O atual problema do ensino jurídico
O direito é um fenômeno social, uma estratégia sócio-adaptativa, de enorme complexidade, sobre o qual, sem embargo, todo mundo tem alguma idéia intuitiva. Sabemos que falar de direito significa falar de normas, o que é tanto como falar de comportamentos que de alguma maneira não são opcionais, condutas cuja realização se proíbe ou se obriga.
O estudo deste fenômeno pode efetuar-se desde distintos pontos de vista e a partir de diversos interesses intelectuais. Assim, o direito é objeto de estudo tanto de antropólogos como de historiadores, tanto de economistas como de sociólogos. E, por suposto, de uma maneira muito particular constitui o ponto de referência dos estudos jurídicos. Tradicionalmente, nas faculdades de direito se ensina qual é o conjunto de normas jurídicas que formam o direito positivo de uma determinada sociedade. Este conjunto de normas se divide para sua análise em diversos subconjuntos, que se apresentam de maneira sistematizada, normalmente tendo em conta a matéria regulada.
Dizendo de outra forma, o que se trara é de assegurar que os alunos dos cursos jurídicos devem, primeiro, conhecer bem as leis e os costumes de classe, grupos e povos dominantes e, depois, se desejam - e se as condições materias de vida assim o permitem-, tratá-los (já a nivel de uma pós-graduação) em mais largas perspectivas éticas, sociológicas, filosóficas, políticas e críticas.
De uma maneira geral, desta prática docente resulta abismal o atraso demonstrado pelos juristas no que diz respeito à teoria e prática da "realização" do direito, nomeadamente por insistirem na tradicional perspectiva de que um texto normativo para interpretar é um documento unívoco, dentro de um sistema autônomo ( o ordenamento jurídico) pleno e hermético, e que somente lhes cabe determinar o seu sentido "exato" pelo entendimento dos respectivos conceitos, termos e enunciados normativos ou pela busca de sua finalidade, isto é, aceitando o que " diz" e/ou para que "diz" a norma estudada.
Entre as consequências fundamentais da progressiva hegemonia do positivismo normativista, enquanto princípio paradigmático constitutivo dos cursos jurídicos, está o de que todo o Direito pode ser "ensinado" se forem transmitidas as premissas básicas do sistema. As funções criativas ou especulativas, tão importante para a formação do estudante, são deixadas à categoria de disciplinas introdutórias, predominando, de forma nocivamente desproporcional, as disciplinas cuja função é menos a de "formar" os alunos e mais a de lhes "informar", de maneira esteriotipada e padronizada, sobre a linguagem necessária ao aprendizado da dogmática, fazendo com que o direito pareça ( para o estudante) como uma série de dados sem vinculação entre si.
Ademais - e também de uma maneira generalizada - os professores não buscam apresentar os temas que lhes cabe fazendo referência aos problemas concretos que os provocam, mas sim como soluções definitivas em conformidade com as leis vigentes. E a mera informação de caráter estritamente instrumental faz com que, com o passo do tempo, a ausência de raciocínio crítico e problematizante terminem por esclerosar um conhecimento jurídico setorizado em múltiplas áreas de especialização, impedindo por completo sua adaptação às novas e intermináveis situações e conflitos sociais.
Decorre disto a inflexibilidade ou inamovibilidade da estrutura dos cursos jurídicos, em nome da "barbárie do especialismo", condenando os estudantes (e os professores) a uma "cárcere" dogmática e/ou a uma (in)formação burocrática (de alguma forma subserviente), incapazes de entender os novos tipos e formas de conflitos e tensão social, mas com a capacidade necessária para elaborar um esquema estritamente prático-legalista, em aberrante contradição com uma crescente realidade de non-droit, para usar a expressão de Carbonnier.
Assim que os estudantes dogmáticos são educados para pensar que tudo é Direito ou, pelo menos, que o Direito tem vocação para estar em todas as partes, para envolver tudo e para sustentar, como um Deus, todo o universo habitado : o Direito não somente não deve estar ausente em nenhuma parte senão que deve ser concebido como algo contínuo e sem rupturas. Contudo, com a chegada tardia da maturidade profissional a uma maior compreensão, os "estudantes" acabam por deixar de reivindicar esta ubiquidade divina. Reconhecem, a um custo nada agradável e menos ainda pequeno, que nem todo o social é jurídico e que é possível encontrar nas relações entre os homens algumas que escapam ao Direito, porque não estão nem sequer socializadas.
Com o passo do tempo, acabam por admitir que o Direito não preenche ou abarca toda a atmosfera humana, senão que nas sociedades há verdadeiros vazios de Direito. Deste modo, ao menos como hipótese, percebem que se coloca ao lado do Direito o "não-direito" que, não sendo um anti-direito ou um direito injusto (que é um fenômeno positivo), se caracteriza como a ausência do jurídico em certo número de vínculos sociais relacionais humanos nos quais o Direito tem uma vocação teórica bastante para estar presente.
