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Da (im)possibilidade de o inimputável figurar como sujeito passivo no crime de calúnia

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5 DA PROTEÇÃO DA HONRA DO INIMPUTÁVEL

No presente capítulo será feita a análise sobre a possibilidade de proteção da honra do inimputável, como sujeito passivo do crime de calúnia, o que se fará mediante a demonstração da divergência doutrinária sobre o tema, bem como através da demonstração da aplicação prática da corrente dominante. Ao seu término proceder-se-á a apresentação dos argumentos legais e infralegais que possibilitam a proteção da honra do inimputável, ressaltando, porém, da necessidade de aplicação do princípio da razoabilidade no caso concreto.

Historicamente, não se sabe muito sobre a proteção da honra do inimputável, muito embora, no Direito Romano, essa proteção existisse. Nesse sentido, explica Hungria: “Pode uma criança ou um enfermo mental ser sujeito passivo de um crime contra honra? A solução da hipótese não é pacífica. O direito romano resolvia no sentido afirmativo”270.

Atualmente, no Brasil, há significativa divergência sobre o assunto, principalmente no campo doutrinário e é essa inexistência de pacificidade que se passa a demonstrar nesse primeiro momento.

5.1 Da inexistência de entendimento doutrinário pacífico e da aplicação prática da corrente majoritária

Na doutrina penal brasileira, são duas as principais correntes que discutem a (im)possibilidade de o inimputável figurar no polo passivo do crime de calúnia. Nesse ponto, salienta-se que a corrente que possui mais adeptos defende a possibilidade, enquanto a corrente minoritária defende o contrário.

Não obstante, a existência de entendimento dominante, a divergência doutrinária sobre o tema é gritante. Nesse aspecto, vale citar os doutrinadores Pedro Franco de Campos, Luiz Marcelo Mileo Theodoro, Fábio Ramazzini Bechara e André Estefam, que reconhecem a divisão da doutrina quando o assunto é a proteção da honra do inimputável, como sujeito passivo do crime de calúnia. A saber:

[...]. Quanto aos menores e aos doentes mentais a doutrina é dividida, sendo certo que para alguns não podem ser, porque não podem praticar crime; para outros (Hungria, Damásio, Fragoso e Mirabete), podem, porque a lei fala na prática de ato definido como crime. [...]271.

No mesmo sentido, leciona Fernando Galvão:

[...]. Há divergência na doutrina sobre a possibilidade do menor e do inimputável por doença mental ser vítima de calúnia. Por um lado, alguns doutrinadores sustentam que como a incapacidade de responsabilização criminal (culpabilidade) dos inimputáveis impede que cometam crimes, a prática da calúnia seria impossível [...]272.

Como se pode notar do trecho acima citado, o principal argumento dos doutrinadores adeptos da aludida corrente minoritária se resume em uma única circunstância, a qual tem fundamento no entendimento por eles adotado de que inimputável não comete crime e, por isso, não pode figurar no polo passivo do crime de calúnia. Esse entendimento tem base na forma que os adeptos dessa corrente interpretam o tipo penal do crime de calúnia. Isso porque, para eles, a conduta típica do delito de calúnia seria atribuir falsamente a alguém a prática de um crime. Logo, se do ponto de vista jurídico o inimputável não é capaz de cometer um crime, seria impossível garantir efeitos jurídicos à falsa atribuição da prática de um crime a esse sujeito, o que, por consequência, impede a proteção da honra objetiva do inimputável.

Adepto dessa corrente doutrinária, Magalhães Noronha defende que a honra do inimputável não deve ser protegida quando esse for caluniado, devendo qualquer atribuição caluniosa ao inimputável ser considerada como difamação. Nesse sentido, salienta Luis Mileo:

[...] Entendimento contrário é o de Magalhães Noronha (1994a, v. 2, p. 120) ao sustentar que crime é fato típico, ilícito e culpável (teoria clássica) e, sendo a culpabilidade elemento integrante do crime, uma vez excluída, não há falar em crime. Assim, os doentes mentais e os menores de 18 anos são inimputáveis; logo, não são culpáveis e não cometem crime. Dessa forma, se não praticam crimes, não podem ser sujeitos passivos do crime de calúnia. Eventual imputação de crime a um inimputável deve ser considerado crime de difamação. [...]273.

