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Os demônios de Max Weber:

o homem e o direito no capitalismo moderno

Agenda 31/07/2005 às 00:00

O diabo disse: não era o bastante inteligente para que eu me preocupasse com ele. Tratava-se de um pobre de espírito, um tonto que me venceu. Terrível problema é seduzir um imbecil: não compreendeu minhas tentações.

Paul Valéry


I

Quais condições foram vitais para o surgimento do capitalismo moderno? O que o diferencia e o torna sui generis de outras formas de manifestações do fenômeno capitalista? Como a racionalização dos sistemas de pensamento e de ação subsumiu toda uma época histórica? E, principalmente, quais as conseqüências desse processo para o homem moderno e para o Direito?

Como se presume não são questões fáceis de responder. Só um titã do porte de Max Weber para nos conduzir rumo a algum entendimento. Nesses termos, é que lançaremos mão, inicialmente, nas linhas que seguem de um texto clássico do pai da sociologia compreensiva: "História Geral da Economia".

Pretendemos discutir o advento da civilização racional-capitalista. Quer dizer: Weber para nós, no texto já referido, não está trazendo à baila somente a questão da origem histórica do capitalismo moderno, embora o leitor possa ser seduzido do contrário devido à maestria com que Weber, para demonstrar suas argumentações, operacionaliza o método histórico-comparativo. A nosso ver, Weber, ao contrário do sujeito de poucas luzes de nossa epígrafe, é seduzido e atormentado por demônios que só podem ser sentidos se ultrapassarmos o título da obra e o subtítulo do item que abre o capítulo IV. Estes demônios serão explicitados de algum modo ao longo do presente trabalho.


II

Antes de tudo é necessário entender que capitalismo para Weber não se refere a um fenômeno datado historicamente. Ele é um conceito analítico, um tipo-ideal, que não se confunde com a realidade em si, sendo, portanto, um meio heurístico de interpretação dos fenômenos sociais.

Nesse sentido, logo no início do capítulo mencionado, o autor em análise trata logo de demarcar as condições prévias para a existência do capitalismo moderno, quais sejam: (a) apropriação privada dos bens de produção; (b) liberdade mercantil; (c) técnica racional, contabilizável ao máximo, tanto no que diz respeito à produção, quanto na troca; (c) direito racional; (d) trabalho livre; (e) comercialização da economia, no sentido de que os direitos de participação nas empresas sejam garantidos através do uso de títulos de valor.

A partir daí Weber envereda pela investigação dos fatos externos que contribuíram para o desenvolvimento do capitalismo. Não há espaço aqui para referenciar a todos eles, embora eles sejam essenciais para compreender o capitalismo moderno. Nosso objetivo nos obriga a efetivar um recorte. Conduzo o leitor a um outro item interessantíssimo do texto em que Weber discute o desdobramento da técnica de exploração industrial para o mundo da vida.

O primeiro aspecto a ser destacado é a diferença entre aparelho e máquina. Enquanto os aparelhos, movidos à energia hidráulica, estavam a serviço do homem, a máquina está voltada para a produção. Nesse momento, Weber sinaliza para um fato marcante no desenvolvimento do modo de produção capitalista: a apropriação privada dos bens de produção.

Mais adiante, Weber, subliminarmente, toca na questão do desencantamento do mundo. Diz que a parceria entre a ciência e capitalismo, permitiu que no Ocidente a produção pudesse se libertar da tradição. A colonização do mundo da vida torna-se um fato. Ganha corpo as distorções, regressões e ofuscamento do projeto inicial da Modernidade, como bem avalia Sérgio Paulo Rouanet.

Com a sutileza e firmeza de um bailarino, o autor passa a descrever o processo de recrutamento dos trabalhadores. Violência e inclusão pela exclusão. Inclusão, porque como bem demonstrou Michel Foucault, a lógica do modo de produção capitalista não é a exclusão, pelo menos nesse momento de sua constituição. Essa inclusão, não ocorre somente pela via da inserção dos indivíduos nas fábricas. Há uma série de aparelhos que vão seqüestrar as pessoas: a escola, o hospital, o manicômio, os conventos, a prisão, etc.

Weber é sensível a esse processo. Tanto que ao descrever o processo de recrutamento de trabalhadores, afirma que o operário que abandonava o seu posto na fábrica sem a permissão do empresário ou do mestre-artífice era taxado de vagabundo. Ou, ainda: nenhum "desocupado" recebia ajuda se estava fora das oficinas coletivas. Muitos trabalhadores eram mesmo submetidos a uma ordem privada de trabalho. Quer dizer: é preciso fixar os indivíduos, para que seus corpos sejam dóceis e domesticados. Tal fixação ocorre em aparelhos de normalização de homens. São aparelhos, conforme percebido por Weber e lapidado por Foucault, de produção, formação, reformação ou correção de produtores.

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A necessidade de regulação das relações laborais emerge. Weber analisa que até metade do século XIX os patrões dispunham de seus empregados como bem quisessem. Havia uma série de instruções particulares, todas compondo uma ordem privada do trabalho, como já referi.

A partir da daí, a sociedade disciplinar está plenamente configurada. Os trabalhadores são observados, vigiados, classificados, registrados. Seus comportamentos são analisados, comparados. Micropoderes são exercidos de forma capilar. De cima para baixo, de baixo para o alto, em todos os quadrantes. O trabalho, ao contrário de que pensa Karl Marx, não é a essência concreta do homem. Essa essência é produzida no interior da ordem capitalista.

Outro momento forte do texto que aqui nos interessa explorar são as passagens em que é discutido o Estado racional, Direito e burocracia. Recorro ao trabalho de Boaventura de Sousa Santos para pensar esse processo descrito por Weber.

