1 INTRODUÇÃO
Em meio a uma sociedade reconhecidamente “de risco”, a atividade médica tm sido desafiada pela conquista (ou retomada) da autonomia dos pacientes e por sua busca por informações claras e que lhe permitam decidir precisamente sobre as intervenções a serem feitas sobre seus próprios corpos. Esse debate, no campo do direito civil, toca especialmente à questão da atuação médica e seus deveres para com o paciente, o qual, em algumas situações, pode vir a preterir opiniões do profissional em razão de sua busca por controle sobre si mesmo.
Assim, instala-se uma discussão sobre se os limites dos contratos celebrados entre médico obstetra e a paciente tomará forma a partir de debates clássicos do direito civil e acabarão nas “obscuridades” principiológicas da autonomia e da dignidade humana, essenciais, no entanto, para a determinação de certas obrigações por parte do profissional liberal médico.
O propósito da discussão, portanto, adentrará no campo da responsabilidade civil médica. Para tanto, será necessária uma breve digressão a respeito dos institutos da responsabilidade civil e das obrigações do profissional, que será feita por meio de revisão de literatura da área, bem como tais perspectivas aplicadas ao direito do consumidor, o qual coaduna com as fragilidades próprias em que geralmente se encontram as pacientes.
2 Da repsonsabilidade civil do médico obstetra: responsabilidade subjetiva
A atividade médica, por ter como objetivo manutenção da saúde, bem-estar ou mesmo da vida humana, é revestida pela espera de resultados satisfatórios ou da sensação de que o profissional agiu da forma mais competente possível. Assim, ao mesmo tempo em que o profissional é fiscalizado e cobrado, a relação entre ele e a pessoa paciente supõe o depósito de confiança.
Contudo, a confiança desmedida creditada ao médico foi substituída por uma expectativa pautada em informações na procura por profissional conceituado, estabelecendo-se uma relação impessoal (MAIA, 2011). Dessa forma, a desconfiança crescente, pautada na procura da autodeterminação por parte dos pacientes[1] e da deterioração da relação médico-paciente, especialmente pela publicidade de casos de erro médico (SILVA, 2010), tende a gerar respostas negativas sobre a atuação do profissional da saúde.
A responsabilidade civil do médico, que também é passível de responsabilização penal ou administrativa em certos casos[2], tornou-se remédio jurídico às mazelas dos erros médicos, imperícias, omissões e danos causados por intervenções cirúrgicas, entre outras questões. A contratação de serviços médicos, dessa maneira, é rodeada por cuidados e responsabilidades, especialmente em razão riscos oferecidos pela doença e pela intervenção médica, que são quase sempre difíceis de calcular.
Ainda, no que tangencia a obstetrícia, os riscos e os bens jurídicos tendem a ser mais valorizados porque os processos fisiológicos envolvidos no ciclo gravídico-puerperal podem ser experimentados de forma distinta por cada paciente, de forma que a previsão da conduta médica correta a ser adotada deverá ser estudada de acordo com o caso concreto. Ademais, a peculiaridade desta área é o dever de zelar não por uma vida, mas por pelo menos duas – a do feto e a da gestante, o que por certas vezes pode ensejar conflitos éticos e principiológicos agudos.
Qanto ao restudo da responsabilidade, este instituto do direito civil é de importância primordial para a manutenção de um sistema de justiça básico, pelo qual os danos sofridos serão, via de regra, reparados por quem ou o que tem o dever legal ou contratual de repará-lo. No que diz respeito à atividade do obstetra, como visto, a análise se sua responsabilidade será dada a partir da maneira com que cumpriu ou deixou de cumprir a obrigação de meio.
Em vista dos deveres de diligência que tem o médico, a maior parte da doutrina não duvida ser sua responsabilidade, portanto, subjetiva, afinal o médico não tem pode ter controle sobre os riscos; assim, em regra, a obrigação de meio pressupõe a responsabilidade subjetiva. Nesse sentido, a fim de justificar tal imposição, é pertinente apresentar a outra versão sobre imputação da responsabilidade civil, qual seja a responsabilidade objetiva[3].
No que diz respeito à culpa em sentido estrito, esta implica no descumprimento de dever, contudo sem tal intenção, diferentemente do que ocorre com o dolo. Sendo assim, essa modalidade é relacionada aos casos de imperícia, imprudência e negligência por parte do autor do dano. Ademais, quanto à origem, esta pode ser contratual ou extracontratual, caso em que o dever descumprido e de origem legal (TARTUCE, 2016).