O ensino jurídico revisado
Sem menosprezar o papel útil, em termos de utilidade imediata, dos cursos universitários e das carreiras profissionais, temos a sensação – compartida, por certo, com muitas pessoas – de que educar é outra coisa completamente distinta. Para começar, qualquer discussão ou proposta honrada acerca do ensino jurídico – e que pretenda propugnar de verdade sua causa (que dizer, honrada também na ação) - deveria implicar um redimensionamento dos atuais paradigmas teóricos e metodológicos de ensino, a fim de que se possa fugir das armadilhas ideológicas que configuram o atual panorama educacional e acadêmico em vigor. Mas não basta, somente, certa preocupação teórico-metodológica de ensino se esta não vier acompanhada de um verdadeiro trabalho de conscientização por parte dos professores, no sentido de que cabe a estes a inegociável responsabilidade de tornar efetivo o "pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua (real) qualificação para o trabalho" ( art 205, da Constituição da República).
Isto é, de que cabe às universidades a formação e a produção de operadores jurídicos virtuosos e plenamente habilitados a trabalhar o direito como prática social produto de um processo dialógico e comunicativo destinado a descobrir poderosas, férteis e vinculantes vias (jurídicas) de explicação e articulação da conduta social humana e dos vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os homens constroem estilos aprovados de interação e estrutura social. Em particular, de um amplo abanico de condutas mal adaptadas às circunstâncias atuais : modos adequados de combiná-los, de potenciar e cultivar seus melhores lados, e de mitigar ou jugular seus lados destrutivos e perigosos.
Por outro lado, o câmbio na direção de novos paradigmas somente pode ser empreendido enquanto prática coletiva e solidária que implique o comprometimento e a colaboração das partes envolvidas no processo ensino-aprendizagem. De fato, não parece razoável pensar em uma mudança do atual modelo jurídico-educativo sem que os professores, diante de um sistema esclerosado, se proponham a fazer uso de uma docência integral, interdisciplinar e significativa de conhecimentos, bem como formativa em relação à capacidade intelectual e crítica com respeito aos valores e atitudes dos estudantes frente ao Direito.
Daí que o caminho legítimo ( e premente) parece ser o de que se tome em sério a excelência do ensino, corrigindo as já conhecidas distorções dos cursos jurídicos, desde que, com essa prática e sempre sob uma perspectiva multidisciplinar:
a) se dote o ensino jurídico de uma linha crítica dos tradicionais conceitos jurídicos, visando formar o futuro profissional com uma visao de justiça social e estimulando-o à investigação científica com vista a uma ação transformadora da realidade, em tudo comprometido com a invariante axiológica de respeito incondicional à dignidade da pessoa humana;
b) se dote o ensino jurídico de uma metodologia verticalmente integrada, no sentido de que, sobre os fundamentos do Direito e da Justiça, o que se deve proporcionar ao aluno é sempre um leque de explicações coerentes provenientes das mais diversas áreas de conhecimento (das ciências naturais às disciplinas sócio-comportamentais), que se complementem nos diversos níveis de análise e que sejam todas mutuamente compatíveis; e, em igual medida,
c) procure capacitar o aluno não somente a tarefa de "saber" e "conhecer" razoavelmente o ordenamento jurídico senão também, e muito particularmente, de reflexionar sobre essa ciência, dotando-o das qualidades necessárias e suficientes para fazer valer e projetar no ordenamento jurídico os valores fundamentais do Direito e da Justiça.
Ademais, para além do exercício dessa nova prática docente, os estudantes têm o direito de desfrutar de uma visão do Direito muito mais flexível e integrada da que tem sido normal nos cursos jurídicos. Tem o direito - e os professores o dever- de chegar ao convencimento de que podem e devem influir, em um sentido ou outro, nas numerosas manifestações do sistema jurídico, tanto sobre a base de razões formais e positivas, como materiais, éticas e de política jurídica.
E o fator determinante para inculcar uma ou outra prática frente ao Direito e ao sistema jurídico será a atitude que adotará o professor de, exercendo a liberdade que lhe assegura a Constituição da República, fazer conhecer aos seus alunos essas realidades que o fenômeno jurídico implica de forma iniludível.
