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Apropriação indébita do ICMS

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Agenda 15/12/2018 às 15:00

3 A (DES)ATENTA LEITURA DO TIPO PENAL PREVISTO NO ARTIGO 2º, ii, DA LEI N. 8.137/1990

Há, de fato, como destacado em artigo anterior e bem reconhecido no corpo do HC n. 399.109-SC, forte imprecisão redacional no dispositivo atacado. Afora as já indicadas razões históricas a justificar a mens legis desse comando, existe elementar típica diversa daquela indicada pelos críticos a decisão, o que justifica a exaustiva conceituação tributária que leva ao tipo interpretação incompatível com o dizer expresso da norma.

Explica-se. De regra, os crimes previstos nos artigos 1º e 2º da Lei n. 8.137/1990 são crimes que tem como elemento definidor a clandestinidade, dissimulação ou fraude, expressos em cada espécie delitiva por meio de seus incisos. Nesse diapasão, veja-se a redação do artigo 1º:

Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;

II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;

III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;

IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;

V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.

O artigo 1º da Lei traz à baila importantes conceitos. Define a natureza jurídica dos crimes ali discriminados (crime contra a ordem tributária), e estabelece, de antemão, se tratar de crime material, diretamente ligado a produção de dois resultados naturalísticos: “supressão” ou “redução” de “tributo, contribuição social ou qualquer acessório”.

Ao se referir a supressão ou redução de tributo, o tipo penal estabeleceu uma relação entre as condutas descritas nos incisos com seu possível autor, que deverá ser parte integrante da relação tributária (afinal de contas, apenas este poderá suprimir ou reduzir tributo, e não terceiro). Não basta, porém, para a ocorrência do crime, que haja tributo suprimido ou reduzido. Como preceitua o artigo 14, I, do Código Penal, só há crime consumado se reunidos todos os elementos de sua descrição típica. Assim, os crimes descritos no artigo 1º da Lei n. 8.137/1990 somente se consumam se, para além do resultado de supressão ou redução de tributo, for praticada uma das condutas descritas nos respectivos incisos, que se referem à omissão de informações (I), fraude (II) e falsificação (III e IV).

Para além dessas hipóteses, o inciso V desse dispositivo legal disciplina conduta diversa, que não guarda relação de clandestinidade ou fraude, como as demais: a negativa de fornecimento de documento fiscal relativo à venda de mercadoria ou prestação de serviço, ou seu fornecimento em desacordo com a legislação. A doutrina divide-se entre a natureza formal ou material deste delito, sendo firme, porém, sua independência da necessidade de aguardo do processo administrativo tributário para configuração do delito (STJ, HC 260.354/PE, Rel. Ministro Rogério Schietti Cruz, julgado em 25/9/2014; STF, HC n.96.200/PR, Rel. Ministro Marco Aurélio, julgado em 28/5/2010).

O artigo 2º da Lei, por sua vez, possui a seguinte redação:

Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:

I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo;

II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

III - exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal;

IV - deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento;

V - utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.

Afora a natureza do crime, ou seja, “contra a ordem tributária”, o artigo 2º da Lei n. 8.137/1990 não guarda qualquer correlação com o artigo 1º. Cada inciso integrante do tipo compõe crime próprio, não se fazendo presente a elementar típica “tributo” na regra geral (caput), não obstante presente em algumas modalidades deste crime.

Nesse sentido, o inciso I da norma é comumente chamado como tentativa do artigo 1º, modalidade anômala de crime de atentado[6], na medida em que as condutas ali descritas (falsa declaração ou omissão sobre rendas, bens e fatos, ou mesmo qualquer outra fraude), não obstante tenham a finalidade de reduzir ou suprimir tributo (“eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo”), não tenham de fato atingido tal intento.

Este tipo penal, portanto, possui direta relação com a ideia de clandestinidade, de fraude, de ardil, tal qual o descrito no artigo 1º. Trata-se de delito que tem, a exemplo do anterior, como pressuposto de autoria, o sujeito passivo de tributo, na medida em que somente este poderá praticar as fraudes que visam, justamente, reduzir ou suprimir o pagamento de um tributo.

