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Resumo crítico à teoria finalista da conduta e seus reflexos processuais

Agenda 19/02/2019 às 14:48

O que se pretende é focar nas críticas ao finalismo, principalmente nas realizadas por Winfried Hassemer em a “História das Ideias Penais na Alemanha do Pós-Guerra”, arrematando com as dificuldades processuais acarretadas.

1.     Resumo

O presente artigo não tem a pretensão de esgotar o tema, tarefa impossível em poucas páginas. Pelo contrário, tem como escopo gerar dúvidas e questionamentos. Para tanto, o que se pretende é focar nas críticas ao finalismo, principalmente nas realizadas por Winfried Hassemer em a “História das Ideias Penais na Alemanha do Pós-Guerra”, arrematando com as dificuldades processuais acarretadas pela adoção da teoria finalista quando abordamos a conduta no Direito Penal. Oportuno destacar que as críticas por ele apresentadas são formuladas no contexto do Pós Segunda Guerra Mundial na Alemanha.

2.     Crítica ao Finalismo

Hassemer, filósofo e juiz do Tribunal Constitucional Federal Alemão, foi um crítico do Direito Penal. Como todos os expoentes da Escola de Frankfurt[1], possui base marxista. Importante frisar que ele se insere em sua segunda fase, cujo Direito passa a ter função primordial, capaz de modificar e aprimorar a sociedade. Assim, há um rompimento com o conceito de ideologia de Karl Marx, no qual o Direito era um instrumento para camuflar a relação de dominação da burguesia à classe operária.

Começa a crítica afirmando que a ideia de reforma no Direito Penal Alemão seria de uma reconstrução, abraçando os ideais jusnaturalistas propagados pelo mundo no pós-guerra. Isso aconteceu devido às atrocidades cometidas durante esse tenebroso período e, por consequência, uma reformulação do ordenamento jurídico era necessária para se adequar aos novos tempos. Há uma manifestação global pelos direitos da pessoa, resgatando a visão do ser humano como detentor de garantias fundamentais pelo simples fato de existir. Valoriza-se a vida humana, independentemente da origem, classe social, religião ou etnia. Assim, por pressões externas e internas, a Alemanha alterou drasticamente o seu diploma legal para se adequar ao novo modelo constitucional que se irradiava pelo novo mundo, aqui no Brasil denominado Neoconstitucionalismo.

Como houve uma renovação do direito objetivo[2], o Direito Penal também foi reestruturado. Desta feita, a teoria do crime é reanalisada adotando-se o finalismo para solucionar os problemas neste ramo. Ocorre que Hans Welzel, idealizador da teoria finalista da conduta, a desenvolveu na década de 30, momento em que o partido nazista ganhava destaque.

Por essa razão, Hassemer teceu contundentes críticas ao novo modelo adotado. Isto porque a intenção da reforma seria enterrar os ideais nazistas no passado, mas na verdade resgatou uma teoria desenvolvida durante sua hegemonia. Esse fato, salienta-se, é o primeiro ponto de destaque:

Evidentemente, a teoria finalista da ação (assim como na verdade toda a Dogmática penal dos inícios da República Federal da Alemanha, mas aqui mais acentuadamente) tem muito a ver com o ideário nazista. Isto é bastante compreensível, já que as bases desta teoria remontam aos anos de 30 e também ela sofreu os influxos ideológicos do tempo em que se desenvolveu. Ainda que esteja totalmente excluído que a teoria finalista da ação tenha estimulado o nazismo ou engrossado o coro das escolas antiliberais da era nazista, resta incontroverso que a acepção pessoal de ação e de antijuridicidade, como cerne do pensamento penal finalístico, encontrava um correspondente contemporâneo, se bem que distorcido, no ‘Direito Penal da vontade’ elaborado pelo pensamento penal nazista.[3]

Como se nota, o autor faz a ressalva que o finalismo não incentivou ou foi o motivo que desencadeou as ideias nazistas, mas uma teoria desenvolvida durante esse período é facilmente manipulável para se ajustar as necessidades da época.

