Capa da publicação Cânhamo industrial e maconha: litígio estratégico de interesse público
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Cânhamo industrial: um possível case de litígio estratégico de interesse público

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26/11/2018 às 12:15
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VII - Cânhamo Industrial como possível caso concreto de litígio estratégico de interesse público no Brasil

Ao examinar o litígio estratégico, Evorah Cardoso aponta que o ciclo de vida desses litígios inicia-se com a escolha do caso paradigmático e seu potencial impacto como agente de mudança social.

Foram abordados, ainda que en passant, benefícios econômicos e ecológicos do cânhamo industrial, assim como benefícios relacionados à saúde, com a intenção de demonstrar que sua grande utilidade sem qualquer relação com propriedades ou substâncias psicoativas, sugere que existe uma indústria potencial latente, da qual cidadãos e o Estado brasileiro poderiam se beneficiar.

A distinção botânica e toxicológica verificável por testes científicos, entre cânhamo industrial e maconha, serviu para demonstrar que a despeito de serem espécies de um mesmo gênero, são plantas distintas com propriedades distintas e que, nessa condição, devem receber tratamentos distintos por parte da Lei e das autoridades do Poder Público.

Em outros lugares do mundo, pessoas se beneficiam do cânhamo tanto quanto outros commodities agrícolas. Nesses países, há pesquisas científicas e desenvolvimento tecnológico que permitem a utilização do cânhamo industrial comercial e ecologicamente, fomentando a economia, gerando empregos e riquezas.

Os potenciais benefícios do cultivo do cânhamo industrial enquanto commodity agrícola; o enorme potencial do Brasil do ponto de vista do agrobusiness; a liberação do Conselho Federal de Medicina para que médicos prescrevam remédios à base de Canabidiol quando entenderem ser úteis[49]; o momento histórico em que o mundo começa a alterar sua percepção quanto ao modelo norte-americano da guerra às drogas, em especial às drogas ditas leves; todos esses fatores sugerem que a pauta temática do cânhamo industrial poderia ser bem recebida pelo Poder Judiciário, pela mídia e pela opinião pública, a ponto de causar uma mudança social.

Pessoas poderiam plantar cânhamo industrial e comercializá-lo como commodity agrícola. Pessoas poderiam desenvolver tecnologias, produtos e serviços relacionados ao cultivo. O potencial do Brasil enquanto produtor de uma matéria prima cujo utilidade no mundo tem crescido, poderia, por meio de uma indústria milionária com efeitos positivos na economia e no meio ambiente, gerar empregos e receita, inclusive com tributos; portanto, mudança social significativa poderia resultar de um eventual sucesso do case.

 É curioso lembrar que, no Brasil – assim como nos Estados Unidos -, as pessoas e as empresas podem consumir e usar produtos à base de cânhamo, quando já processados, mas não manufatura-los ou processá-los. Existem algumas poucas lojas que trabalham, sobretudo na internet, com roupas dita ecológicas confeccionadas a base de fibra de cânhamo, porém, não é possível produzi-las, o que nos parece contrassenso. O Brasil pode importar, mas não pode produzir. Pode pagar por, mas não pode ganhar com. A quem isso interessa?

Reconhecimento por parte do Poder Judiciário de que o cânhamo industrial não deveria possuir embargos legais, poderia permitir que centros de pesquisa pudessem desenvolver novas tecnologias e remédios, o que poderia acarretar em projetos com financiamento público de pesquisa sobre o assunto, influenciando, possivelmente, políticas públicas relacionadas ao commodity, com possíveis subsídios do Estado. Esse é o objetivo de um litígio estratégico de interesse público, cuja pauta seja a regulamentação do cânhamo industrial como commodity agrícola.

Evorah Cardoso salienta que a capacidade de organização e articulação da entidade patrona do litígio é importante não só para conseguir financiamento, mas também para dialogar em espaços institucionais, governamentais e não governamentais, domésticos e internacionais, na busca pela realização dos objetivos do litígio. Isso porque diferentemente de litígios usuais, o litígio estratégico de interesse público é conduzido a partir de uma diversidade de técnicas e frentes, destinadas a mobilizar e sensibilizar o Judiciário, a mídia, a opinião pública e a população[50] (CARDOSO, 2012).

Uma demanda individual de uma associação, de um agricultor ou de uma empresa que busque junto ao Poder Judiciário proteção ao seu direito econômico fundamental de poder plantar para vender ou processar seu cultivo, porque defende um direito fundamental difuso, interessa a toda e qualquer pessoa com pretensão semelhante, ultrapassando a esfera individual da associação, do agricultor ou da empresa e penetrando a zona em que interesses particulares e interesses públicos coexistem. Essas circunstâncias autorizam que se rotule uma demanda individual de litígio estratégico de interesse público.