A partir desse raciocínio, então, é possível concluir que à responsabilização objetiva é irrelevante se o contrato, por exemplo, previu ou não as obrigações do agente, tampouco se este agiu conforme seu dever legal. Assim, não se trata de presunção da culpa, mas apenas de sua desconsideração (FARIAS, et al., 2015). A responsabilidade subjetiva, ao contrário, considerará o dano. Assim, abarcará os casos de culpa em sentido estrito, quando o agente não tem a intenção de descumprir contrato ou lei, e os de dolo, quando o sujeito age com intenção de provocar o dano.
Nesse sentido, o Código de Defesa do Consumidor preceitua a responsabilidade subjetiva do profissional liberal[4], como é entendido o profissional médico. Contudo, tal benefício não é estendido à empresa ou pessoa jurídica vinculada ao médico; por isso, é comum encontrar decisões jurisprudenciais em que se verifica a responsabilidade subjetiva do médico, enquanto a responsabilidade do hospital é objetiva[5].
A responsabilidade subjetiva, embora seja positiva ao médico no sentido que este não responderá civilmente por resultados alheios à sua conduta, é criticada por alguns porque implicaria em certa limitação à inovação por parte do profissional, que ficaria relutante em aplicar novas soluções ou tratamentos por receio de descumprir seu dever de diligência, e dessa forma ser responsabilizado judicialmente por eventuais problemas; este problema é denominado de exercício defensivo da medicina (CINTRA, 2012).
Destarte, muito se discute a respeito da vulnerabilidade do paciente em face da figura médica, a qual tem o dever de prestar esclarecimentos sobre sua atuação. Assim, enquanto a teoria e a jurisprudência não ultrapassarem as classificações entre obrigações de meio e de resultado, e entre responsabilidade civil objetiva e subjetiva, não parece razoável a adoção de outros critérios, que não a culpa[6], para determinar a responsabilização do profissional.
A respeito da determinação da culpa, vale ressaltar que, conforme o Código Civil vigente, o ônus da prova é de quem alega ter sofrido o dano. Assim, na prática, ocorre que o paciente que sofreu o dano arca com a pesquisa e reunião de provas contra a parte contratada, bem como cobre gastos com exames, perícias e consultas feitas a outros profissionais.
Em vista, pois, da relação desigual entre contratado e contratante, o Código do Consumidor apresentou soluções mãos vantajosas à pessoa que contrata com profissional liberal. De tal forma, a relação estabelecida ente médico e paciente passou a ser regida também pelo Código do Consumidor.
A nova perspectiva sobre a responsabilidade do médico, então, implica na absorção de deveres e direitos consagrados pelo Código do Consumidor no interior da relação médico-paciente. Sobre essa absorção de regras legais pelo contrato, Calado (2014) entende que a situação de vulnerabilidade jurídica[7] do consumidor, decorrente do princípio da confiança própria da relação de consumo, é aplicada ao paciente, que além dessa condição, geralmente se encontra em situação de vulnerabilidade fática, em que sua saúde está debilitada.
No caso da gestante, da parturiente ou da puérpera, tanto o desconhecimento sobre as intervenções mais atualizadas e corretas, quanto condições fisiológicas ou provocadas que lhe tiram a possibilidade de exercer sua autonomia agravam o quadro de submissão da paciente aos infortúnios de uma atenção à saúde inadequada, problema cada vez mais grave no Brasil, mesmo no setor privado.
A respeito da autonomia e do consentimento, Calado (2014) entende que o dever da transparência, também próprio da relação de consumo, aplica-se ao caso da saúde como uma espécie de reforço sobre a atuação do médico. Portanto, para o autor
(...) é essencial que o médico assuma um novo papel nessa relação, (...) deixando de exercer uma postura paternalista, compartilhando as informações e decisões com o paciente, respeitando-o enquanto pessoa, pois só assim estará o mesmo cumprindo seus deveres, despontando assim o dever de informar com um pilar para a consecução desse desiderato (CALADO, 2014, pp. 114-115).