No mesmo sentido, explica Flávio Augusto Monteiro de Barros:

[...]. Magalhães Noronha, adepto da teoria tripartida, entende que menor de 18 anos e doente mental não praticam crime. Por consequência, não podem ser caluniados. Para o ilustre penalista, o fato criminoso a eles atribuído caracteriza delito de difamação. [...]274.

Rogério Greco, por sua vez, apesar de não ser adepto desse entendimento, menciona a existência do entendimento desfavorável à proteção da honra do inimputável. A saber:

No que diz respeito aos inimputáveis, seja a inimputabilidade proveniente de doença mental ou de menoridade do agente, parte-se do pressuposto de que pelo fato de não praticarem crime, em face da ausência de uma das características necessárias ao reconhecimento da infração penal, vale dizer, a culpabilidade, não poderiam ser considerados sujeitos passivos do delito de calúnia275.

E acrescenta: “Hungria afasta essa possibilidade e conclui que os inimputáveis somente podem ser sujeitos passivos dos crimes de difamação e injúria [...]”276. Aliás, conforme se verá, Hungria, em verdade, é um dos precursores da corrente de menor expressão.

Fernando Capez, relatando a existência da controvérsia, explica que a maioria dos partidários da doutrina clássica entendem ser impossível que os inimputáveis sejam sujeitos passivos do crime de calúnia. Nesse sentido:

[...]. Para os partidários da doutrina clássica, os doentes mentais e os menores de 18 anos não podem ser sujeitos passivos do crime de calúnia. Sustentam que crime é fato típico, ilícito e culpável. A culpabilidade é assim requisito do crime e, uma vez excluída, não há que se falar em crime. Os doentes mentais e os menores de 18 anos são inimputáveis; logo, não são culpáveis; logo, não cometem crimes. Conclusão: se não praticam crimes, não podem ser sujeitos passivos de calúnia, pois esta é a atribuição de fato definido como crime. A imputação de crime a um irresponsável deve ser considerada difamação. [...]277.

Nota-se que Capez atribui aos doutrinadores clássicos a principal característica de adotarem a Teoria Tripartida do Crime e, por conseguinte, considerarem a culpabilidade como elemento analítico do delito, o que justifica, para ele, a adoção desse entendimento por parte desses.

No entanto, o próprio Capez faz ressalvas, citando que Mirabete e Bitencourt, os quais também são doutrinadores classicistas, porém entendem ser possível o alcance da tutela penal ao inimputável.

Paulo César Busato apresenta visão semelhante à de Capez:

[...]. A doutrina de inspiração clássica tem afirmado ser impossível aos doentes mentais e aos menores serem vítimas do crime de calúnia. Isso porque sustentam que o conceito de crime é fato típico, antijurídico e culpável. Se assim é, a culpabilidade faz parte do conceito de crime e, uma vez que o menor de 18 anos e os doentes mentais não são culpáveis, não se pode falar em “crime” com relação a eles. [...]278.

Damásio de Jesus também explica o entendimento dos classicistas da mesma maneira que Capez e Busato. Sobre os doentes mentais, afirma:

A doutrina tem considerado que os doentes mentais não podem ser caluniados. Isso porque a calúnia é a falsa imputação de prática de crime. Ora, dizem os autores, crime é um fato típico, antijurídico e culpável. A culpabilidade funciona como elemento ou requisito do delito. O doente mental, por ser inimputável, não é culpável. Dessa forma, excluída a culpabilidade, inexiste o crime. Se calúnia é a falsa imputação de crime, e se o doente mental não pode praticar crime, em face da ausência de culpabilidade, não pode ser sujeito passivo de calúnia. [...]279.