Pensar em um litígio estratégico para o cânhamo industrial requer identificar instituições, empresas, entidades e associações, de alguma forma interessadas na cadeia produtiva ou consumidora do cânhamo, que possam contribuir com o litígio de uma maneira positiva. Possíveis exemplos seriam empresas que fabricam e comercializam produtos que poderiam ser feitos à base de cânhamo, empresas que comercializam ou querem comercializar produtos já processados feitos à base de cânhamo, associações de agricultores, organizações não-governamentais que defendem interesses e causas ecológicas e utilização de novas fontes de energia, em especial renováveis, além de laboratórios de medicamentos interessados em fabricar remédios à base de CBD.

Para dar notoriedade à causa, poderia ser útil apoio de parlamentares de partidos mais compromissados com o meio ambiente ou que vislumbrem benefícios diretos do cânhamo industrial para seus redutos políticos, tanto no plano ecológico quanto econômico, e que desejem formular políticas públicas de apoio e incentivo ao cânhamo.

Esses players são possíveis stakeholders. Stakeholders, são pessoas, grupos ou organizações com interesses legítimos em determinadas ações ou negócios e que têm, no litígio estratégico de interesse público, grande importância, uma vez que o que se busca é uma mudança social[51] (CARDOSO, 2012).

Como objetivo de um litígio dessa natureza, com orientação para uma pauta temática, é promover uma mudança social, importante considerar o papel da mídia, já que uma das formas de influenciar a opinião pública é fazer com que o tema chegue à sociedade civil com um viés positivo, que estimule o cidadão mediano a formar uma opinião ou posição favorável ao assunto.

Embora estejamos em acordo, naquilo que diz respeito à violação ao direito da menina Anny, deve ser levado em consideração o trabalho que sua família fez junto aos meios de comunicação, que, por sua vez, noticiaram o caso, sensibilizando a população em geral para o drama da família que abraçou e apoiou a causa.

O precedente judicial que autorizou a importação do remédio feito à base de cannabis levou, inclusive, o Conselho Federal de Medicina a publicar a Resolução CFM nº. 2.113/2014, que “Aprova o uso compassivo do canabidiol para o tratamento de epilepsias da criança e do adolescente refratárias aos tratamentos convencionais”[52], portanto já houve mudança social relacionada ao tema.           


VIII - Conclusão

O fortalecimento do Poder Judiciário tem o transformado numa espécie de nova arena para discussões de natureza política e de políticas públicas, dada a capacidade de suas decisões influenciarem a atuação do Legislativo e do Executivo, seja contrariando uma decisão ou pautando uma discussão.

Demandas com pretensões que extrapolam interesses individuais e postulam uma mudança social têm surgido como alternativa apta a superar o jogo de interesses políticos, próprios das arenas políticas, quando houver violação a um direito. Litigância estratégica de interesse público é um termo utilizado para tratar dessas demandas, que têm ganhado espaço nos planos doméstico e internacional, como mecanismo jurídico viável para se exigir proteção a direitos fundamentais.

Pela qualidade de fundamentais, alguns direitos não se encontram à disposição de maiorias parlamentares e deverão ser protegidos, no plano nacional e internacional, quando forem alvo de lesão ou ameaça de lesão.

Estamos certos de que as liberdades aos direitos econômicos fundamentais deveriam gozar de proteção do Poder Judiciário, quando invocado a garantir a um cidadão, a um grupo de cidadãos ou mesmo a uma empresa, o direito de trabalhar e empreender com o intuito de desenvolver-se economicamente.

De seu turno, as já mencionadas convenções da ONU sobre drogas e a Lei 11.343/06 definem como droga entorpecente, substâncias com propriedades psicoativas que possam causar dependência, sendo essa característica que justifica a vedação dessas substâncias e de plantas das quais se possa extrair essas substâncias.

A rigor, poderia se acreditar que o cânhamo industrial seria legal no Brasil, já que, por não ter potencialidade psicotrópica, não deveria ser objeto de proibição legal. Entretanto, o cânhamo industrial é espécie do gênero Cannabis, planta prevista na Lista “E” da ANVISA, no rol de plantas que podem originar substâncias psicoativas.

Se a lei, ao proibir o gênero cannabis pretendia proibir toda e qualquer utilidade dela advinda, ou se houve um equívoco do legislador ao generalizar todas as espécies ainda que impotentes para os fins vedados, seria, em tese, uma discussão político-legislativa, que caberia ao Poder Legislativo nas arenas parlamentares.