Ao Direito moderno, nesse caminhar do modo de produção capitalista coube um papel muito importante: o de ser, no dizer de Boaventura, um racionalizador de segunda ordem da vida social, uma espécie de elemento substituto ao gerenciamento científico da sociedade. O Direito para cumprir esse papel teve de se adequar. A sua adaptação ocorreu via científica. Ajustando-se à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência moderna, o Direito tornou-se científico. Ocorre que a cientificização do Direito também demandou a sua estatização, haja vista que a manutenção e predominância da ordem política sobre a desordem e o caos foram atribuídas ao Estado moderno. A regulação jurídica é confiada ao Estado.

O Direito, desta feita, deixou escapar do seu campo de visão a tensão que existia entre regulação e emancipação, presente no projeto original da Ilustração. O Direito que, inicialmente, era a combinação complexa de autoridade, racionalidade e ética foi esvaziado de todo potencial emancipatório. Mais precisamente a partir do século XIX, reduzido em ciência jurídica, o Direito perdeu de vista todo o conteúdo ético, que poderia manter viva a sua energia emancipatória.

O resultado foi este: o Direito separado dos princípios éticos acabou por se tornar um instrumento da construção institucional e da regulação do mercado. A juridicização da vida social tornou-se um fato, e o Direito passou a se preocupar apenas com a racionalidade instrumental, com o formalismo técnico-racional e com a aplicação lógica e coerente das normas, pensadas a partir de um ordenamento jurídico que se basta a si mesmo.

A burocracia profissional é um elemento importante quando se fala em direito racional do Estado moderno. Um problema aqui presente é o que Weber identifica em outro trabalho: a subsunção do homem moderno à terrível "gaiola de ferro". O sociólogo da realidade antecipava-se na análise do perigo do desencantamento e da privatização do espaço público, o que culminaria na ofuscação da capacidade de julgamento dos homens recrutados para compor o corpo burocrático do Estado Moderno, como bem analisou Hannah Arendt mais tarde ao refletir sobre a carnificina ocorrida na Alemanha hitlerista.

A burocracia é o mando de ninguém, de acordo com a observação de Arendt. Na Alemanha de Hitler, tal assertiva assumiu tão grande envergadura que toda a carnificina perpetrada contra os judeus ocorreu no interior de uma ordem jurídica, sob os argumentos de que os indivíduos pertencentes ao governo apenas obedeceram a ordens superiores; eram, no dizer da cientista política, tão-somente dentes de engrenagem. Se não cumprissem a ordem, outros cumpririam. Todos os atos do Estado hitlerista eram abertamente criminosos, mas apesar disso, os homens obedeciam à vontade do Führer. Ora, na esfera pública não deve existir obediência cega, sem responsabilidade e julgamento da mesma. Em questões políticas e morais, o obedecer inexiste. O único domínio em que a palavra adquire contornos que justificam a obediência "cega" de adultos é o campo da religião.

A ideologia racional, a racionalização da vida e a ética racional na economia, igualmente, são apontadas como parte do processo de constituição do capitalismo moderno, que o distingue das demais formas de capitalismo irracional, como o mercantil e o usurário.

Para nós, esses são pontos capitais que marcaram a condição do homem moderno. O lucro, por exemplo, só reveste-se de um caráter sui generis no capitalismo moderno porque inserido numa estrutura racional, capaz de moldar atitudes e comportamentos.

O desencantamento do mundo, a morte da magia, é outro evento que deixa marcas profundas no homem moderno. Conforme Weber, a magia estereotipa a técnica e a economia. Ora, como construir ferrovias se os trabalhadores com a função de desflorestar a vegetação nativa acreditam piamente que deuses ali habitam e que sendo assim não podem derrubar a floresta?

Com efeito, não existe nenhuma convicção ética-religiosa capaz de deter o capitalismo. O protestantismo, com seu ascetismo intra-mundano forneceu ao capitalismo toda uma ética racional de existência: a necessidade de servir unicamente à vontade de Deus; não se deixar seduzir pela concupiscência; a perda de tempo como o pior dos pecados; dominar os impulsos e as irracionalidades. O resultado foi este: operários disciplinados para o trabalho e empresários com o afã do lucro racional. Em definitivo, a ética econômica moderna nasceu desse ideal ascético.

À luz dessas considerações, infere-se que Weber não está discutindo na "História Geral da Economia" apenas o fenômeno do capitalismo moderno. Ele escreve assombrado por demônios. São eles que o conduzem à busca da compreensão da condição existencial do homem moderno. A perda da capacidade de julgar e agir, o desencantamento do mundo, a "gaiola de ferro", a ordem privada de trabalho, o Direito transformado em técnica, a sociedade disciplinar anunciada por ele e captada com profundidade por Foucault; são demônios de uma época histórica. Weber os anunciou com muita sensibilidade.


Bibliografia Consultada

ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.

FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nau, 2003.

_________. Vigiar e Punir. 29ª ed. Petrópolis: Vozes, 2004.

MELLO, Alex Fiúza de. A Arquitetura do Mundo e a Engenharia dos Conceitos: Sobre os Fundamentos Metodológicos de Max Weber. Belém: UFPA, 2004.

ROUANET, Sergio Paulo. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.

_______. Mal Estar na Modernidade. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiência. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2002.

WEBER, Max. "História geral da economia". In: Max Weber. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1985.

________. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002.

Sobre o autor
Ed Carlos de Sousa Guimarães

Mestre em Direito (UFPA), Especialista em Direito Ambiental e Políticas Públicas (UFPA) e Graduando em Ciências Sociais (UFPA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Ed Carlos Sousa. Os demônios de Max Weber:: o homem e o direito no capitalismo moderno. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 757, 31 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7065. Acesso em: 7 nov. 2024.

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