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As cédulas de crédito bancário e a proteção ao consumidor:

uma crítica ao atual panorama jurisprudencial da temática

Agenda 09/01/2019 às 15:23

Um estudo jurisprudencial sobre as Cédulas de Crédito Bancário com enfoque no princípio da proteção ao consumidor

As cédulas de crédito são títulos criados por lei extravagante. As mais conhecidos são as cédulas de crédito industrial (regulada pelo Decreto-Lei 413/69), as cédulas de crédito comercial (regulada pela Lei 6.840/80) e as cédulas de crédito bancário (regulada pela Lei 10.931/04).

Essas cédulas tornaram-se importantes instrumentos de concessão de crédito, mas alguns poscionamentos jurisprudenciais a respeito destas afrontam a ordem jurídico constitucional vigente, a saber: a) condição de excessiva vulnerabilidade do consumidor; b) abusividade na prestação do aval por pessoa física c) dilação irregular do prazo prescricional. É o que veremos a partir das Cédulas de Crédito Bancário.

I – Vulnerabilidade do consumidor e iliquidez das CCBs

As cédulas de crédito bancário (CCB) foram criadas por lei para resolver um problema operacional dos bancos e financeiras, a falta de exequibilidade dos contratos de abertura de conta corrente, como a lei de regência define:

Art. 26 da Lei 10.9301/04. “A Cédula de Crédito Bancário é título de crédito emitido, por pessoa física ou jurídica, em favor de instituição financeira ou de entidade a esta equiparada, representando promessa de pagamento em dinheiro, decorrente de operação de crédito, de qualquer modalidade”.

O Superior Tribunal de Justiça referendou a exequibilidade das cédulas de crédito no julgamento do REsp 1.291.575 / PR[1], o que as tornou importante instrumento de execução de dívidas no Brasil.

Porém, não negando a importância da garantia ao crédito como fator de estabilidade econômica, tal regramento tende a ser inconstitucional por violação ao princípio da proteção ao consumidor inserto no artigo 170 da CF[2].

Isso porque, a priori, o consumidor não sabe o quanto devido. Este montante é apurado individualmente pelo banco, através de planilhas que acompanham a cédula no momento de propositura da execução cível (artigo 28 da Lei 10.931/04).

E mesmo não sabendo o quanto deve, é possível este ser imediatamente executado e com imposição de pagar em três dias sob pena de penhora (artigo 829 do CPC), o que submete o consumidor a situação de vulnerabilidade excessiva não tolerada pelo princípio de proteção ao consumidor.

Por outro lado, a doutrina e a jurisprudência são pacíficas em atestar a incidência do CDC nas relações provenientes das cédulas de crédito bancário seguindo a orientação da Súmula 297 do STJ.

Todavia, algo passou ao largo das discussões travadas pela Corte Cidadã. A liquidez das Cédulas de Crédito bancário não é dada por elas próprias, mas por outro instrumento. E é inegável violação ao requisito da cartularidade, essencial a doutrina cambial. A relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão restringiu-se a dizer:

Contudo, com o advento da Lei n. 10.931/2004, foi criada a Cédula de Crédito Bancário, exatamente nos mesmos moldes da prática bancária antes rechaçada pela jurisprudência do STJ, de modo a conferir certeza, liquidez e exigibilidade "seja pela soma nela indicada (na Cédula), seja pelo saldo devedor demonstrado em planilha de cálculo, ou nos extratos da conta corrente" (art. 28).

A situação é de vulnerabilidade porque há desproporcionalidade entre os polos da relação jurídica. Ao credor é conferido o poder unilateral de dizer o quanto devido, e dado o rito executivo, o consumidor terá dificuldades de se opor ao valor unilateralmente fixado, ficando sob a ameaça iminente de ter seus bens penhorados.

Mutatis mutandi, é como se o consumidor desse ao credor um cheque em branco, e este apontará o quanto se deve, e expropriá-lo-á seus bens enquanto não satisfazer tal quantia.

II – Abusividade do aval prestado por pessoas físicas em CCBs

As CCBs são dotadas de uma particularidade em comparação aos demais títulos de crédito. A lei (artigo 32) cria a possibilidade de que seja firmada a garantia, real ou fidejussória, no próprio título. Assim, normalmente, em casos de contas abertas por pessoas jurídicas, os sócios tornam-se avalistas deste título.