Quanto à estrutura do delito, Welzel retira o dolo e a culpa do último substrato do crime (culpabilidade[4]) e os aloca no fato típico. Este, por sua vez, dividido em quatro elementos: conduta, onde dolo e culpa são inseridos; resultado; nexo causal e tipicidade. Essa restruturação promove grandes alterações na teoria do crime. Para o presente trabalho, interessante apenas o conceito de conduta e sua teoria explicativa.

Para compreender o tema, é necessário abordar duas teorias anteriores. Oportuno indicar que os elementos do fato típico são os mesmos, sendo as diferenças a seguir apontadas.

Na teoria causal da conduta o dolo e a culpa se situam na culpabilidade como espécies. Desse modo, é possível existir fato típico sem o elemento subjetivo, ou seja; é neutro, não valorado. A conduta é conceituada como ação humana voluntária causadora de modificação no mundo exterior. Já na teoria neokantista, que remonta e se baseia nos ideais da razão e dos valores de Immanuel Kant, o dolo e a culpa permanecem na culpabilidade, porém como um de seus pressupostos. Nela, a conduta possui a mesma definição, substituindo-se, apenas, a palavra “ação” por “conduta”, abrangendo assim os crimes omissivos.

 Por sua vez, na teoria finalista, o dolo e a culpa, como já dito, migram da culpabilidade para compor o primeiro elemento do fato típico (conduta). Dessa forma, há uma redefinição do conceito de conduta: comportamento voluntário, psiquicamente dirigido a um fim ilícito (conceito inicial). No entanto, há crimes em que o comportamento não é dirigido a um fim ilícito (crimes culposos). Portanto, o conceito passou a ser o de comportamento voluntário, psiquicamente dirigido a um fim.

Como se percebe, a intenção do agente passa a estar no momento da conduta, o que transmite uma maior preocupação com a ação ou omissão praticada e não mais com o resultado alcançado. Ressalta-se que nas duas teorias iniciais (natural/causal e neokantista) exigia-se uma modificação no mundo exterior (resultado natural), prescindível aqui.

Por ser bastante ajustável e bem estruturado, tanto o Legislativo quanto o Judiciário endossaram o finalismo, que passou a ser utilizado, inicialmente, para proteger os direitos de primeira dimensão. Contudo, percebeu-se que qualquer bem jurídico se encaixava em sua dogmática e a partir daí o Direito Penal foi utilizado para tutelar novos bens da vida sem qualquer critério de política criminal. Isso o desvirtuou, já que conferiu um caráter preventivo de aplicação antecipada frente aos outros ramos do Direito, esquecendo-se do princípio da subsidiariedade, de modo a utilizá-lo como forma de intimidação coletiva por meio de tipos penais imprecisos.

Como consequência, em face da tipificação de condutas de forma mais simples, se aceitou infrações penais formais e de mera conduta. Além disso, bens jurídicos coletivos e difusos foram tutelados pelo ramo do direito que, a rigor, é subsidiário e fragmentário (princípio da ultima ratio). Essa manipulação do Direito Penal se desenvolveu com a estruturação fornecida por Welzel à teoria da conduta, sendo mais concisa e lógica do que as anteriores, fato que agradou os penalistas, sendo logo difundida pelo mundo. Inclusive, é a teoria que prevalece no Brasil, segundo parcela considerável da doutrina.

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Mais do que isso, sua utilização era fundada em ideais e certezas jusnaturalistas, fato que permitiu uma maleabilidade nas escolhas feitas pelo legislador na seleção dos bens jurídicos. Essa argumentação pouco apegada ao ser e dever ser, o que a difere das duas teorias anteriores, alterou o enfoque da estrutura do delito, tornando o finalismo uma teoria bastante convidativa, tendente a angariar muitos adeptos. Tanto é que Hassemer menciona:

O revestimento dos enunciados normativos com certezas jusnaturalistas não sobreviveu apenas como um meio de combater o ilícito sobre a forma de lei, tornou-se também uma armadura poderosa. Quem conseguisse entrar em campo com esta armadura tinha pouco a temer no tocante à controvérsia e podia contar que suas afirmações não seriam (tão depressa) desmentidas pelo mutável espírito da época.  O distanciamento da historicidade e de condicionantes de tempo e espaço é uma marca específica e tradicional da fundamentação jusnaturalista de normas.

