DA PERSONALIDADE JURÍDICA DO CONSÓRCIO
Como já se mencionou aqui, a institucionalização dos consórcios foi assunto a render discussões e, no final das contas, tal insegurança inibiu, mas não impediu por completo o avanço da experiência no país. Sobretudo para institucionalizar o desempenho de atividades complexas em regime de gestão compartilhada nunca se afigurou muito confiável conceber que cada ente federativo cuidasse de suas obrigações em prol do consórcio, sem um "agente responsável" pela coordenação/execução; a sorte de todos dependeria de cada um cumprir à risca suas obrigações e de modo engrenado com os demais, sob pena muitas vezes de se perder todo o esforço; a chance de dar errado era grande. Por outro lado, deixar na mão de um dos consorciados a assunção de obrigações em nome do interesse de todos era aposta de risco, especialmente para quem assumisse a função central. Com isso, a criação de entidade própria e específica para promover a gestão compartilhada passou a ser alternativa tida como forçosa, ao menos para os casos de maior complexidade.
Experiências nesse sentido foram ocorrendo ao longo do país, mas sempre pairavam argüições sobre a forma de constituição dessa entidade, desde a possibilidade de congregar entes federativos distintos até a personalidade jurídica indicada; além disso, era delicado definir seu relacionamento com os Municípios que a criassem, desde a representatividade e realização de atividades em nome deles até a prestação de contas. [06]
A Lei Federal nº 11.107/95 veio para apaziguar a controvérsia e, em vez de facultar a possibilidade, estabeleceu a obrigação de se criar entidade própria, que poderá ser pessoa jurídica de direito público (denominada de "associação pública") ou de direito privado. Em alguns casos a personalidade jurídica deverá mesmo ser de direito público, quando se tratar de matéria intransferível ao setor privado.
No rigor técnico vale distinguir o consórcio público, que é o acordo de vontades - o vínculo a reunir os Municípios - e a entidade a ser criada a partir disso. No desejo de se encurtar a história, pode-se até tomar um pelo outro, mas representam situações diferentes e momentos distintos, embora logicamente a evolução do primeiro acarrete a existência do segundo.
Especificamente para a hipótese da associação pública, cumpre informar que será considerada integrante da Administração Indireta de todos os entes da Federação consorciados (art. 6º, § 1º).
Reconheça-se aqui haver espaço para discussão sobre a capacidade de norma infraconstitucional instituir novo tipo de entidade administrativa. Isto porque o artigo 37, XIX da Lei Maior trata da criação das autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista e sempre se reporta a elas quando quer apanhar toda a Administração Indireta. Haveria então abertura para o legislador infraconstitucional conceber novas entidades?
Os principais publicistas brasileiros não costumam propugnar a existência de reserva constitucional para o caso. Em geral, identificam o Decreto-lei nֻº 200, de 25 de fevereiro de 1967 como sendo, ainda, o grande diploma sistematizador da Administração Indireta brasileira; não é comum mencionar a constitucionalização da tipologia das entidades administrativas a partir do artigo 37, XIX. Marçal Justen Filho, por exemplo, expressamente advoga que a "criação de novas entidades da Administração Pública depende (direta ou indiretamente) de lei, que terá a mesma hierarquia do Decreto-lei. 200. Logo, a lei posterior poderá alterar a sistemática daquele diploma". [07] A seguir, o autor manifesta que essa lei, porém, seria de competência privativa da União, sem demonstrar a previsão constitucional que estabeleceria tal restrição. De qualquer sorte, nessa visão não haveria nenhum problema na criação de nova entidade denominada "associação pública".
O assunto, porém, parece ser mais um daqueles que, talvez pela especificidade, ainda não foram devidamente enfrentados pelas grandes obras do Direito Administrativo, à exceção do recente livro de Marçal, no qual claramente há um posicionamento. Não obstante, a meu ver com a Carta de 1988 soa prejudicada a criação e novas figuras na da Administração Indireta, distintas daquelas citadas na Lei Maior.
No máximo, pode-se concordar com Maria Sylvia Zanella Di Pietro em deixar aberto o rol das entidades privadas, organizadas sob qualquer forma lícita pelo Direito e que, em determinado momento, se submetem ao controle administrativo pelo Estado, hipótese admitida em alguns mandamentos constitucionais. Para a celebrada autora tais entidades integram o quadro da Administração Indireta. [08] Com efeito, há algumas passagens onde a Magna Carta se refere genericamente às sociedades controladas direta ou indiretamente pelo Estado, logo após mencionar os tipos de entidades da Administração Indireta (p.ex, art. 37, XVII e 71, II). Partindo-se dessa compreensão, haveria, sim, espaço para o legislador infraconstitucional, ao definir novas modalidades de entidades privadas, abrir, por via reflexa, alternativas para as fileiras da Administração Indireta (no caso, atípicas), diante da hipótese excepcional de uma entidade constituída sob o novo signo passar ao controle estatal. Seguindo nessa linha doutrinária, mas mantendo-se fidelidade à reserva constitucional sobre o tema, a possibilidade aqui cogitada aplicar-se-ia apenas para o grupo de entidades de direito privado.