E sendo aval, e não fiança, haja vista tratar-se de título de crédito, o avalista não possui benefício de ordem. Logo, não impede, portanto, que o credor execute o avalista diretamente pelos valores firmados na CCB. E, por se tratar de movimentações bancária de pessoa jurídica empresária (na maioria dos casos), os valores instrumentalizados pela CCB são vultosos, além das condições econômicas de uma pessoa física comum.

Sendo negócio jurídico, o aval se ampara na autonomia da vontade, porém esta encontra limites na boa-fé, proporcionalidade, razoabilidade que se emergem na teoria dos contratos. Vemos, na prática, um comportamento abusivo dos bancos-credores ao não verificar previamente condições de solubilidade do crédito pelas pessoas físicas garantes.

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Como dito, alhures, incidindo ainda o CDC, os credores vulneram também a responsabilidade deles de informar sobre os riscos do negócio celebrado, comportando-se de modo a causar possível superendividamento[3] dos sócios-garantidores. Nesse ratio entendeu a jurisprudência fluminense:

Apelação cível. Direito civil e do consumidor. Responsabilidade civil. Danos morais. Cliente de banco que, movido por inexperiência, desempregado, de baixa classe social e reduzido poder aquisitivo, faz uso de elevado crédito, inexplicavelmente disponibilizado por banco, em flagrante lesão. Obrigações contraídas se evidenciam desproporcionais ao seu próprio proveito, passando os anos seguintes a celebrar novações e dilapidando o patrimônio da família para fazer frente à obrigação assumida, que alcança três vezes o valor original, em lucro exorbitante para o credor (art.157 do CC). Débitos que eram sempre apresentados de modo a não poderem ser quitados. Negativação do nome do autor no SPC, depois que, contraindo dívidas com outras financeiras para saldar a prestação com o réu, este, debitando os encargos contratuais, faz com que o valor restante se torne insuficiente para o pagamento, quando já havia pago o dobro do montante creditório originariamente contraído. Violação, pelo banco, dos princípios da justiça social (art. 170 da CF), da solidariedade social e da boa-fé', que informam o ordenamento jurídico civil brasileiro. Contrato celebrado com indiscutível lesão ao autor, que, além de inexperiente, não foi informado das condições do crédito. Violação a seus direitos básicos, enquanto consumidor, à informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços e à educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações (art.6. do CDC). Abuso de direito da negativação do nome do autor. Sentença condenatória em danos morais, no valor de 50 salários mínimos, equivalente a R$ 12.000,00, nesta data, que se confirma. Recurso improvido. (TJRJ. Proc. 2003.001.02181. 15ª Câmara Cível. Rel. Des. José Pimentel Marques. 25/06/2003).

Por esta feita, tento ainda a já ressaltada ausência de prévia determinação dos valores executados, notar-se a abusividade do aval prestador pelo sócio na condição de avalista, devendo ser aplicável aqui o Artigo 51 do CDC, o que acarreta em nulidade do negócio celebrado.[4]

Porém, a jurisprudência pátria não parece perfilhada com este entendimento, sendo inclusive majoritária a jurisprudência no sentido de que caso haja falência da pessoa jurídica devedora principal, nada obsta o prosseguimento da execução em face dos sócios avalistas, como se vê:

Agravo de instrumento – Execução por quantia certa – Suspensão da execução com relação à devedora principal, ante o deferimento de sua recuperação judicial – Insurgência por parte dos demais executados, visando à extensão dos efeitos da recuperação judicial – Descabimento – Possibilidade de prosseguimento da execução contra os coobrigados - Inteligência dos arts. 49, § 1º e 59, da Lei 11.101/05 – Entendimento pacificado no e. STJ - Decisão mantida – Recurso desprovido.(TJ-SP - AI: 22035826320188260000 SP 2203582-63.2018.8.26.0000, Relator: Sergio Gomes, Data de Julgamento: 13/11/2018, 37ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 14/11/2018)

 Esse entendimento não parece coadunar com o princípio da proteção ao consumidor (artigo 6º, I do CDC), porque certamente gerará a insolvência de muitas pessoas físicas empresárias no país, o que atenta contra o espírito da ordem econômica e da livre iniciativa.

III - Da prescrição das CCBs

O aqui já mencionado artigo 26 da CCB deixa claro que a natureza jurídica da CCB é de título de crédito. E como tal, segue o regramento da Lei Uniforme de Genebra, como, aliás, dispõe o artigo 29 §1º da Lei das CCBs.