A concentração em argumentações normativas e o revestimento jusnaturalista dos enunciados certamente não foram uma especificidade apenas da discussão penal que se seguiu imediatamente a 1945. As mesmas características estiveram presentes também na discussão penal da etapa subsequente, quando a criminalidade nazista já deixou de ser seu tema ou tarefa principal. Esta etapa teve uma outra coloração. Ela alcançou, segundo alguns, o clímax do requinte e refinamento dogmático-penal, que, no plano teórico, culminou na teoria finalista da ação...[5]

Por óbvio, não faltaram críticas ao finalismo, porém, sua dogmática não foi vencida justamente por sua simplicidade e solidez, cujos pontos principais não foram desconstruídos pelos estudiosos da época. Tanto é que as evoluções no Direito Penal têm base finalista, como as teorias funcionalistas.

Expõe o autor:

A teoria finalista da ação entrou em campo desde o início com grande autoestima e poderosa argumentação.

[...]

O adversário com o qual a teoria finalista se defrontou estava decerto despreparado no campo que o finalismo elegeu como decisivo. A teoria até então existente, prontamente rotulada de ‘causal’, tinha-se ocupado pouco das questões agora convertidas em essenciais. Ela havia ordenado e sistematicamente pensado, analisado, classificado e harmonizado seu objeto e produzira um sistema de enunciados complexo e fungível no seu conjunto, o qual, porém pecava por não ser consciente e si e, portanto, não conseguir autojustificar-se. Mediante indagações sobre os fundamentos básicos, os alicerces ‘reais’ do seu sistema, a teoria tradicional via-se facilmente em apuros, sim, acabou mesmo em ridículo.[6]

Isso levou a um abuso na utilização do Direito Penal, já que condutas são tipificadas sem o devido estudo criminológico, sociológico ou de política criminal.

Em muitos casos, esse ramo do direito, mais drástico, foi utilizado para persecução de finalidades políticas, medidas tendentes a angariar a simpatia e votos dos cidadãos. Percebeu-se que criar infrações penais ao invés de políticas públicas de combate a criminalidade, em que pese serem paliativas e não resolverem os problemas sociais, promoviam uma sensação de segurança.

Assim, ele propõe uma revisão metodológica e não estrutural. Passa a defender que outras ciências devem se comunicar para bem adequar a aplicação do Direito Penal, como a Sociologia. Dessa forma, esse ramo do direito somente voltará a ser invocado em último caso, de modo a ser aplicado quando os demais falharem.

3.      Reflexos no Processo Penal

O Processo Penal é um ramo do direito público e indispensável para a aplicação do direito material, salvo algumas exceções, como a transação penal nos crimes de menor potencial ofensivo e, recentemente, os acordos de não persecução penal trazidos à baila pela Resolução nº 181 do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP.

É instrumental, uma vez que viabiliza a aplicação do direito material. Mecanismo que permite a correta aplicação do direito, punindo aqueles que violam os bens jurídicos previamente determinados pelo legislador, conforme os princípios da legalidade, taxatividade, ofensividade, subsidiariedade, fragmentariedade, dentre outros. Todavia, não se perderão de vista os direitos do réu, que será submetido, eventualmente, as sanções legais, mas terá assegurado os direitos ao contraditório e à ampla defesa.

Oportuno destacar que o devido processo legal, princípio expresso e direito fundamental, presente no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, será rigorosamente observado, não só em sua vertente formal, mas também material. Isto é, além do procedimento previamente delimitado pela lei a ser aplicado ao caso, também será razoável e proporcional. Aqui, fica evidente a manifestação da dignidade humana no Direito Processual Penal.

Convém salientar que esse direito não é sinônimo de morosidade ou abuso de defesa, pois o que se pretende é garantir que o réu, vulnerável na relação, tenha oportunidade de trazer ao processo todos os elementos que considerar relevantes para se defender, seja para obter uma sentença absolutória ou para conseguir uma aplicação justa da sanção penal. Isto não significa limitação de direitos ou relativização de garantias fundamentais, pelo contrário, promove a paridade de armas na relação.

Todavia, com a tutela de direitos de terceira dimensão, há uma dificuldade para a efetivação dessas garantias processuais, uma vez que o direito material, por proteger direitos difusos, traz condutas pouco precisas e de difícil individualização, como nos crimes societários e ambientais.