O inciso III deste dispositivo (o inciso II será analisado ao final), por sua vez, não possui qualquer correlação com supressão ou redução de tributos. Trata-se de delito de corrupção (ativa e passiva) qualificada, em que o agente público ou responsável pela autorização de benefício fiscal receba ou solicite indevida vantagem econômica relacionada ao incentivo, bem como o sujeito passivo de determinado tributo, titular do benefício, a pague. Será delito formal ou material, conforme a espécie, e podem ser sujeitos ativos do crime tanto eventual contribuinte de imposto atingido por benefício fiscal, quanto o servidor público que aja nesse processo de liberação.

O inciso IV da norma também se refere a incentivo fiscal, e da mesma forma como o anterior, não guarda correlação com supressão ou redução de tributos, nem mesmo quanto a clandestinidade ou fraude. Trata-se de delito que se refere ao descumprimento de condições de benefício fiscal (o sujeito ativo do crime, portanto, somente poderá ser contribuinte titular de incentivo fiscal ou recebedor de parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento), tendo por elementar típica, ainda, que tenha havido a prévia fixação de condições de cumprimento do benefício.

O inciso V trata de hipótese autônoma de delito, mediante a definição de um crime de mera conduta que pode ser praticando tanto pelo contribuinte do imposto, que use em sua atividade software que possibilite o registro de caixa paralelo (caixa 2), ou pelo distribuidor deste software, seja ele ou não o desenvolvedor, desde que o disponibilize ao público. Nesse contexto delituoso o crime não pressupõe qualquer resultado naturalístico, ou seja, que o usuário ou distribuidor do software tenha conseguido reduzir ou suprimir tributo, circunstância que será punida, se existente, nas hipóteses delitivas do artigo 1º.

Compreendido, portanto, que nem todos os crimes descritos nos artigos 1º e 2º sejam integralmente similares, tenham por pressuposto a clandestinidade ou fraude, ou mesmo estejam umbilicalmente ligados à supressão de tributo, é possível agora entender a definição típica do delito descrito no inciso II do artigo 2º da Lei n. 8.137/1990, que assim dispõe:

II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

A primeira causa de confusão neste tipo penal está em pressupor que nele estejam presentes os elementos descritos no artigo 1º ou no artigo 2º, I, da Lei n. 8.137/1990. Não há, no tipo, qualquer indicação de prática de fraude, ardil, ou mesmo de clandestinidade, pela ausência das elementares de “omitir”, “fraudar”, “falsificar” etc. Pelo contrário, é pressuposto desta espécie delitiva que não haja clandestinidade ou fraude que, se presente, encontrará adequação típica no artigo 1º da Lei n. 8.137/1990.

Da mesma forma, não há exigência de que os núcleos típicos “descontado  ou cobrado” guardem correlação com o sujeito passivo de obrigação tributária. De fato, aqui reside o maior problema na interpretação promovida por diversos críticos da decisão do STJ no HC n. 399.109-SC. Retira-se do já citado voto vencido, da Min. Maria Thereza:

No caso do ICMS, o consumidor não é contribuinte do imposto, no sentido técnico, nem sujeito passivo da obrigação, o que significa que ele jamais será cobrado pelo pagamento do imposto devido na operação. Não existe relação jurídica tributária possível entre o Fisco estadual e o consumidor final, de modo que não é correto, juridicamente, considerar que o valor do ICMS embutido no preço tenha sido dele "cobrado" ou "descontado". O consumidor é, apenas, "contribuinte de fato", conceito que, juridicamente, tem relevância unicamente para fins de repetição de indébito tributário (CTN, art. 166).

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Pois bem. Obviamente, o sujeito ativo deste crime somente poderá ser o sujeito passivo tributário, na medida em que expressamente definida tal circunstância no tipo penal (elemento objetivo do tipo): “na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”. Porém, quanto ao desconto ou cobrança, ao contrário da premissa tomada em consideração no voto vencido ou por muitos articulistas, não está o tipo penal a se referir a “tributo descontado ou cobrado” de alguém, mas sim a “valor de tributo descontado ou cobrado” de alguém.

Essa precisão terminológica quanto a elementar típica é extremamente relevante. Se por um lado parcela significativa das condutas descritas no artigo 1º e 2º da Lei n. 8.137/1990 tem como elementar típica “tributo”, o inciso II do artigo 2º refere-se, expressamente, a “valor de tributo”, e não meramente “tributo”.