No mesmo sentido, Vasconcelos (2011) observa que seu pressuposto, a informação, é obrigatória não só à atividade médica, como esperado, mas também pelo Código do Consumidor, em especial o artigo 6º, inciso III[8]. O consentimento, ademais, é expressão da autonomia da pessoa, essencial à preservação de sua dignidade, razão pela qual essa questão será tratada a seguir sob a perspectiva da responsabilização do profissional.
3 Limites às obrigações contratuais: um debate sobre autonomia
A superação do paradigma privatista puro, pelo qual o contrato seria baseado em suma na autonomia privada das partes, foi dado a partir da percepção do contrato como fonte normativa inferior às outras, como leis, decretos, e a Constituição.
Nessa linha, é claro que os contratos que versam sobre objetos ilícitos serão anulados, enquanto que, como no caso da obstetrícia, os deveres legais da profissão deverão ser observados. Contudo, há situações em que não há definição clara sobre o que seria o exercício da autonomia autorizado, ou de uma autonomia que ultrapassa ditames legais ou mesmo atentatórios contra a vida, a integridade física ou a dignidade humana.
A sobreposição de direitos sobre outros, entretanto, é tarefa hermenêutica das mais difíceis e que exige a resolução antinomias entre princípios. Portanto, nem sempre é claro o que é o exercício da autonomia e o que é sua privação, tampouco o que a dignidade humana impõe como “constrangimento” ou como “empoderamento” (HANNETTE-VAUCHEZ, 2008, p.4).
A respeito, Tartuce (2016) vota por uma concepção de dignidade humana limitadora da disposição sobre direitos, como os da personalidade, principalmente. Assim, o autor entende que não se pode olvidar a função social do contrato e tal princípio constitucional, devendo estes prevalecer sobre a autonomia privada.
De maneira similar, Farias, Rosenvald e Braga Netto (2015) valorizam os direitos da personalidade quando entendem que, embora o sistema jurídico os tenha revestido de consequências econômicas (como, por exemplo, a cessão de direitos de imagem ou voz), não houve a patrimonialização, motivo pelo qual, por exemplo, não haveriam efeitos econômicos na ortotanásia de paciente em condição terminal.
O caso do suicídio, inclusive, pode ilustrar perfeitamente o debate travado aqui. É sabido que a retirada da própria vida não é punível (mesmo porque a pena seria impossível em caso da consumação, e inviável no caso de tentativa); logo, infere-se que o ordenamento jurídico não proíbe o suicídio. Contudo, ninguém pode valer-se da ajuda de outra pessoa para cometer o ato, pois isto configuraria crime, motivo pelo qual a eutanásia é proibida no Brasil.
A autonomia de alguém, embora autorizada legalmente, quando depende do auxílio de outra pessoa, pode ser limitada porque esta não tem autorização legal para tanto, inviabilizando o objetivo da outra.
Nesses termos, os fatores internos do contrato, como as obrigações estabelecidas, e os externos a ele, como as normas legais, definirão os espaços de individualidade do paciente. Esse conjunto, por sua vez, implicará na responsabilidade do médico sobre os procedimentos acordados.
A título de exemplo, a doação de tecidos e órgãos, dentro de certas condições[9], é legalmente autorizada (norma legal) e é feita por meio de cirurgia, um sito de serviço médico, que impõe certos deveres (obrigações estabelecidas), mas somente será feita se o paciente assim concordar (autonomia que, mais do que contratual, é de caráter legal); nesses termos, cometerá ilícito penal e civil, porque provoca dano, quem realiza a operação sobre alguém que não a autorizou.
Há casos, portanto, em que as obrigações contratuais não podem ser executadas por serem ilícitas; mas há casos em que existem conflitos entre normas contratuais ou extracontratuais, que envolverão invariavelmente deveres legais e éticos, os quais deverão ser resolvidos para que se defina que objetos contratuais podem ser executados, que obrigações são válidas, e quais são as responsabilidades do profissional.
4 AS CESARIANAS NÃO INDICADAS E A PEDIDO
Um dos procedimentos obstétricos mais comuns hoje é a cirurgia cesariana, que embora tenha taxa de indicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) de 15%, alcança os 85%, entre os setores público e privado, no Brasil. O que parece ser um avanço tecnológico, no entanto, apresenta-se como um problema grave, uma vez que, conforme o mesmo Órgão, as cesarianas sem indicação não estão relacionadas à queda das taxas de mortes materna e neonatal, podendo, ademais, representar elevação de riscos[10].