Quando ocorre uma infração penal ambiental em uma atividade empresarial, há enorme dificuldade na persecução penal que se inicia com a investigação e, posteriormente, com a denúncia, pois a atribuição específica das ações de cada membro com poder de decisão na sociedade é extremamente complicada.

O artigo 2º da Lei 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais) traz dois elementos imprescindíveis para a imputação: “o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la (grifos nossos)”, situação nada simples de ser apurada.

Assim, são obrigatórios que constem da denúncia, conforme o artigo 41 do Código de Processo Penal:

A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas. (grifos nossos)

Contudo, na prática são relativizados e transferidos para a instrução, momento processual posterior. De acordo com decisões recentes, a peça inicial deve conter o maior número de elementos, fatos e circunstâncias que o caso concreto permitir, mesmo que não seja possível delimitar e especificar com precisão a conduta de cada administrador.

Isso porque, segundo o Superior Tribunal de Justiça, há uma diferença entre denúncia genérica e geral. A primeira ocorre com a atribuição de diversas condutas a mais de uma pessoa sem individualizá-las. Já na segunda, é imputada apenas uma conduta a mais de um agente:

PENAL   E PROCESSO PENAL.  RECURSO EM HABEAS CORPUS.  1.  CRIME AMBIENTAL.  TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. EXCEPCIONALIDADE VERIFICADA.

2.  INÉPCIA DA DENÚNCIA.  INICIAL QUE NARRA APENAS A QUALIDADE DE SÓCIO. MERA ATRIBUIÇÃO DE UMA QUALIDADE. DENÚNCIA GENÉRICA. AUSÊNCIA

DE LIAME. 3. MANUTENÇÃO DA AÇÃO PENAL CONTRA A SOCIEDADE EMPRESÁRIA.

POSSIBILIDADE. DESNECESSIDADE DE DUPLA IMPUTAÇÃO. PRECEDENTES DO STF

E DO STJ.  4.  RECURSO EM HABEAS CORPUS PROVIDO EM PARTE.

1. O trancamento da ação penal na via estreita do habeas corpus somente é possível, em caráter excepcional, quando se comprovar, de plano, a inépcia da denúncia, a atipicidade da conduta, a incidência de causa de extinção da punibilidade ou a ausência de indícios de autoria ou de prova da materialidade do delito.

2.  Não  se pode confundir a denúncia genérica com a denúncia geral, pois o direito pátrio não admite denúncia genérica, sendo possível, entretanto, nos casos de crimes societários e de autoria coletiva, a denúncia  geral,  ou  seja,  aquela  que,  apesar  de  não  detalhar minudentemente  as ações imputadas aos denunciados, demonstra, ainda que de maneira sutil, a ligação entre sua conduta e o fato delitivo. Da leitura da inicial, verifica-se que os recorrentes Cristiano e Maria da Graça foram denunciados apenas em virtude de serem sócios administradores da primeira recorrente, Caiçaras Empreendimentos Imobiliários Ltda.  A acusação limitou-se a vinculá-los ao crime porque eram sócios administradores da primeira recorrente, o que torna a denúncia genérica e inadmissível.

3.   Mantêm-se,  entretanto,  a  persecução  penal  contra  CAIÇARAS EMPREEDIMENTOS  IMOBILIÁRIOS  LTDA.,  haja vista a desnecessidade de dupla  imputação, conforme assentado pelo Supremo Tribunal Federal e pelo  Superior  Tribunal de Justiça, porquanto "o art. 225, § 3º, da Constituição  Federal  não  condiciona  a responsabilização penal da pessoa  jurídica por crimes ambientais à simultânea persecução penal da  pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa". Além do mais, o habeas corpus não se destina às pessoas jurídicas. Sua incidência constitucional diz respeito ao direito de locomoção, ainda que de modo reflexo ou indireto (AgRg no HC 393.284/PI, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 09/05/2017, DJe 15/05/2017).