Valor, na definição de Houaiss[7], é a “[...] quantidade monetária equivalente a uma mercadoria [...], determinação quantitativa obtida por cálculo ou mensuração [...]”. Em suma, valor é a mensuração econômica de algo. E aqui o tipo penal se refere, expressamente, não a “tributo”, mas ao “valor de tributo”, ou seja, a mensuração econômica de tributo.

Nesse diapasão, vê-se que a conclusão acaba por ser equivocada, a partir da premissa falsa que a ampara. De fato, caso a elementar típica do crime analisado fosse “deixar de repassar tributo cobrado de alguém”, poderia surgir a impressão de que este alguém, de quem é cobrado o tributo, deveria ser contribuinte do imposto. Porém, ao expressamente indicar na elementar típica, diferentemente dos demais delitos indicados no artigo 1º ou 2º da norma, que a “cobrança de alguém” se refere ao valor de tributo, ou seja, sua mensuração, e não a tributo propriamente, o tipo abre a interpretação de que tal valor, por consequência, pode ser cobrado de quem é contribuinte (no caso da substituição tributária, por exemplo), ou mesmo de quem não o seja, bastando, para tanto, a repercussão econômica do imposto, como no caso do ICMS.

Mas não se para por aqui. De fato, a própria tese que visa restringir o tipo penal à hipótese da substituição tributária – excluído, pois, o vulgarmente denominado “ICMS próprio” -, fulcrada em conceitos puramente tributários, omite-se quanto a terminologia adotada na norma penal para identificação do autor do crime. Como dito alhures, o artigo 2º, II, da Lei n. 8.137/1990 delimita que somente poderá ser autor desse crime contra a ordem tributária quem aja na qualidade de “sujeito passivo de obrigação”.

O Código Tributário Nacional, em seu artigo 121, estabelece:

Art. 121. Sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária.

Parágrafo único. O sujeito passivo da obrigação principal diz-se:

I - contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador;

II - responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei.

Ao delimitar o sujeito ativo do crime, portanto, a norma penal fez expressa referência ao gênero “sujeito passivo da obrigação”, que abrange, justamente, na acepção tributária, duas espécies: o contribuinte (referido no ICMS próprio) e o responsável (referido no ICMS por substituição tributária). Ora, fosse interesse do legislador fazer restrição do tipo penal a hipótese de substituição tributária, teria delimitado a autoria do crime pela espécie, e não pelo gênero, simplesmente substituindo no tipo penal a elementar “na qualidade de sujeito passivo de obrigação” por “na qualidade de responsável tributário”. Não o fez o legislador justamente por querer se referir a ambas as espécies de sujeição passiva e, portanto, não o pode fazer o intérprete.

Além disso, não se olvida que, para fins de cálculo do ICMS, o valor do tributo é cobrado por dentro do preço (conforme art. 13, §1º, I, da Lei Complementar n. 87/1996, Lei Kandir), sendo o destaque do valor, em documento fiscal, elemento importante do processo de controle pelo Fisco. Porém, é mais do que consabido que os tributos indiretos, notadamente os impostos sobre o consumo, são feitos para atingir o consumidor, no final da cadeia produtiva, e não o produtor ou os intermediários da cadeia de circulação.

Nesse sentido bem ressalta Misabel Abreu Machado Derzi, em suas notas de atualização à obra do mestre Aliomar Baleeiro:

Como, economicamente, o tributo é transferido para o adquirente pelo mecanismo dos preços, acaba sendo suportado, em definitivo, pelo consumidor final. Procura-se, então, propiciar ingressos à Fazenda em cada uma das etapas do processo econômico de produção, distribuição, e comercialização, na proporção que cada uma delas incorpora, agrega ou adiciona ao valor do produto. Daí a expressão valor adicionado. [...]

Como já destacamos ao comentarmos o art. 46 do CTN, tanto o ICMS quanto o IPI não podem onerar o contribuinte de iure. Destacamos, ainda, que essa afirmação [...] não é econômica, mas, ao contrário, encontra pleno apoio jurídico na Constituição brasileira.