Se através de suas exposições e leituras recomendadas ( ou de qualquer outro método que lhe pareça mais acessível) o docente trata de pôr de manifesto os valores jurídicos que presidem - e devem conformar - as diferentes facetas da realidade social e, ademais disto, incita seus alunos a adotar uma atitude crítica e reflexiva dirigida a tornar efetivos os valores substantivos que dirigem o Direito, com toda segurança alcançará facilmente o objetivo da docência jurídica e fará com que o ( também) exercício da liberdade de aprender, de investigar e o pluralismo de idéias não se petrifiquem em uma norma (constitucional, insisto) incapaz de ter alguma eficácia fora dos limites físicos do papel em que está impressa ( art. 206, II e III da Constituição da República).
Isso importa, por certo, que o docente assuma a responsabilidade de estar comprometido com o processo ensino-aprendizagem e sua qualidade, dotando-o de uma visão pluralista da sociedade e preocupando-se com uma abordagem multidimensional do sistema jurídico e multidisciplinar no que se refere às outras áreas de conhecimento, tudo com o objetivo de formar juristas capazes de pensar séria, global e criticamente o Direito. De um modelo de formação discente que, enfim, trate de impedir um perfil de aluno proclive ao automatismo, ao isolamento teórico, a uma ortodoxa rigidez interpretativa e, até mesmo, a um desvairado e irracional subjetivismo, origem de profissionais deficientes e, em determinadas ocasiões, carentes de um mínimo sentido de ponderada razoabilidade acerca dos princípios e valores que ao Direito importam.
As Escolas Superiores
Vejamos agora, nesta linha de raciocínio, o papel que cabe às Escolas Superiores, já agora na preparação e formação dos egressos das universidades que passarão a exercer determinadas atividades e funções essenciais à Justiça.
Pois bem, parece haver certo consenso no sentido de que o atual modelo de seleção de juizes e membros do Ministério Público já não mais atende às exigências de justiça que norteiam o desenho institucional do Estado democrático moderno. Porque, sem deixar legítimamente de reconhecer que no panorama do judiciário nacional abundam excelentes magistrados e procuradores, o sistema de seleção atualmente adotado incentiva mais um perfil de operador jurídico memorizador, leitor de códigos e enclausurado ao muito limitado esquema do silogismo interpretativo e lógico-formal do direito positivo.
Isto é, muito distante de um modelo de operador do direito que, sem prejuízo do preceptivo conhecimento do ordenamento jurídico vigente, demonstre igualmente sua capacidade para compreender que a atividade hermenêutica se formula precisamente a partir de uma posição antropológica e põe em jogo uma fenomenologia do atuar humano; que somente situando-se desde o ponto de vista do homem e de sua natureza será possível ao operador jurídico representar o sentido e a função do direito como unidade de um contexto vital, ético e cultural: o homem, ponto de partida e chegada do fenômeno jurídico, que vive das representações e significados desenhados para a cooperação, o diálogo e a argumentação. Que, em seu "existir com" e situado em um determinado horizonte histórico-existencial, pede continuamente aos outros, cuja alteridade interioriza, que justifiquem a legitimidade de suas eleições aportando as razões as subjacem e as motivam.
Quer dizer, daquele tipo de operador jurídico cujo primero e melhor atributo seja sua virtuosa competência para comprender que sua tarefa hermenêutica, da qual não se pode excluir a dimensão emocional e de subjetividade do juízo, não se configura como produção ex nihilo, que não é somente uma circunstância de produção subordinada à lei, senão que deve ser concebida como uma praxis social destinada a desenhar um modelo sócio-institucional que, garantindo uma certa igualdade material, permita, estimule e assegure que a titularidade e o exercício de direitos de todo ponto inalienáveis não sejam sacrificados em função de arbitrários interesses e injustificadas interferências por parte do Estado ou de qualquer outro agente social.
E porque em um sistema republicano-democrático real a atividade de um membro do Ministério Público ou de um magistrado (que têm em suas mãos a distribuição e a garantia de direitos e deveres inerentes ao exercício da cidadania) não pode estar limitada a realizar um mero exercício semântico ou lógico-dedutivo da norma jurídica – essa ferramenta cultural e institucional "cega", virtualmente neutra e com potencial capacidade vinculante para predizer e regular o comportamento humano-, qualquer que seja sua natureza ou grau de imperatividade, parece haver chegado o momento oportuno para que se proceda uma profunda reforma do atual modelo de seleção destes operadores jurídicos, com o objetivo precípuo de criar mecanismos aptos a habilitá-los ao inegociável compromisso de colocar-se à frente dos fatos e dos vínculos sociais relacionais para, com a iniludível "pré-compreensão" e talento de desenhador que caracteriza o prudente ato de julgar e atuar institucionalmente, impulsionarem os câmbios necessários para que se promova um panorama institucional, normativo e sócio-cultural o mais amigável possível para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Um modelo de ensino para as Escolas Superiores
Assim que a modalidade de seleção e formação de magistrados e membros do Ministério Público que justifica esta nova forma de trabalhar o fenômeno jurídico deveria consistir, como não, em um processo preliminar de provas e títulos destinado a avaliar o nivel de cultura jurídica geral dos candidatos, mas já agora devidamente conjugado com um adequado processo de formação ética, multidisciplinar e filosófico-jurídica, destinado a potenciar a capacidade dos futuros juízes e procuradores para fazer valer e projetar no ordenamento jurídico os princípios e valores fundamentais do Direito e da Justiça, em tudo comprometido éticamente com a invariante axiológica de incondicional respeito à dignidade da pessoa humana.