4.  Recurso em habeas corpus provido em parte, para reconhecer a inépcia da denúncia apenas com relação aos recorrentes CRISTIANO e MARIA DA GRAÇA, sem prejuízo de oferecimento de nova inicial acusatória, desde que observados os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal.[7] (grifos nossos)

Outro julgado no mesmo sentido:

PENAL   E PROCESSO PENAL.  RECURSO EM HABEAS CORPUS.  1.  CRIME

AMBIENTAL.  ATRIBUIÇÃO DA RESPONSABILIDADE AOS SÓCIOS. NEXO CAUSAL

NÃO DESCRITO.  DENÚNCIA INEPTA.  IMPUTAÇÃO GENÉRICA. 2. RECURSO EM

HABEAS CORPUS PROVIDO.

1.  A denúncia e o aditamento, apesar de descreverem a conduta delitiva   consistente   na   supressão de vegetação em área de preservação permanente, não expõem, nem mesmo de passagem, o nexo causal entre o comportamento da recorrente e o fato delituoso. A acusação limitou-se a vinculá-la ao crime ambiental porque era sócia da empresa em que realizada a fiscalização. Como é cediço, mesmo a denúncia geral deve conter elementos mínimos que preservem o direito do acusado de conhecer o conteúdo da imputação contra si. A mera atribuição de uma qualidade não é forma adequada para se conferir determinada prática delitiva a quem quer que seja. Caso contrário, abre-se margem para formulação de denúncia genérica e, por via de consequência, para reprovável responsabilidade penal objetiva.

2.  Recurso em habeas corpus provido, para reconhecer a inépcia da denúncia e de seu aditamento com relação à recorrente, sem prejuízo de oferecimento de nova inicial acusatória, desde que observados os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal.[8] (grifos nossos)

Em que pese essa diferenciação, para parcela da doutrina o caso seria de grave violação dos pressupostos de validade da denúncia, também chamada de criptoimputação, ocasionando nulidade absoluta por se tratar de vício insanável, uma vez que a denúncia dever carregar, no mínimo, justa causa para permitir uma defesa efetiva, sob pena de promoção da inversão do ônus da prova, o que não é admitido em nenhuma hipótese no Direito Processual Penal.

Aliás, basta uma rápida pesquisa nos bancos de decisões dos tribunais do país para se verificar que o direito material é colocado em segundo plano, sendo os embates quase que eminentemente processuais. Na grande maioria das discussões se questiona a violação das garantias asseguradas pelo ordenamento e, nos casos de bens difusos, o problema se inicia já na descrição fática e sua subsunção à norma na denúncia. Via de regra, sequer existem indícios de autoria palpáveis para permitir o recebimento da peça acusatória.

Salienta-se que este é apenas um dos problemas causados. Essa inflação de tipos penais provoca alta movimentação do Poder Judiciário, que já se encontra sobrecarregado de ações das mais diversas áreas. Isso onera demasiadamente os cofres públicos.

Não obstante, quando há condenação, as penas aplicadas são, em regra, substituídas por restritivas de direitos ou suspensas, já que as privativas de liberdade cominadas no preceito secundário são baixas. Ainda quando aplicadas, não são eficazes como as administrativas e cíveis, as quais a responsabilidade é objetiva e as sanções pecuniárias altas.

Assim, possível perceber que esse abuso do Direito Penal influencia diretamente o Processual, dificultando a efetivação de princípios basilares, tais quais a ampla defesa e o contraditório. Esse problema transcende as relações jurídicas, pois ocasiona uma dificuldade nas atividades econômicas e, por consequência, prejudica o desenvolvimento nacional e a confiança do mercado externo, que deixam de investir no Brasil ante a alta probabilidade de responsabilização criminal e demora na resolução das lides.

4.     Conclusão

Como se percebe, o abuso do Direito Penal incriminador é temerário e pouco soluciona os problemas sociais. Sua estruturação, não por acaso, determina que seja o último ramo aplicável.

Ante o desvirtuamento da cominação de crimes, houve um efeito cascata que se irradiou para outras ciências, jurídicas ou extrajurídicas. Somente com uma aplicação lúcida e estruturada do direito essas questões serão solucionadas. Para tanto, o legislador deve percorrer o caminho mais árduo e difícil, qual seja, editar normas após demasiado estudo multidisciplinar, se socorrendo, caso necessário, de profissionais especializados nas matérias objeto da pesquisa.