É que a Constituição brasileira assegura, como de resto o fazem os países europeus e latino-americanos, que o contribuinte, nas operações de venda que promova, transfira ao adquirente o ônus do imposto que lhe foi transferido em suas aquisições pelo seu fornecedor (embora na posição de adquirente tenha sofrido a transferência e nada tenha pessoalmente recolhido aos cofres públicos). Esse mecanismo se repete até a última etapa, na venda ao consumidor final que suporta, de fato e de direito, a carga do tributo. No Brasil como nos demais países que adotam modelos similares, tal tributo, não cumulativo não onera, assim, a força econômica do empresário que compra e vende ou industrializa, porém onera a força econômica do consumidor, segundo ensina HERTING. A rigor, quer do ponto de vista jurídico – pois há expressa licença constitucional para isso -, quer do ponto de vista econômico, o imposto foi modelado para ser suportado pelo consumidor, jamais pelo contribuinte-comerciante.[8] (o grifo não consta do original).

Essa circunstância não é peculiaridade brasileira, sendo regra geral aplicável em praticamente todas as economias mundiais. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) classifica os impostos em cinco categorias: imposto sobre renda, receita e ganhos de capital; contribuições para a seguridade social; impostos sobre a folha de pagamento e pessoal; impostos sobre a propriedade e impostos sobre bens e serviços, incluindo neste último grupo os impostos sobre o consumo[9]. Sobre estes últimos, destaca-se:

Consumption taxes such as VAT, sales taxes and excise duties are often categorised as indirect taxes as they are not levied directly on the person who is supposed to bear the burden of the tax. They are not imposed on income or wealth but rather on expenditure that the income and wealth finance. Governments generally collect the tax from the producers and distributors in the value chain, while the burden of the tax falls in principle on consumers as it will be passed on to them in the prices charged by suppliers.[10]

Nessa circunstância, a peculiaridade da operação de destaque do imposto se dá na medida em que, a par de servir para controle do fisco, aponta ao consumidor qual o valor do imposto que está lhe sendo cobrado no final da operação. E não se diga que tal valor não reflete, de fato, o quantum de imposto que será recolhido pelo contribuinte de direito, pois, no regime de apuração geral (e não por mercadoria), como no ICMS, em que o saldo a recolher é computado através de conta gráfica de créditos e débitos do imposto, o pagamento desse tributo (saldo a recolher), referente ao documento fiscal, se dá justamente pelo somatório do valor recebido na operação de venda com o crédito das operações anteriores (mecanismo de compensação da não cumulatividade).

Em suma, o contribuinte de fato é cobrado pelo contribuinte de direito do total do imposto devido na cadeia, entregando ao fisco, porém, parte deste valor em pecúnia (referente ao acréscimo do valor adicionado na última operação de venda), parte em créditos do imposto referentes às operações anteriores.

A circunstância da Lei Kandir aduzir expressamente a finalidade de controle do destaque do valor não impede tal conclusão, até porque trata-se de norma voltada a regular a relação tributária (e não a relação entre vendedor e comprador), inexistente, por óbvio, entre o contribuinte de fato e o fisco. Justamente por isso que o contribuinte de fato não é parte legítima para a restituição do imposto (não é parte na relação jurídico-tributária, que se dá entre sujeito passivo, o contribuinte de direito, e o Fisco), e não há imunidade tributária no caso da aquisição de produtos por entidades imunes (STF, RE n. 608.872 – a relação tributária se dá unicamente entre o fisco e o vendedor da mercadoria, não atingido pela imunidade - tributária, e não negocial).

Nesse caso, portanto, existe um valor de imposto fixado, e esse valor é cobrado pelo contribuinte de direito do contribuinte de fato, a partir do preço, que envolve custos, tributos e o lucro. Mas, então, muitos acabam por perquirir: mas todos os tributos, nesse caso, são cobrados do contribuinte final, então a incidência do tipo se daria em qualquer espécie de tributo? A resposta é negativa. De fato, todos os tributos vão integrar o custo empresarial e, eventualmente, serão influentes no preço. Porém, os tributos diretos não são mensuráveis economicamente dentro de cada operação: ora, o IPTU do imóvel será o mesmo, vendida uma ou mais mercadorias; o IR, ainda que variável, dependerá de bases atingidas mensalmente para fixação da alíquota de apuração; e assim sucessivamente.

A peculiaridade dos tributos indiretos, portanto, é que se amolda a questão, porque seu ônus é facilmente apurável em cada operação e repercutível ao consumidor final, seja pela incidência direta conforme o bem (alíquota e base de cálculo), seja pelo princípio que norteia toda a cadeia do imposto sobre o consumo: a não cumulatividade, a oneração voltada justamente ao final da cadeia produtiva.