Quanto aos menores de dezoito anos:

[...]. A doutrina afirma que o menor de 18 anos não pode ser caluniado, sendo que o fato deve ser imputado a título de difamação. De acordo com a posição que assumimos quanto à estrutura do delito, entendemos que nada impede que o menor de 18 anos seja caluniado. Os clássicos entendem que não há calúnia na espécie em face de o menor de 18 anos ser inimputável. Assim, como a culpabilidade constitui elemento do crime nos termos da doutrina clássica, e como ela é excluída pela inimputabilidade, o menor não pratica crime. Se a culpabilidade é elemento do crime, e se o menor de 18 anos não é culpável, o fato por ele praticado não pode ser considerado delito. Diante disso, aceita a teoria clássica, é logica a solução no sentido da existência de difamação e não de calúnia. [...]280.

Nota-se que Damásio não só afirma que os doutrinadores clássicos entendem que não há possibilidade de proteção da honra do inimputável, como também concorda que se a teoria clássica for a adotada, não há de se falar que é possível a proteção do inimputável como sujeito passivo do crime de calúnia.

Vale dizer, nessa toada, que a Teoria Clássica, também chamada de escola clássica e sistema clássico, nada mais é que uma das teorias que regem, fundamentam e explicam o Direito Penal, como também é a Teoria Positivista.

Trata-se de uma teoria que teve como precursor o italiano Cesare Beccaria281 e que dentre suas diversas concepções sobre o Direito Penal, prevê que o conceito analítico é composto pela tipicidade, antijuricidade e culpabilidade, dando, assim, derivação à chamada Teoria Tripartida do Delito282, que será explanada em momento oportuno.

Dessa feita, conhecendo-se o necessário sobre a Teoria Clássica para o tema em exame, depreende-se que a interpretação de Capez, Damásio e Busato se mostra aparentemente coerente, haja vista que Magalhães Noronha e Nelson Hungria são classicistas e pactuam do entendimento segundo o qual não há possibilidade de o inimputável ocupar o polo passivo do crime de calúnia. Entretanto, vale dizer que essa interpretação não deve ser generalizada, já que não são todos os partidários da doutrina clássica que entendem dessa maneira, como é o caso de Mirabete e Bitencourt, conforme já foi ressaltado.

Não obstante, conforme será explanado quando dá análise das teorias do delito, o entendimento de que só haveria de se falar em difamação e não de calúnia quando for adotada a teoria clássica não tem fundamento para prosperar.

Em outro turno, dando continuidade ao objeto principal deste tópico (demonstrar a inexistência de pacificidade na doutrina sobre o tema principal do trabalho), vale citar as lições de Nelson Hungria, que fazendo jus às observações supra realizadas, pode ser visto no Direito Penal pátrio como o principal idealizador e defensor da corrente doutrinária minoritária sobre o tema:

[...]. Apesar de inimputáveis, os incapazes podem ser expostos a aversão ou irrisão pública, e seria iníquo deixar-se impune o injuriador ou difamador, como se a inimputabilidade fosse, no dizer de Altavilla, fosse uma culpa que se tivesse de expiar com a perda da tutela penal. Convém observar que as ofensas aos penalmente inimputáveis (enfermos ou deficientes mentais, ou menores de 18 anos) somente como a injúria ou a difamação podem ser classificados, excluídas a configuração de calúnia, pois esta é falsa imputação de prática responsável de um crime. [...]283.

Nota-se que Hungria, de forma semelhante à Magalhães Noronha, entende que o inimputável não pode ser sujeito passivo do crime de calúnia. Entretanto, vê-se que o argumento de Hungria é acompanhado de uma peculiaridade: ele entende que a configuração do crime de calúnia depende da “falsa imputação da prática responsável de um crime” e não da simples imputação da prática de um crime.

Na prática, a relevância de tal diferenciação depende da teoria do crime adotado por quem a interpreta. Isso porque, se interpretada com base na Teoria Tripartida, a diferenciação é irrelevante, eis que a “prática responsável de um crime” nada mais aparenta ser do que o cometimento de um crime por um sujeito penalmente responsável. Assim, como no âmbito da Teoria Tripartida o crime já pressupõe a existência de responsabilidade penal (imputabilidade), a palavra “responsável” em nada se diferencia do entendimento de Noronha.