A generalização do cânhamo e sua equiparação deturpada com a maconha dá ao tema um estigma, marginalizando agricultores que nada têm a ver com drogas ou entorpecentes, impedindo-os, sejam por quais motivos forem, de trabalharem e empreenderem, violando seus direitos econômicos fundamentais.

A discussão sobre a legalidade ou ilegalidade da cannabis ficaria no âmbito parlamentar, não fosse a violação a direito fundamental que a proibição - indevida dentro dos parâmetros justificativos expostos pela legislação nacional e internacional examinada – impõe a agricultores e empresas que intentem cultivá-la para fins agrícolas e industriais, sem que suas espécies de cannabis sequer tenham propriedades psicoativas ou possam causar dependência.

Litígios estratégicos de interesse público surgem como alternativa para que cidadãos que tenham direitos violados, busquem junto ao Judiciário, proteção, ainda que isso signifique adentrar searas de natureza predominantemente política.

Nesse contexto é que pensamos inserir-se o cânhamo industrial enquanto pauta temática defensável perante os tribunais, através de uma ação que busque garantir a uma associação, a um agricultor ou a uma empresa o direito de plantar cannabis exclusivamente para fins industriais e agrícolas.

O Poder Judiciário, provocado a examinar uma demanda individual, deve debruçar-se sobre as considerações fundamentais das convenções internacionais sobre drogas e da legislação específica sobre drogas, para alcançar seus princípios, intenções e seus objetivos.

Como a regra constitucional é pela livre iniciativa, as restrições devem ser motivadas e justificadas, cabendo ao órgão técnico que institui a proibição, a justificativa técnico-científica para cada uma das substâncias e plantas que constam de qualquer lista proibitiva e por isso restrinjam atividade agrícola.

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Acreditamos que a diferença botânica, genética e toxicológica entre as espécies “cânhamo industrial” e “maconha”, ambos do gênero cannabis, em especial a imprestabilidade material do cânhamo para produção de qualquer substância psicotrópica, é ponto central para compreensão do debate, uma vez que o que a legislação busca vedar são as drogas entorpecentes, consideradas ameaça à saúde pública e individual.

Considerando que litígios são contendas que existem dentro de um determinado espaço temporal, há contextos temporais, ou timing, que podem contribuir ou atrapalhar um litígio naquilo que toca a sensibilização dos Juízes, da mídia e da opinião pública. Dentre os fatores extra-direito relacionados ao presente momento histórico, tem relevância contributiva a vitória judicial da família da Anny Fischer, porquanto estabeleceu uma a premissa fundamental para qualquer discussão jurídico ou política relacionada à cannabis, e isto é que cannabis não tem apenas utilidade psicotrópica.

Isso significa dizer que já houve uma mudança por parte da sociedade e do Judiciário quanto à cannabis e essa mudança pode servir de estímulo para que outros debates subjacentes a este – a utilidade e a proibição da cannabis -  possam desabrochar e resultar em novas mudanças.

Sob a perspectiva da estratégica do litígio vislumbrado, importante apontar, o que cremos ter sido um equívoco semântico por parte do Juiz que julgou o caso Anny Fischer. O magistrado confunde os termos maconha e cannabis, utilizando-os alternadamente como se sinônimos fossem. Isso cria a falsa percepção de que maconha e cannabis L. são a mesma coisa, quando em verdade não são. A maconha é uma espécie do gênero cannabis L. e essa distinção nos parece relevante, tanto que a legislação internacional faz essa distinção com base na concentração do canabinóide com propriedades psicoativas, o THC.

A conclusão deste ensaio, então, é que o cânhamo industrial se qualifica como possível pauta temática de um litígio estratégico de interesse público cujo principal objetivo seja preservar direitos econômicos fundamentais ao livre trabalho e iniciativa, quando não houver justificações jurídicas para sua restrição.

Ademais, considerando o crescimento do interesse científico, bem como o crescimento do mercado consumidor de produtos à base de cânhamo, pensamos que uma regulamentação legislativa mais apropriada poderia ser provocada por decisão judicial que reconheça a inconstitucionalidade em proibir uma substância sem propriedades psicoativas, como se entorpecente fosse, na medida em que obsta o direito econômico fundamental de agricultores e empresas que desejem cultivar seus plantios para fins industriais.

Tendo em mente a cultura política brasileira, a publicação de uma lei que regulamente adequada e especificamente a cannabis, certamente seria representativa de uma nova realidade social para o cânhamo industrial e todos de alguma forma relacionado à sua cadeia produtiva ou consumidora.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Andre. Cânhamo industrial: um possível case de litígio estratégico de interesse público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5626, 26 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70365. Acesso em: 26 abr. 2024.

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Texto elaborado como requisito para aprovação na matéria "Políticas Públicas", em Maio/2016, no programa de mestrado do UniCeub.

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