Não por menos o ICMS não integra a base de cálculo de PIS e COFINS (STF, Recurso Extraordinário n. 574706), e a lei de apuração do imposto de renda por lucro real ser taxativa: “§ 4o Na receita bruta não se incluem os tributos não cumulativos cobrados, destacadamente, do comprador ou contratante pelo vendedor dos bens ou pelo prestador dos serviços na condição de mero depositário” (artigo 12, §4º do Decreto-lei n. 1.598/77.

Ora, se a leitura pura e simples do tipo penal pudesse deixar alguma dúvida, essa seria facilmente sanada pela integração da norma indicada, que claramente contextualiza que os tributos não cumulativos são “cobrados, destacadamente, do comprador ou contratante”.

Outra questão interessante se dá quanto a arguição da incompatibilidade desta cobrança com a hipótese em que o vendedor não tenha recebido o pagamento pela mercadoria. Para alguns, como já está pacífico na jurisprudência que mesmo em tal hipótese o imposto é devido, tal circunstância demonstra que o imposto não seria cobrado do adquirente, e sim assumido pelo contribuinte de direito. O Superior Tribunal de Justiça, em suas turmas de direito público, de fato, já há muito perfila este entendimento:

[...] O descumprimento da operação de compra e venda mercantil pelo comprador não tem o condão de descaracterizar a ocorrência do fato gerador do tributo, pois os acordos privados não são capazes de abalar a relação tributária, o que impede o contribuinte de repassar o ônus da inadimplência ao Estado. Precedentes: AgRg no REsp 1.132.852/SP, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 23/03/2010, DJe 06/04/2010; REsp 1.029.434/CE, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 20.5.2008, DJe 18.6.2008; RMS 17.947/SE, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em 22.8.2006, DJ 4.9.2006. [...] (STJ, AgRg no AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 1.343.552 – SP, Relator Ministro Castro Meira, julgado em 16/11/2010).

A tese é sedutora, porém uma análise mais escorreita impõe o limite a essa interpretação. Em um primeiro momento, é regra geral dos negócios jurídicos de compra e venda a entrega do bem – tradição – condicionada ao seu pagamento, ambas ocorrendo no mercado à vista. Quando o contribuinte opta pela tradição previamente ao recebimento do valor está, em verdade, financiando o seu pagamento, o que pode fazer por conta e risco próprio ou mediante o intermédio de terceiros. Nessa premissa, a opção do contribuinte não é oponível ao Fisco (voltamos à regra de que o contribuinte de fato não integra a relação tributária), pelo que o posterior inadimplemento está vinculado a uma relação puramente privada de mútuo não cumprido.

Ainda que assim não o fosse, destaca-se que o crime tributário aqui analisado possui como elemento subjetivo o dolo. Em tal hipótese, essa conduta pode justificar uma melhor avaliação do elemento subjetivo do crime, de forma a afastar a ocorrência do dolo ou mesmo apontar uma das hipóteses excludentes de ilicitude da conduta.

Essa circunstância fica ainda mais evidente se o delito é praticado entre integrantes da cadeia produtiva – contribuintes do imposto-, fora da hipótese da substituição tributária. Ora, nesses casos, o valor do tributo é cobrado do adquirente, que irá utilizar o crédito do imposto do qual foi cobrado em conta gráfica. A repercussão não será puramente econômica; pelo contrário, também tributária, influenciando o regime de apuração na continuidade da cadeia produtiva. Nesse contexto, poder-se-ia perquirir justamente o contrário: se o valor do imposto da etapa antecedente não foi recolhido ao Fisco, poderia o crédito do adquirente ser então, glosado pelo Fisco, já que não há tributo recolhido a ser compensado? Evidente que não!

E cabe aqui, ainda, responder a importante pergunta sobre a questão: está o direito penal agindo, então, para coagir o contribuinte a pagar tributo?

A resposta a essa pergunta é extraída de outra: qual a função do direito penal?

De acordo com Guilherme de Souza Nucci[11],

[...] Aplicando-se sanção penal ao delinquente objetiva-se demonstrar aos demais membros da sociedade que a ordem jurídica precisa ser respeitada, sob a ameaça de imposição da reprimenda mais grave admitida pelo direito, abrangendo a possibilidade da privação da liberdade (prevenção geral negativa).

Genericamente, emite-se a mensagem de que o violador da norma deve ser punido, desencorajando muitos outros pretendentes a seguir o mesmo caminho.

[...]

