento (0.03%).

Também em 2014, o Senador Cristovam Buarque, do PDT/DF, provocou a Consultoria Legislativa do Senado Federal através de uma Solicitação de Trabalho à Consultoria Legislativa, STC nº. 2014-00720, que resultou no Estudo nº. 765 de 2014, “acerca da regulamentação dos usos recreativo, medicinal e industrial da maconha[44]”.

O estudo identifica a distinção botânica e genética do cannabis para fins industriais a partir de reduzidos níveis de delta-9-tetra-hidrocanabinol (THC) na planta, tendo levantado que

“Aproximadamente três dezenas de países permitem o cultivo do cânhamo. Alguns desses países nunca proibiram o cultivo da planta, enquanto outros reverteram banimentos feitos no passado. A China é um dos maiores produtores e exportadores mundiais de cânhamo e derivados. A União Europeia (UE) tem mercado bastante ativo para esse produto, com produção em vários países, especialmente França, Reino Unido, Romênia e Hungria. Esse mercado foi impulsionado pela suspensão do banimento ao cultivo do cânhamo, durante a década de 1990, nos países da UE. A área cultivada de cânhamo no mundo tem permanecido estável, eventualmente com leve declínio, mas a produção tem mantido crescimento sustentado, por ganhos de produtividade.”

Concluímos, sobre o status legal da cannabis no Brasil, que seu cultivo para fins industriais e comercialização de seus derivados não deveria encontrar óbice legislativo, uma vez que, enquanto signatário da Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961, da ONU, reconhece que existe diferenciação entre cânhamo para fins industriais e agrícolas em comparação à cannabis com propriedades psicotrópicas ou psicoativas.

Por sua vez, parece claro que o critério adotado pelas Convenções da ONU para definir o que são drogas, são as propriedades psicoativas de uma substância e que a Lei 11.343/06 quanto à qualificação do que considera como droga está definido no parágrafo único do art. 1º: a capacidade “de causar dependência”[45].

Outras referências na Lei vinculam a proibição das plantas que podem originar substâncias psicotrópicas quando destinadas a esse fim, não contendo restrições relacionadas a outros fins, a exemplo dos artigos 31 e 32[46].

As propriedades psicoativas da cannabis encontram-se no THC que, em concentração inferior a 1%, não tem a potencialidade de resultar em efeito psicotrópico, portanto não tendo como causar dependência, permitindo a conclusão de que a Lei 11.343/2006 não alcança a cannabis para fins industriais ou agrícolas e que sua previsão na Lista ‘E’ da ANVISA deveria restringir-se a cannabis sativa com concentrações de THC acima de 1%, já que cientificamente comprovado como limite de ineficácia das propriedades psicoativas presentes no delta-9-tetra-hidrocanabinol (THC).

Em 2014, o Poder Judiciário recebeu algumas demandas de pacientes com distúrbios neuropáticos, os quais a medicina já reconheceu benefícios da utilização de remédios à base de cannabidiol (CBD). Um caso tornou-se icônico por sua precursão, o chamaremos “Caso Anny Fischer”.

O relatório da sentença da 3ª Vara Federal do Distrito Federal[47] dá conta de que Anny de Bortoli Fischer, à época da ação, era uma criança de cinco anos de idade, acometida por uma rara moléstia "encefalopatia epiléptica infantil precoce”. Segundo constam dos relatórios médicos do caso, a doença se caracteriza pelo sofrimento de crises convulsivas nos primeiros estágios da infância, associadas a retardo mental e comprometimento da coordenação motora.

Após insucessos reiterados com tratamentos convencionais, a família lançou mão do uso de medicamento alternativo à base de cannabidiol (CBD), tudo com acompanhamento médico que documentou melhora sensível nas crises convulsivas da garota, a ponto de seu médico recomendar a continuidade no tratamento com a medicação.

Durante um tempo, a família importou o cannabidiol clandestinamente, até o momento em que sua encomenda foi retida pela ANVISA para análise técnica, com o alerta de que só seria liberada mediante apresentação de documentação comprobatória do nome do remédio, do fabricante e declaração de finalidade do produto e da importação, sob pena de devolver o pacote para origem. Foi quando a família de Anny buscou o Judiciário.

Ao proferir sua decisão, o Magistrado valeu-se da incapacidade do cannabidiol (CBD) de produzir efeitos psicoativos e, portanto, incapacidade de causar dependência química, para afastar a incidência da lista da ANVISA.

“Como aclarado, devidamente, no parecer acostado na fl. 104, elaborado pelo Departamento de Neurociência e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, de autoria do Dr. Antonio Waldo Zuardi, Professor Titular de Psiquiatria, o Canabidiol (CBD), cuja importação se pretende, é apenas um dos 80 (oitenta) canabinóides presentes na Cannabis Sativa (maconha), precisamente aquele que não produz os efeitos típicos da planta (euforia, distorção sensorial, alucinações, delírios), que são resultantes, em verdade, de outro canabinóide, o Delta-9-Tetrahidrocanabinol, ou, simplesmente, Tetrahidrocanabinol (THC). Tanto é assim que, na listagem de substâncias de uso proscrito no Brasil anexa à Portaria 344/98, da ANVISA, atualizada pela Resolução da Diretoria Colegiada n. 37/2012, da mesma autarquia, consta apenas o Tetrahidrocannabinol (THC) e não o Canabidiol.

É bem verdade que faz parte da lista de plantas proscritas a Cannabis Sativa L. a maconha, donde também se extrai o Canabidiol. Todavia, sua vedação se justifica enquanto capaz de originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas, no caso o Tetrahidrocannabinol (THC), que foi expressamente incluído no rol das substâncias psicotrópicas de uso proscrito no Brasil.”

A sentença usou como fundamento relevante, que a cannabis sem concentrações significativas de THC[48], porque não tem capacidade de gerar efeitos psicoativos ou psicotrópicos, não deveria ser objeto da vedação legal.

Esse aspecto é importante porque converge com a visão aqui sustentada de que a incapacidade do cânhamo industrial de produzir efeitos psicoativos e, por conseguinte, incapacidade de causar dependência, deveria ser determinante para considerar a cannabis para fins industriais e agrícolas no Brasil, legal, cujo embargo, por conta do Estado ou de terceiros, deveria ser considerado uma afronta aos direitos fundamentais econômicos de qualquer cidadão ou empresa, que deveriam ser livres para plantar e comercializar matéria prima ou derivada do cânhamo industrial.           

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Andre. Cânhamo industrial: um possível case de litígio estratégico de interesse público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5626, 26 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70365. Acesso em: 24 nov. 2024.

Mais informações

Texto elaborado como requisito para aprovação na matéria "Políticas Públicas", em Maio/2016, no programa de mestrado do UniCeub.

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