O legislador nacional provavelmente anteviu esse campo fértil à polêmica e oportunamente buscou identificar a associação pública como espécie de autarquia; para tanto promoveu a alteração do Código Civil, situando a associação pública dentro da referência que faz à autarquia como pessoa jurídica de direito público interno (art. 16 da LF nº 11.107/97, que deu nova redação ao artigo 41, IV da LF nº 10.406/02). Sem dúvidas, há pontos bem distintos das autarquias típicas, a começar pelo caráter associativo, mas como a Constituição não chega a especificar o que seja autarquia, afigura-se difícil alegar o impedimento à inovação infraconstitucional; a consolidação das novas experiências demonstrará a aceitação (ou não) desse tratamento; pelos motivos expostos, penso que se confirmará sua viabilidade.
Quanto à instituição de pessoa jurídica de direito privado, cumpre ressaltar que a Lei de Consórcios Públicos parece indicar a figura da associação civil, embora não seja absolutamente direta nessa escolha. Tal conclusão decorre da confrontação entre as previsões do Código Civil e da Lei Federal 11.107/05, cheia de aproximações, sendo que o artigo 15 desta última determina a aplicação subsidiária da legislação aplicável às associações civis para disciplinar a organização e o funcionamento dos consórcios. Impende registrar que, na prática brasileira, independentemente da relação consorciada, já eram numerosos os casos de associação civil criada com a participação de entidade federativa, do que dá exemplo a Instituição Comunitária de Crédito Porto Sol, voltada para o microcrédito, da qual participa o Município de Porto Alegre e o Estado do Rio Grande do Sul.
É possível que a discussão sobre a adoção da forma de associação civil ganhe maior vulto do que a da associação pública de caráter autárquico. Outrossim, em vista das previsões constitucionais que falam genericamente em sociedades controladas direta ou indiretamente pelo Estado, novamente vejo a aceitabilidade dessa escolha, sem me parecer que o texto constitucional se reporte em sentido restrito as sociedades civis, as quais, sob a égide do novo Código Civil, assumiram características mais específicas.
A propósito do mencionado artigo 15 da Lei Federal nº 11.107/05, afirme-se que ele é propício a ensejar confusões, pois não discrimina seu alcance; de acordo com visão mais tradicional, que, no caso, deve ser acatada, sua aplicabilidade limitar-se-á aos consórcios com personalidade jurídica de direito privado; seria inaceitável tal subsidiariedade no caso de pessoa jurídica de direito público, regida por princípios e regras gerais distintos do Direito Privado.
Independentemente da personalidade jurídica adotada, o Diploma Legal é claro em exigir da entidade representante do consórcio a observância das normas de Direito Público sobre licitação, celebração de contratos, prestação de contas e admissão de pessoal (art. 6, § 2º). A propósito, para a entidade de direito privado fica definido que o regime de pessoal é o celetista. Curioso é pensar sobre a possibilidade de regime distinto para a associação pública. Com efeito, como criar um regime público próprio para o pessoal vinculado ao consórcio que congrega entes federativos distintos? Teoricamente, isso demandaria a aprovação do conjunto de direitos e deveres dos servidores por lei de cada ente consorciado, criando-se regime exclusivo para o pessoal da entidade. Diante das peculiaridades que cercam a questão, afigura-se que o regime mais indicado, mas não obrigatório, seja também o celetista para essa hipótese (associação pública), o qual inclusive terá a vantagem de não assegurar a estabilidade dos servidores concursados (art. 41 da CRFB), característica mais coerente quando não couber imaginar a perenidade ou mesmo longevidade da associação. Ressalve-se, porém, o caso onde o consórcio assumir atividade privativa do Estado, situação que demanda a estabilidade dos agentes públicos; aí haverá a necessidade de criar regime de pessoal próprio, a não ser que os servidores para essas funções sejam todos cedidos pelas entidades consorciadas.
Outrossim, há ainda algumas discussões jurídicas que deixo para outra oportunidade, merecendo, por ora, apenas o registro e a observação quanto à sua complexidade, como no caso da aplicabilidade da revisão geral anual, do teto remuneratório, da contabilização da despesa com pessoal nos limites globais de cada Município etc..
Vale aduzir que a Lei Federal expressa também a obediência às normas de direito financeiro aplicáveis às entidades públicas no tocante à execução de receitas e despesas do consórcio público (art. 9º). Não se discrimina ali a hipótese de o consórcio assumir personalidade de direito privado. Diante das muitas peculiaridades das finanças públicas, como, por exemplo, a elaboração de orçamento, será necessário estudo conjunto entre juristas e especialistas em finanças públicas para averiguar até onde vai a compatibilização.