Não se pode deixar de reconhecer, entretanto, que, ao menos em caráter secundário, o Direito Penal tem uma aspiração ética: deseja evitar o cometimento de crime que afetam de forma intolerável os bens jurídicos penalmente tutelados (ZAFFARONI, 1977, p. 21 apud MIRABETE; FABBRINI, 2018, p. 3). Essa finalidade ética não é todavia, um fim em si mesma, mas a razão da prevenção penal, da tutela da lei penal aos bens jurídicos preeminentes. Assim, a tarefa imediata do Direito Penal é de natureza eminentemente jurídica e, como tal, primordialmente destinada à proteção dos bens jurídicos.

Nas palavras de Júlio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabrinni, por sua vez, o direito penal tem como finalidade a proteção de bens e interesses jurídicos sociais fundamentais através da ameaça legal de aplicação da sanção, atuando, assim, de modo preventivo[12].

Acrescenta Cezar Roberto Bitencourt que o Direito Penal tem como finalidade precípua a proteção daqueles bens e interesses de maior importância para o indivíduo e a sociedade à qual pertence, por meio da imposição de sanções específicas – penas e medidas de segurança -, da qual pode-se abstrair a sua função preventiva genérica, que visa afastar a prática do crime por meio do estabelecimento de normas proibitivas e cominação das respectivas sanções; a função preventiva especial, por meio da aplicação da pena ao indivíduo infrator como manifestação do seu caráter coercitivo e; a função criadora, a qual preocupa-se com as causas do fenômeno criminal e o seu impacto sobre a sociedade e não meramente com o campo normativo[13].

No mesmo sentido, Rogério Greco, ensina que o escopo imediato e primordial do Direito Penal é proteger os bens jurídicos politicamente mais importantes e necessários para a própria sobrevivência da sociedade, figurando a pena como instrumento de coerção de que se vale o Direito Penal para a proteção de tais bens, valores e interesses mais significativos da sociedade[14].

Por fim, adverte o colega Promotor de Justiça Catarinense Andreas Eisele[15]:

[...] o Direito Penal é um instrumento criado para o exercício de um poder, mediante o qual a parcela social politicamente dominante em um estado (que em uma democracia se compõe da maioria de seus cidadãos) impõe limites ou obrigações comportamentais aos sujeitos integrantes da sociedade de forma geral, definido o modelo ético comportamental juridicamente admissível em tal contexto, e define as consequências jurídicas de caráter sancionatório a serem aplicadas às pessoas que realizarem comportamentos classificados como eticamente inadmissíveis.

De fato, o direito penal, como manifestação de poder soberano do Estado, nesse específico delito contra a ordem tributária, age para coagir, ainda que indiretamente, o contribuinte a entregar ao fisco valor de tributo que, pela característica intrínseca dos impostos incidentes sobre o consumo, é cobrado de terceiros. A ideia do tipo penal é, portanto, como mandamento comportamental positivo, instar o sujeito ativo do crime a cumprir o dever ético de repasse desses valores, sob pena de sanção punitiva. Isso se dá para a proteção de dois bens jurídicos extremamente relevantes: a) a ordem tributária, sem a qual será impossível cumprir a função social do Estado, que é a de prestação de serviços públicos ao cidadão; e b) o exercício da livre concorrência, pilar da ordem econômica, que resguarda o exercício da livre iniciativa e da isonomia, fundamentos da República.

E, nesse aspecto, a dogmática penal, a partir da interpretação da conduta descrita no artigo 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, viola a Convenção Interamericana de Direitos Humanos e a Constituição da República?

Preceitua o Pacto de San José (art. 7º): “7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”. Por sua vez, disciplina a CRFB/1988 (art. 5º): “LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.

Como dito alhures, a criminalização da conduta em questão não se dá pela única circunstância de existir uma dívida tributária própria (assim o fosse, seria cabível a interpretação da adequação típica para toda e qualquer dívida tributária), mas, sim, pelo fato de que se pretende resguardar o ingresso, nos cofres públicos, de “valor de tributo” que é cobrado pelo contribuinte de terceiro e que possui obrigação legal de entregar aos cofres públicos.

