2 DA BANALIZAÇÃO DAS PRISÕES CAUTELARES
Apesar de o direito processual brasileiro ter passado por reformas e tentativas de se racionalizar o uso das prisões cautelares, temos hoje um contexto de desmedida banalização em seu uso pelos operadores do direito e pela sociedade como um todo. A restrição da liberdade está sendo usada como o primeiro recurso em vez de o último, como exigido pelas normas internacionais de direitos humanos.
Tornou-se comum a prática de primeiro se prender e só depois buscar o suporte probatório legitimador dessa medida. Segundo Aury Lopes Jr. (2012, p.30) “está consagrado o absurdo primado das hipóteses sobre os fatos, pois prende-se para investigar, quando, na verdade, primeiro deveria investigar, diligenciar, e somente após prender, uma vez que suficientemente demonstrados o fumus commissi delicti e o periculum libertatis.”
Apesar da existência de normas como a lei 12.403/2011, as prisões cautelares são constantemente utilizadas como medidas de urgência, para atender a opinião pública, com a ilusão de justiça imediata. Prevalece o discurso que somente será punido aquele que estiver preso preventivamente, passando-se a falsa impressão de que há ineficiência da justiça se o agente ficar solto.
A HumanRightWatch cita situação ocorrida em 2014, mostrando que nada havia mudado com o percorrer dos anos e após, a introdução da lei 12.403/2011, conforme corrobora o seguinte trecho:
C.V., por exemplo, passou mais de dois meses na prisão sob a suspeita de ter comprado uma motocicleta roubada, embora não tivesse qualquer condenação anterior e o crime a ele imputado não preveja pena de prisão em caso de condenação. Quando ele foi preso, o delegado de polícia estabeleceu uma fiança de 724 reais, a qual C.V não foi capaz de pagar, de acordo com o processo. A Defensoria Pública fez uma petição em favor de sua liberação e ele foi colocado em liberdade provisória. Sua permanência na prisão por mais de dois meses custou aos contribuintes cerca de 5 mil reais (HRW, 2015).
Esse panorama torna necessário repensar a lógica existente na sociedade, onde de pronto se presumem culpados supostos criminosos, não se priorizando o processo e a presunção de inocência, e dando como solução comum àqueles a permanência atrás das grades.
Na verdade, o uso da prisão cautelar em excesso, com pessoas que legalmente não deveriam estar presas, colabora para a superlotação carcerária, para a falta de separação efetiva entre presos condenados e detidos preventivamente, e pela busca excessiva por sentenças condenatórias.
As prisões, que deveriam servir para ajudar a conter os crimes violentos, com a superlotação possibilitam o crescimento das facções criminosas e da violência, tanto dentro de seus próprios muros quanto fora. Isso porque presos provisórios são rotineiramente postos na companhia de criminosos condenados, e esperam meses em prisões superlotadas, sob intensa pressão para se juntarem a facções criminosas, antes de serem levados à presença de um juiz pela primeira vez.
Atualmente, pode-se afirmar que no Brasil alguns magistrados prendem um grande número de pessoas que são acusadas de cometerem pequenos delitos, como pequenos furtos, concluindo que a privação de liberdade é imposta mesmo em situações em que a infração é considerada leve, o que leva a sérias preocupações no que tange à aplicação do princípio da proporcionalidade cautelar.
Outro fator que operou como multiplicador carcerário foi a Lei de Drogas (11.343/2011), implantada em 2006. Sem estabelecer critérios exatos para definir quem é usuário de droga e quem é traficante, a medida deu aval às autoridades para que prendessem qualquer suspeito, o que dá margem ao fenômeno da seletividade (BARATTA, 1993).
Desde o início de sua aplicação, o número de pessoas presas com base na nova norma cresceu 320%. Segundo dados de 2013 do Ministério da Justiça (DEPEN, 2016), 42% das mulheres e 24% dos homens encarcerados respondem a crimes relacionados às drogas. Antes de sua aprovação, esses indicies eram, respectivamente, de 24,7% e 10,3%. Ao contrário do que possa parecer, esse aumento não demonstra a eficiência da lei, mas, ao contrário, o aprofundamento da penalização de jovens negros e pobres das periferias. Isso acontece porque a lei 2006 não estabelece a quantidade de drogas que diferenciaria traficantes e usuários. O julgamento fica sob responsabilidade da polícia no momento da abordagem, notoriamente desiguais no tratamento de negros e brancos, pobres e ricos.
Todos esses dados reforçam a necessidade de mudanças legislativas que prevejam mecanismos para se restringir o uso banal das prisões cautelares, e que respeitem a normativa internacional sobre o tema.
As reformas pontuais ocorridas não foram suficientes para resolver o problema crônico de encarceramento em massa no Brasil, seja porque houve sua desnaturalização ou falta de uso pelos operadores do direito, tal qual a lei 12.403/11, seja porque outras leis extremamente encarceradoras advieram sem o devido estudo sobre seu impacto no sistema prisional, como a lei 11.343/11, ou seja por qualquer outro motivo explicitado, mais deve ser feito, e a implantação da audiência de custódia provavelmente foi um ótimo começo.