A exigência de ratificação do protocolo de intenções justifica-se qualquer que seja o tipo de entidade criada, porque configurará verdadeira autorização legislativa para criação, por ente federativo, de pessoa jurídica, situação que por força constitucional subordina-se ao princípio da reserva legal (art. 37, XIX e XX).
DO CONTRATO DE RATEIO
Instrumento vital para a viabilidade do consórcio, na prática, o contrato de rateio assegurará o repasse das obrigações financeiras de cada participante. Para tanto, certamente não basta a previsão orçamentária, embora seja, em regra, condicionante clara para a realização de qualquer despesa pública ou transferência de recursos estatais. A mudança do paradigma anda em discussão nos meios políticos e jurídicos, tamanha são as contenções de despesas hoje praticadas (chamadas de contingenciamento orçamentário), mas até o momento o orçamento mantém seu caráter meramente autorizativo em relação à despesa, sem obrigá-la.
Como dissemos há pouco sobre o contrato de consórcio público, a contratualização do rateio indica a existência de deveres recíprocos, inclusive quanto ao custeio das atividades do consórcio. E novamente aqui o texto legal não deixou margem para dúvidas ao assinalar que "os entes consorciados, isolados ou em conjunto são partes legítimas para exigir o cumprimento das obrigações previstas no contrato de rateio" (art. 8º, § 3º). Diferentemente do que ocorre com o contrato de consórcio, a Lei Federal chega a prever medidas para o descumprimento do contrato de rateio, notadamente a suspensão ou mesmo a exclusão do inadimplente (art. 8º, § 5º). Questão interessante é se poderiam os consorciados no protocolo de intenções estabelecer outras penalidades, como multas pelo atraso. Seria esse um tema para a competência privativa da União, no tocante à edição de normas gerais sobre contratos da Administração Pública?
Apreciando a situação à luz da Lei Federal nº 8.666, de 21 de junho de 1993, Jessé Torres Pereira Junior manifesta-se pela ilicitude de Estados, Distrito Federal e Municípios em inovar o rol estabelecido nos artigos 86 e 87 da Lei Geral sobre Licitações e Contratos. Alega o autor que "violações a normas gerais devem estar sujeitas a sanções previstas em normas igualmente gerais (...). Se a norma infringida é geral, a sanção aplicável ao infrator há de ser a mesma em todos os segmentos e esferas da Administração Pública brasileira...". [09]. Não se encontra quem advogue o contrário, mas cumpre indagar: não caberia, entretanto, à competência suplementar - reconhecida aos demais membros da federação no tema em exame - criar novas obrigações e estabelecer as sanções correspondentes? Até que a questão seja melhor enfrentada, certamente será mais prudente não se inovar quanto ao estabelecimento de penalidades, mas a bem da verdade, a Lei de Consórcios Públicos foi bastante limitada no tocante às sanções.
Como esclarece o texto legal, o contrato de rateio deve ser formalizado para cada exercício financeiro, seguindo a vigência das dotações orçamentárias que o suportam. A exceção fica para aqueles cujo objeto (I) esteja contemplado no Plano Plurianual de todas as entidades participantes ou então (II) seja custeado por tarifas ou outros preços públicos. Fez-se valer aqui a regra do planejamento financeiro e orçamentário.
Por isso mesmo, há de se tomar cuidado com a redação do mencionado artigo 8º, § 5º da Lei de Consórcios Públicos, onde os tempos verbais podem dar a impressão de que o contrato de rateio seja formalizado antes das leis orçamentárias anuais. Como as entidades federativas não podem assumir obrigação sem prévia dotação orçamentária (art. 167, I e II da CRFB), não há que se falar em consignar, na legislação financeira, as dotações suficientes para suportar despesas (já) assumidas em contato de rateio; isto seria inverter a ordem das coisas estabelecida na Carta Constitucional. Uma primeira interpretação do dispositivo seria então que ele se dirige apenas para os consórcios cujo objeto se encaixa em programas e ações contemplados em Plano Plurianual, situação que permite excepcionar a regra de a obrigação financeira só poder ser contraída quando expressamente coberta por crédito orçamentário vigente. Todavia, penso que se quis afirmar mais do que isso, na busca de se assegurar a longevidade dos consórcios.
Nesse sentido, para as hipóteses não agraciadas no Plano Plurianual, há algo que na prática parece imprescindível: um acordo preliminar, sem a típica força contratual, para orientar os entes consorciados na elaboração dos respectivos orçamentos. Com efeito, deve existir pacto nesse sentido, em primeiro lugar, para esclarecer quanto cada um deverá desembolsar no exercício seguinte e, portanto, consignar o valor apropriado na lei orçamentária; em segundo lugar, isso será necessário – e suficiente - para fazer valer a suspensão ou exclusão do consorciado que não previu as dotações combinadas no acordo prévio. Do contrário cairá por terra a garantia almejada e o risco de o consórcio ruir será significativo. Manifestamente tal acerto preliminar deverá ser feito antes do prazo para envio da proposta orçamentária ao Poder Legislativo.