Não se trata, portanto, de prisão civil por dívida, à qual se referem os dispositivos indicados, mas de repressão penal por conduta típica, situação já consolidada na jurisprudência da Suprema Corte brasileira (RE 391.996 AgR, rel. min. Ellen Gracie, j. 25-11-2003, 2ª T, DJ de 19-12-2003; AI 800.589 AgR, rel. min. Ayres Britto, j. 26-10-2010, 2ª T, DJE de 14-2-2011, entre tantos outros). Nessa premissa, a compreensão que se deve dar aos referidos dispositivos é de que não pode a legislação civil impor pena de prisão em razão de dívida civil, nada impedindo, porém, o uso do direito penal – na tutela de bens jurídicos relevantes – para forçar a adoção de condutas positivamente determinantes.

A criminalização dessa conduta é providência adotada por diversos países desenvolvidos, onde a ultima ratio é aplicada justamente pela ineficiência dos demais ramos do direito a assegurar a dupla proteção envolvida, tributária e concorrencial. Nesse aspecto, encontra-se similitude entre a conduta brasileira e a legislação penal Estadunidense (seção 212.15 do Código da Flórida; Artigo 37 - § 1801, a, 5, do Código Tributário de Nova Iorque, entre outros); da Costa Rica (art. 92 da Lei Nacional n. 4.755/71); Portuguesa (Art. 105 da Lei n. 15/2001); Italiana (artigo 10-ter do Decreto Legislativo n. 74, de 10 de março de 2000), dentre outros[16].

Dentre estes, destaca-se que o tipo penal integrante da legislação portuguesa é assim ementado:

Artigo 105.º

Abuso de confiança

1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

O Supremo Tribunal Federal já foi instado, por vias reflexas, a analisar a correlação entre o crime descrito no artigo 2º, inciso II, da Lei n. 8.137/1990 e a conduta de apropriação do ICMS. No corpo do acórdão (pp. 4-5) do julgamento da Extensão da Extradição n. 1.139[17], de relatoria da Ministra Rosa Weber, restou delineada tal correspondência com o tipo Português:

Ainda segundo o pedido de extensão de extradição, o demandado, na condição de dirigente da empresa, teria retido, liquidado, mas não entregue ao Erário Português o tributo IVA (Imposto sobre Valor Agregado) nos meses de abril e de setembro a dezembro de 2001 e ainda no mês de dezembro de 2002, no montante total de 60.746 euros (fl. 439). Como se verifica na manifestação do Ministério Público Português e na decisão do Tribunal de Bragança (fls. 456), foi reconhecida, posteriormente, quanto ao crime relativo à falta do recolhimento do IVA, a extinção da punibilidade, salvo em relação às prestações devidas em outubro e novembro de 2001. A extinção da punibilidade decorre de preceito legal que descriminaliza “as condutas relativas à não entrega das prestações tributárias de valor igual ou inferior a 7.500,00 euros” (fl. 456). [...]

Como se depreende da descrição fática e dos tipos penais, os crimes encontram correspondentes no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990, quanto à falta de recolhimento do tributo, e no art. 168-A do Código Penal, quanto à falta de recolhimento da contribuição previdenciária [...].

A Suprema Corte Brasileira, portanto, não apenas reconhece a validade da criminalização da conduta, como a correlação direta entre a apropriação do IVA e a retenção do ICMS. E em sendo válida, não há como afastar-se sua aplicação literal, pois já lembrava Robert Alexy, “[...] se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais,nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível”[18].

Isso fica ainda mais evidente quando, em inúmeros julgados, a Suprema Corte já denegou agravos regimentais que visavam rediscutir a amplitude da interpretação do artigo 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, reconhecendo sua constitucionalidade e firmando que essa matéria é de índole infraconstitucional[19], o que apenas reforça a importância e correção da decisão emanada pelo Superior Tribunal de Justiça.

Assim, não se vislumbra a existência de argumentos válidos a modificar o posicionamento emanado da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC n. 399.109-SC, de relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz, julgado em 22 de agosto de 2018. Firmada tal premissa, necessário que se demonstre os efeitos positivos dessa decisão na preservação da ordem tributária estadual e da livre concorrência empresarial.

Sobre o autor
Giovanni Andrei Franzoni Gil

Advogado entre 2001 e 2003, Promotor de Justiça no Ministério Público do Estado de Santa Catarina desde 2003, Coordenador do Centro de Apoio Operacional da Ordem Tributária desde abril de 2015

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GIL, Giovanni Andrei Franzoni. Apropriação indébita do ICMS. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5645, 15 dez. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70822. Acesso em: 22 dez. 2024.

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