A superação dos riscos de um parto normal nas mesmas circunstâncias é uma questão controversa no campo da Medicina, porque enquanto alguns defendem a autonomia da paciente para escolher esse tipo de procedimento, outros estudiosos entendem tratar-se de questão mais sociológica que médica propriamente dita. Sob esse prisma, as condições ruins de atenção ao parto natural, o medo da dor e a associação entre parto cirúrgico a certo padrão de vida mais elevado seriam fatores consideráveis sobre a escolha da paciente (BÉHAGUE; VICTORA; BARROS, 2001).
Sob o ponto de vista do contrato consumerista, neste caso o obstetra deve cumprir seu dever de informar sobre os riscos; a partir disto tem-se que os pressupostos contratuais da autonomia privada da paciente e do dever de o profissional médico agir com diligência são contrapostas. Logo, antes de se admitir de se discutir de uma paciente pode ou não dispor sobre sua integridade física, deve-se observar que os riscos lhe foram informador pelo profissional.
Seria interessante apresentar, neste ponto, decisões jurisprudenciais a respeito do dever de informar, mas trata-se de tema que poucas vezes chega à juízo, posto que a cirurgia cesariana com poucas restrições tornou-se bem aceita entre boa parte da comunidade médica e, principalmente, pelas pacientes que têm condições de arcar com seus consequências, sejam físicas ou financeiras. Assim, quando ocorrem complicações, é comum que a ação judicial se dê no sentido de reparar o dano, sendo a falta de informações prestadas uma questão secundária.
Noutro giro, embora a possibilidade de escolha por procedimento nocivo, quando a paciente é devidamente informada, não pareça razoável, admitir que isto nunca acontece seria supor que os casos excedentes de cesarianas no Brasil seriam fruto de omissões ou dissimulação de informações por parte dos médicos.
Não se pode olvidar, entretanto, que em certos casos há a assunção cega de riscos pela gestante, não informada sobre os problemas que pode enfrentar. Por isso, a partir da ideia de que as pacientes geralmente entendem melhor sobre seus próprios interesses – que ultrapassam necessidades médicas, entrando na seara de seus valores, tolerância ao risco e à dor – melhor que os profissionais de saúde com quem tem contato, eventualmente (FLANINGNAN, 2015), e abandonando algumas concepções paternalistas sobre a Medicina, objetiva-se que a paciente tenha ao seu alcance as informações mais apuradas o possível para que possa decidir sobre os procedimentos a serem realizados sobre o seu corpo.
Excluindo-se tal aspecto, resta discutir a hipótese do consentimento informado. A propósito, a escolha da paciente sobre os riscos a sua própria saúde, a princípio, é válida, afinal uma das facetas da dignidade é a autonomia. A respeito da escolha da paciente sobre procedimento que pode ser prejudicial, Flanignan (2015) entende que mesmo que não seja correto, do ponto de vista moral, que a gestante assuma escolhas arriscadas para o parto, é um direito seu fazê-lo.
No Brasil, porém, vigora a premissa da garantia de direitos desde a concepção, até a morte natural razão pela qual o aborto – embora existam algumas ressalvas, quando a saúde sentimental (em caso de estupro) ou a vida da mulher é ameaçada – e a eutanásia são proibidas, por exemplo. Em razão disso, é de se esperar que sejam postos limites ao poder de decisão da paciente.
Retornando à questão sobre a licitude da decisão da gestante que concorda com o aumento dos riscos sobre o parto, a chave talvez esteja na ponderação entre os deveres legais do médico e da autonomia da paciente. Assim, cabe ao profissional esclarecer à paciente sobre os riscos possíveis, de forma que a ele sejam dadas condições de decidir livremente.
A questão levantada aqui, então, é se o acordo livre e esclarecido entre médico e paciente, no caso das cesarianas sem indicação médica, pode ser feito normalmente, se nesse caso, a responsabilidade civil do médico por possíveis problemas seria dirimida.
Em primeiro plano, seria preciso verificar a gravidade dos riscos assumidos. Nesta senda, a responsabilidade civil do profissional poderia ser moldada conforme a escolha feita por sua paciente, conquanto dentro da esfera da legalidade e da legitimidade. Nesse sentido, é questionável que um procedimento dispensável e não recomendado possa ser aplicado. Por outro lado, porém, também parece absurda a ideia de submeter alguém a um parto normal contra sua vontade[11].