Um processo de formação cujo principal objetivo seria o de mostrar que um positivismo ingênuo pode fazer com que se conceba ilusões impróprias acerca da função do direito e do papel do operador jurídico, uma vez que não é absolutamente certo que um melhor conhecimento de códigos e normas jurídicas proporcione automaticamente uma vida humana mais digna. Oxalá fossem as coisas tão simples!
Quem pensa que a relação direito/norma é tudo esquece que a medida do direito, a própria idéia e essência do direito, é o humano, cuja natureza resulta não somente de uma mescla complicadíssima de genes e de neurônios senão também de experiências, valores, aprendizagens, e influências procedentes de nossa igualmente embaraçada vida sócio-cultural.
Por certo que essa preparação exigiria, como não pode ser de outra maneira, um esforço acrescido por parte dos candidatos ao cargo de juiz ou de procurador. Uma preparação, extendida ao longo de um determinado período de tempo, que haveria de ser acreditada no âmbito das próprias escolas superiores (da magistratura e do Ministério Público), com uma composição docente plural e multidisciplinar, formada tanto por professores provenientes da magistratura, das universidades, do Ministério Público e das demais entidades representativas da classe jurídica.
Com caráter classificatório e eliminatório, este processo de formação ético, teórico, filosófico e metodológico seguramente viria a permitir a cada uma das instituições, no exercício de um legítimo controle prévio, dispor de uma idéia mais cabal e definida acerca das faculdades morais e jurídicas do futuro juiz ou procurador : uma forma de materializar a famosa "eterna vigilância cidadã" republicana que, neste caso, trataria de evitar que um eventual despreparo ético-jurídico por parte dos futuros operadores do direito venha a romper os vínculos da igualdade cidadã e a degradar a res publica a imperium.
Em síntese, caberia a essas escolas superiores a preparação integral do magistrado e do membro do Ministério Público para dignificar o ato de julgar e de atuar institucionalmente, no sentido de, buscando superar os já conhecidos limites e distorções do atual modelo de seleção ( e dando sequência ao modelo de um ensino jurídico revisado), capacitá-los não somente à tarefa de "saber" razoavelmente o direito expresso através de normas positivadas, mas principalmente para compreender que o direito, como tal, não é mais nem menos que um instrumento, uma estratégia sócio-adaptativa empregada para articular argumentativamente, por meio da virtude da prudência, os vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os homens constroem estilos aprovados de interação e estrutura social.
Tal modelo de seleção e formação está fundamentado no fato de que somente através de uma adequada, verticalmente integrada (das ciências naturais às disciplinas sócio-comportamentais ) e multidisciplinar preparação ética, filosófica, teórica e metodológica será possível confiar ao juiz e ao membro do Ministério Público a tarefa de atualização crítica do direito como modelo de ordem vinculante e, em particular, de encomendar-lhe a eqüitativa distribuição, garantia e equilíbrio entre as três grandes virtudes ilustradas que constituem o núcleo básico da justiça.
Somente uma apropriada formação filosófico-jurídica lhes comprometerá a manter uma unidade de critérios de valoração, em um esforço de busca de discursos jurídicos com potencial capacidade de consenso e que, sobretudo, atendam ao princípio ético segundo o qual o direito deve ser manipulado de tal maneira que suas conseqüências sejam sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar ou diminuir a miséria humana : que não se produza sofrimento quando seja possível preveni-lo, e que o sofrimento inevitável se minimize e afete com moderação aos membros individuais da sociedade, aos cidadãos.
Neste particular, estamos firmemente convencidos de que o êxito ou o fracasso da humanidade depende em grande medida do modo como as instituições que interpretam e aplicam as leis sejam capazes de incorporar essa nova perspectiva acerca do conteúdo e da função do direito (particularmente com relação à natureza humana) em princípios, valores, métodos e decisões jurídicas. Compreender a natureza humana, sua limitada racionalidade, suas emoções e seus sentimentos parecem ser o melhor caminho para que se possa formular um desenho institucional e normativo que, reduzindo o sofrimento humano, permita a cada um viver com o outro na busca de uma humanidade comum.