Em contrapartida, o Poder Executivo deverá traçar políticas públicas de modo a solucionar efetivamente os conflitos, cumprindo as determinações legais. Sabe-se que é um trabalho a longo prazo e de execução complexa, porém necessário.

Imperioso destacar que não se defende a descriminalização dos tipos penais que tutelam os bens jurídicos difusos, o que, inclusive, iria contra à mandados constitucionais de criminalização, como o presente no artigo 225, parágrafo 3ª, da Constituição Federal, mas sim a sua tutela eficiente. Caso outros ramos do direito sejam suficientes para a proteção, o Direito Penal não deverá ser invocado. Todavia, se falharem, ele estará presente para evitar ao máximo sua violação.

No entanto, isso somente será possível se a teoria finalista da conduta se socorrer de outras disciplinas. Ficou evidente no decorrer do trabalho que a dogmática desta teoria é satisfatória, mas sua metodologia deve ser corrigida, conforme nos ensinou Hassemer. Para tanto, a Sociologia, a Criminologia e as Políticas Criminais poderão  auxiliar-nos.

Caso esse problema seja solucionado, o Poder Judiciário terá maior tempo para enfrentar, nos juízos criminais, as situações mais graves, evitando aquelas que a tutela penal não se mostra tão efetiva.

5.     Bibliografia

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Editora Saraiva. 6ª edição - 2017.

Código de Processo Penal e sua Interpretação Jurisprudencial – Doutrina e Jurisprudência. Coordenadores: FRANCO, Alberto Silva e; STOCCO, Rui. Editora Revista dos Tribunais – 2ª edição.

DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal. Editora Revista dos Tribunais – 4ª Edição.

FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. Editora Revista dos Tribunais – 7ª Edição – 2012.

HASSEMER, Winfried. História das Ideias Penais na Alemanha do Pós-Guerra. www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/176133/000476736.pdf?sequence=3

MIRANDA, Jorge e SILVA, Marco Antônio Marques da (coordenação). Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. Editora Quartier Latin do Brasil. São Paulo, inverno de 2008.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal – Parte Geral e Parte Especial. Editora Revista dos Tribunais – 4ª edição.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. Editora Revista dos Tribunais – 12ª edição.

OLIVEIRA, Carlos Alberto Corrêa de Almeida. Direito Processual Penal Principiológico. Revista da Escola Paulista da Magistratura número 1 – junho 2015.

PEREIRA, Claudio José Langroiva. Proteção Jurídica Penal e Bens Universais. Tese de Doutorado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP – 2006.


[1] A expressão “Escola de Frankfurt”, embora seja consagrada e difundida pelo mundo, não se encontra correta por dois motivos principais. Primeiro: Escola significa compartilhamento de ideias comuns, que seguem o mesmo caminho, o que não aconteceu na supracitada “Escola”, uma vez que cada pensador possuía uma linha de pesquisa diferente. Segundo: os pensadores que receberam essa designação não estavam em Frankfurt, mas sim radicados nos Estados Unidos.

[2] Adota-se, para a realização do presente trabalho, o conceito analógico de direito, ou seja, diversas realidades distintas com uma premissa comum que relaciona todas as definições apresentadas. Nesse caso, direito objetivo como ordenamento jurídico.

[3] HASSEMER, Winfried. História das Ideias Penais na Alemanha do Pós-Guerra, pg. 247.

[4] Adota-se a Teoria Tripartida de Crime, qual seja, sua divisão em fato típico, ilícito e culpável.

[5] HASSEMER, Winfried. História das Ideias Penais na Alemanha do Pós-Guerra, pg. 246 e 247.

[6] HASSEMER, Winfried. História das Ideias Penais na Alemanha do Pós-Guerra, pg. 248.

[7] RHC 88264/ES, Recurso Ordinário em Habeas Corpus 2017/0202581-6, Ministro Relator Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 08/02/2018.

[8] RHC 70389/SC Recurso Ordinário em Habeas Corpus 2016/0116645-4, Ministro Relator Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 06/10/2016.

Sobre o autor
Daniel Campos Silva de Siqueira

Formado pela Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP em 2009, Especialista em Direito Processual Civil pela Escola Paulista da Magistratura - EPM em 2013, mestrando em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP.

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Publicação como quesito parcial para obtenção do título de mestre.

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