Por outro lado, embora Hungria seja adepto da Teoria Tripartida, vale dizer que sendo considerada a adoção da Teoria Bipartida, a referida diferenciação pode adquirir protagonismo, uma vez que para os adeptos dessa teoria, o conceito analítico de crime não pressupõe a existência de imputabilidade ou responsabilidade penal.

Desse modo, em suma, o que se pode notar é que Hungria lecionava no sentido de que apenas o sujeito penal e juridicamente imputável seria capaz de ocupar o polo passivo do crime de calúnia.

Obviamente, não se pode olvidar que as obras citadas de Nelson Hungria e Magalhães Noronha, respectivamente, foram redigidas no ano de 1978 e 1994, bem como que Nelson Hungria faleceu em 1969, tendo sido sua obra atualizada em determinado período (preservando suas ideologias e opiniões originais, é claro), o que faz nascer o questionamento de que se vivos em tempos atuais, os aludidos autores teriam mantido o entendimento que deixaram como legado sobre o assunto.

Não obstante, a morte dos principais defensores da corrente de menor expressão, da explanação supra realizada, percebe-se, indubitavelmente, que a divergência doutrinária sobre o tema deste trabalho ainda vigora na órbita jurídica, o que se comprova pela presença da discussão em diversas doutrinas atuais, havendo alguns doutrinadores, inclusive, que afirmam ser o entendimento da doutrina que os inimputáveis não podem ser caluniados, como é o caso de Damásio de Jesus.

Aliás, mesmo que se falasse que o legado deixada por Hungria e Noronha se tratam de meros resquícios de um entendimento doutrinário minoritário, infere-se que esses “resquícios” ainda interferem no pensamento jurídico-penal contemporâneo, haja vista que corroboram com alguns aspectos das concepções de doutrinadores renomados da atual doutrina penal brasileira, como Damásio de Jesus e Cezar Roberto Bittencourt. Se assim não fosse, Damásio, conforme já ressaltado, não entenderia que aos classicistas não resta outro entendimento mais coerente que o pactuado por Hungria e Noronha. De igual modo, Bittencourt não exigiria que o inimputável seja capaz de entender o caráter ofensivo da falsa imputação que lhe é feita.

Ademais, a força dessa minoritária corrente doutrinária não para por aí. As considerações feitas por Hungria sobre a doutrina julgada como moderna à época (de sua obra), embora embase em argumentos alternativos, apresentava um entendimento convergente ao seu. Esses doutrinadores “modernos”, entendem que nos crimes contra honra em geral, se o inimputável não possui a capacidade de entender a ofensa, não pode ter sua honra protegida.

Nesse sentido, explica Hungria:

[...]. Na doutrina moderna, assim se pronuncia LIEPMANN: “Enfermos mentais e crianças somente são passíveis de ofensa “à honra quando possuam a capacidade de entender o sentido do ato contra eles dirigido”. No mesmo sentido, BORCIANI: não fazendo a lei exceção alguma, também as crianças e os doentes mentais podem ser passíveis de crimes contra a honra, desde que, bem entendido, possuam aquele mínimo de capacidade para aprender e entender a ofensa. Se tal capacidade falha por completo, ne mesmo se poderá reconhecer, da parte do agente, o dolo distintivo do crime. MANZINI opina que as crianças, por isso mesmo que inimputáveis, não podem ser objeto de censura moral e, portanto, não podem ser lesadas no ponto de vista de sua honra objetiva (reputação). PILI igualmente nega, na espécie, a capacidade penal passiva dos menores, como corolário da sua inimputabilidade. Quanto aos enfermos mentais, MANZINI e PILI entendem que podem ser ofendidos em sua honra, quando a eles atribuem fatos inerentes ao tempo anterior à sua enfermidade, ou mesmo ao tempo presente, se a enfermidade é parcial, de modo a não excluir o entendimento in concreto. [...]284.