3 AVANÇOS TRAZIDOS COM O IMPLEMENTO DAS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA
3.1 ECONOMIA DE RECURSOS PÚBLICOS
O sistema prisional é uma estrutura cara em todo o mundo, que se torna ainda mais custosa em países pouco desenvolvidos, como o Brasil, onde os recursos financeiros são priorizados para áreas ligadas diretamente ao crescimento econômico, como educação e infraestrutura, além de outros setores prioritários, como a saúde.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a média nacional de custo por preso é de R$ 2.400,00 (dois mil e quatrocentos reais). Os custos refletem gastos com sistema de segurança, contratação de agentes penitenciários e outros funcionários, serviços como alimentação e compra de vestuário, assistência médica e jurídica, entre outros.
É preciso lembrar que os custos do sistema penitenciário não levam em conta somente o gasto diretamente com a manutenção dos presos, mas também o custo referente às construções de novas unidades.
Com aproximadamente 726 mil presos, o Brasil é o terceiro país do mundo que mais encarcera pessoas. Nesse universo, 40% dos detentos (290 mil) são presos provisórios, ou seja, aqueles que ainda não receberam a condenação definitiva.
Considerando que cada preso custa, por ano, aproximadamente 28 mil reais ao Estado, o sistema penitenciário brasileiro consome 21.6 bilhões de reais todos os anos.
Os estados que já implementaram a audiência de custódia verificaram que 50% das prisões preventivas são desnecessárias. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estima que a redução pela metade do número de pessoas presas antes de terem sido condenadas gerará uma economia anual de 4,3 bilhões de reais. Além disso, ao deixar de prender 120 mil dessas pessoas, evita-se a construção de 240 presídios, o que representa uma economia de 9,6 bilhões de reais.
Com essas informações, compreende-se que a implementação das audiências de custódia conduzirá à redução da superlotação carcerária, além de implicar diminuição considerável dos gastos com a custódia cautelar.
3.2 DOS MAUS TRATOS E TORTURA NO MOMENTO DA PRISÃO
A questão da violência policial continua sendo um dos principais temas que despertam medo e pavor entre a população das grandes cidades brasileiras em geral. Em salvador, por exemplo, a atuação arbitrária das forças policiais, como vem sendo constantemente relatado pelo jornais, demonstra como estamos ainda engatinhando na luta pela Cidadania e pelo respeito aos Direitos Humanos.
Pode-se dizer que os brasileiros vivem num país com leis consideradas avançadas do ponto de vista político e jurídico, o que pode ser usado como uma grande estratégia para se alcançar a cidadania. No entanto, estão mais do que nunca convencidos de que as leis só cumprirão o seu papel fundamental à medida que forem verdadeiramente utilizadas como meio de garantia de direitos.
A lei nº 4.898/65 trata do abuso de autoridade (ou do poder) cometidos por agentes públicos. Conforme o artigo 5º dessa lei, autoridade será qualquer pessoa que exerça cargo, emprego ou função pública, de natureza civil ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração.
“Abuso” será qualquer atentado aos direitos e garantias individuais realizado sem estar de acordo com a legislação, seja pelo excesso praticado em uma ação, ou pelos meios empregados. Assim, a condução de preso em flagrante algemado não configurará, em princípio, o abuso. Ocorrerá, entretanto, se o preso vier amarrado pelo pescoço, ou atado a outros pela cintura com o objetivo de reduzi-los a condição semelhante a de animais.
Ainda, a “revista” procedida por policiais ao entrar-se em presídios ou cadeias públicas, se realizadas com toque em partes íntimas ou com o objetivo de constrager a vítima, são abusivas. Também o espancamento, a humilhação e a prisão sem justa causa configuram abusos, carecendo da aplicação dos meios jurídicos adequados.
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LXI, determina que ninguém será preso a não ser que tenha sido em flagrante delito ou exista uma ordem escrita e fundamentada emitida pelo Juiz competente determinando a prisão daquela pessoa, ou seja, exceto nos casos de flagrante (estar cometendo um delito, ter acabado de cometê-lo ou ser pego com o objeto do crime, dando a entender ser o autor) deverá ser exibido um mandado de prisão assinado pelo Juiz, em que conste a identificação da pessoa que está prestes a ser detida, e o motivo da prisão.
Se a prisão ocorrer fora dessas circunstâncias, estará havendo ilegalidade, como na chamada “prisão para averiguação”.
Em uma sociedade como a brasileira, cujo Estado cultiva a violência, em que se tem uma longa tradição de tortura pelas forças de segurança, é fundamental que o instrumento audiência de custódia seja efetivamente utilizado.
Com apenas um ano de funcionamento, o programa audiência de custódia registrou 4,6 mil denúncias de tortura e maus tratos a pessoas presas em todo o país (CNJ, p. 200).
De acordo com os relatos de presos durante as audiências de custódia, os episódios que envolvem violência policial geralmente ocorrem entre o momento da prisão e a apresentação do preso a um juiz. Esse e outros dados do primeiro ano do programa do CNJ foram expostos pelo Presidente do Conselho e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Ricardo Lewandowski (CNJ, p. 200).
Diante desta realidade, nota-se a importância de respeitar o tempo máximo estabelecido para apresentação do preso à autoridade judicial, qual seja, o prazo de 24 horas, de modo que fica mais fácil a investigação dos responsáveis pela violência.