Ademais, a ciência dos riscos por parte da paciente talvez não cause a flexibilização das obrigações médicas, posto que o profissional, naturalmente, deve usar dos meios mais diligentes para alcançar o objetivo da paciente; portanto, suas obrigações seriam a de proceder da forma mais diligente possível sobre os riscos sabidamente aumentados. O que ocorreria, então, seria a elevação da cobrança sobre a diligência médica, e não a atribuição total da elevação dos riscos ao profissional.
Sobre esses aspectos, entretanto, ainda não há entendimentos doutrinários pacíficos sobre a responsabilidade civil médica no caso das cesarianas a pedido. Todavia, é claro que ninguém pode ser submetido a qualquer tratamento contra sua vontade, a menos que haja iminente perigo de vida, segundo disposição do Código Penal, no artigo 146. Contudo trata-se de regra do Direito Penal, que talvez não alcance as vicissitudes da responsabilidade civil, mas que aponta entendimento diferenciado no ordenamento jurídico brasileiro e pode ser condizente com a perspectiva atual do diálogo entre fontes e da permeabilidade dos contratos privados.
A responsabilidade civil médica nos casos de cesariana a pedido, portanto, dificilmente seria total sobre possíveis danos quando a paciente estivesse ciente dos riscos. Deixa-se claro, porém, não se tratar de uma escusa sobre a responsabilidade, mas sobre ponderação de obrigações assumidas, uma vez que é direito da paciente ter sua autonomia respeitada, e para tanto, é necessário que um médico proceda com as intervenções desejadas.
Assim, uma vez que ambos tivessem ciência dos riscos reais, informados a partir de fontes confiáveis, porém não demasiados, pareceria incoerente a responsabilização do médico por imperícia, negligência ou imprudência, caso seus esforços para superar os riscos tenham sido empregados.
5 CONCLUSÕES
Como visto, a delimitação dos deveres do médico perpassa a observância de deveres legais, éticos, bioéticos e, ainda sobre a autonomia do paciente. Assim, especialmente no campo da obstetrícia, o debate torna-se complexo em decorrência da importância dada a alguns preceitos, como o consentimento informado e a disposição sobre o próprio corpo, limitada pela existência do feto, por exemplo.
No que diz respeito à discussão sobre a cesariana a pedido, a princípio adotou-se o posicionamento de que a responsabilidade civil do médico deveria ser analisada somente sobre o prisma das diligências empregadas, e não da assunção do risco, no caso de consentimento livre e esclarecido da cliente, que tem o direito constitucional à autonomia.
Não se pode olvidar, porém, que escolha da paciente, contudo, ultrapassa os limites jurídicos e adenta a discussões psicológicas e sociológicas, que remontam aos paradigmas da medicalização do corpo feminino e da crença na autoridade médica, entre outras. Nesse sentido, caberia a discussão da autonomia livre da paciente sobre essas influências, o que, contudo, fugiria aos debates deste trabalho.
Mas o alerta a ser feito é quanto à defesa da autonomia da mulher em benefício único dos profissionais que preferem realizar um parto cirúrgico a assistir a um parto por via baixa, por comodismo[12]. Portanto, o ponto principal que permite diferir entre uma cesariana proposta a uma imposta deve ser o consentimento informado da paciente.
Conclui-se que, embora o contrato estabeleça obrigações próprias à relação médico-paciente, há preceitos legais que deve ser respeitados na prestação do serviço médico. A problemática se encontra, porém, na indefinição a respeito dos bens jurídicos mais importantes ao ordenamento jurídico, o que pode trazer certa instabilidade aos contratos privados, que não estão imunes às discussões de ordens principiológicas e constitucionais.
O debate sobre a permissão ou não da assunção de maiores riscos durante o parto, por parte da gestante, embora seja de grande relevância ao instituto da responsabilidade civil do obstetra, é questão que se distancia das discussões clássicas do Direito Civil. Por isso, não seria arriscado afirmar que a definição das obrigações e responsabilidades civis do profissional médico não é capaz de abarcar as situações mais complicadas da atividade, não obstante estas sejam comuns e frequentes, como é o nascimento humano.
REFERÊNCIAS
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