No entanto, a jurisprudência aqui também tem se orientando por linha menos favorável ao consumidor, como nota-se:

“CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO – AÇÃO DE EXECUÇÃO - PRAZO PRESCRICIONAL – TERMO INICIAL - O prazo de prescrição para a pretensão de cobrança da dívida é contado da data de vencimento contratualmente estabelecida, mesmo que, em razão do inadimplemento, possa o credor considerar a dívida vencida antecipadamente - Em se tratando, ademais, de título de crédito impróprio, como é o caso da Cédula de Crédito Bancário, o prazo prescricional a ser observado é o do art. 206, § 5º, I do CC - Preliminar rejeitada (...)” (TJSP, 15ª Câmara de Direito Privado, Apelação n° 1002734-07.2014.8.26.0004, Rel. Des. Luiz Arcuri, j. em 25/06/2015)

A razão do entendimento de que não se aplica o artigo 70 da LUG[5] ao presente caso é de que as CCBs são títulos de crédito impróprios, como vimos acima. Arvora-se esta jurisprudência em critério taxinômico arbitrário e pouco transparente.

Afinal, o que define a impropriedade de um título, a sua criação posterior, o fato de não ser um título clássico, o fato de que sua lei oferta alguns elementos diferentes? Não se tem ao certo a razão desta classificação. O que se sabe, com certeza, é que a Lei das CCBs não define o prazo prescricional, não havendo outra razão que não a incidência da lei que complementa a matéria, a Lei Uniforme de Genebra.

Isto também vai de encontro a proteção ao consumidor, porque este princípio deve ser também entendido como aplicação da lei mais favorável, em inclusivo e socialmente responsável diálogo das fontes, como salienta Cláudia Lima Marques(2009. p.90):

É o chamado ‘diálogo das fontes’, significando a atual aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas, leis especiais (como o CDC, a lei de seguro-saúde) e gerais (como o CC/2002), com campos de aplicação convergentes, mas não mais iguais

E ainda, o artigo 7º do CDC[6] é claro ao definir de que a norma mais favorável é aquela que deve ser aplicada a uma relação de consumo, e no caso em comento, é mais favorável ao consumidor, certamente, que o prazo prescricional das CCB`s seja de 3 (três) anos e não 5 (cinco) anos, como vem entendendo a jurisprudência.

A título conclusivo é necessário dizer que a despeito de ser a CCB um importante instrumento de crédito não Brasil, o uso dela não deve mitigar os princípios constitucionais e legais de proteção ao consumidor, e portanto, é necessário que se promova a superação social (social overuling) de precedentes judiciais que versam sobre a matéria, em respeito ainda a princípio da justiça social que deve orientar a aplicação do direito pelo intérprete-juiz.


Referências:

Brasil, Código de Defesa do Consumidor. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078compilado.htm. Acesso em 09/01/19

____. Lei 10.931 de 2004. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-006/2004/Lei/L10.931.htm Acesso em 09/01/19

MARQUES, Claudia Lima. Manual de direito do consumidor. 2. ed. rev., atual. e ampl. Antonio Herman V. Benjamin, Claudia Lima Marques e Leonardo Roscoe Bessa. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

STJ, REsp 1.291.575 / PR. Reloria Ministro Luis Felipe Salomão. Julgado em 02/09/2013. Disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=29844818&num_registro=201100557801&data=20130902&tipo=91&formato=PDF Acesso em 09/01/19

TJRJ. Proc. 2003.001.02181. 15ª Câmara Cível. Rel. Des. José Pimentel Marques. 25/06/2003

TJ-SP - AI: 22035826320188260000 SP 2203582-63.2018.8.26.0000, Relator: Sergio Gomes, Data de Julgamento: 13/11/2018, 37ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 14/11/2018

___. 15ª Câmara de Direito Privado, Apelação n° 1002734-07.2014.8.26.0004, Rel. Des. Luiz Arcuri, j. em 25/06/2015


[1] Julgado pelo rito do artigo 543-C do CPC/73 em 02.09.2013

[2] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios(...)V - defesa do consumidor;

[3] A incapacidade dos devedores de saldar suas dívidas, é o que chamamos de superendividamento.

[4]  Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que  IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;

[5] Art. 70. Todas as ações contra o aceitante relativas a letras prescrevem em 3 (três) anos a contar do seu vencimento. No mesmo sentido é o artigo 206, § 3º, VIII do CC/02.

[6] Art. 7° Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e eqüidade.

Sobre o autor
Pedro Henrique Corrêa Guimarães

Professor e advogado. Doutorando em Direto Agrário pela UFG.Atualmente realizando doutoramento sanduíche pela Bishop´s University – Canadá.︎

Informações sobre o texto

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