Veja-se, o entendimento da doutrina moderna à época era de que os doentes mentais e os menores só podiam ter sua honra protegida se quando tivessem sido ofendidos, possuíssem capacidade parcial de entender a ofensa ou antes de desenvolverem a enfermidade. Possuem esse entendimento os doutrinadores MANZINI e PILI. Já LIEPMANN e BORCIANI, para quem basta que os doentes mentais tenham a capacidade de entender a ofensa, o que é basicamente o mesmo entendimento, havendo diferença apenas quanto às especificações de MANZINI e PILI em relação à condição mental do ofendido quando da realização da ofensa.

No que toca à proteção da honra dos menores de 18 (dezoito) anos, nota-se que LIEPMANN e BORCIANI adotam o mesmo entendimento para os doentes mentais, enquanto MANZINI e PILI opinam pela impossibilidade de proteção da honra dos menores.

Nessa visão, vale ressaltar, porém, que dos doutrinadores modernos citados por Hungria, apenas MANZINI deixa expresso, ao tratar dos menores, que não é juridicamente possível a proteção penal da honra objetiva desses, sendo que todos os demais não fazem qualquer diferenciação entre a honra objetiva e subjetiva em suas afirmações, o que permite presumir que tratam da honra em sentido amplo (latu sensu), abrangendo as duas espécies. Portanto, tal entendimento se aplica ao delito de calúnia.

Cezar Roberto Bitencourt, doutrinador classicista da atualidade, converge com MANZINI e PILI sobre os doentes mentais e menores de 18 (dezoito) anos, bem como com LIEPMANN e BORCIANI em relação aos doentes mentais, eis que esses, como ressaltado, entendem pela impossibilidade proteção da honra dos menores. A convergência se dá porque Bitencourt defende que nos crimes contra honra em geral, o sujeito passivo deve entender o caráter ofensivo da imputação (conforme já ressaltado). Nesse sentido:

[...]. Os inimputáveis, seja qual for a causa, não podem ser sujeito ativo do crime de calúnia, pelas razões que exporemos, embora, teoricamente, possam, a nosso juízo, ser sujeitos passivos dos crimes contra a honra, dependendo, logicamente, da capacidade de entender o significado ultrajante da imputação. [...]285.

Além disso, mister se faz enfatizar a afirmação de Hungria, no sentido de que alguns doutrinadores “negam terminantemente possam os incapazes, em geral, ser objeto adequado de crimes contra a honra”.

Tudo o que foi até então exposto neste tópico, representa, portanto, como já salientado, que a força dessa corrente doutrinária, embora não seja prevalente, ainda está em vigor na seara penal do ordenamento jurídico pátrio.

Assim, demonstrada a divergência sobre o tema, a existência e peculiaridades da corrente minoritária, passa-se a explanar o entendimento majoritário.

A doutrina majoritária se divide entre os partidários da Teoria Tripartida do Crime e os partidários da Teoria Bipartida.

O principal argumento dos doutrinadores adeptos da Teoria Tripartida e da corrente majoritária sobre o tema desse trabalho é o de que, embora o inimputável não seja, no aspecto jurídico-legal, capaz de praticar um crime, ele é capaz de praticar a conduta típica. Assim, entendem ser juridicamente possível que o inimputável pratique um fato que se amolda à conduta in abstrato prevista no tipo penal, mas que não configura, in concreto, um crime, por ausência de um de seus elementos, qual seja, a culpabilidade. Nesse sentido, leciona Bitencourt:

A despeito da orientação que seguimos, sustentamos que os inimputáveis também podem ser sujeitos passivos do crime de calúnia, isto é, podem ser caluniados [...]. Na verdade, a conduta tipificada como crime de calúnia não é “a imputação falsa da prática de crime”; com efeito, o legislador brasileiro teve o cuidado de criminalizar a conduta de imputar falsamente “fato definido como crime”, que é completamente diferente de imputar falsamente “a prática de crime”: inimputáveis, como já afirmamos, não praticam crimes, por faltar-lhes a condição de imputáveis, mas podem praticar “fatos definidos como crime”, ou seja, condutas que encontram receptividade em alguma moldura proibitiva da lei penal; abstratamente são definidas como crime, mas, concretamente, não se configuram pela ausência de capacidade penal. [...]286.

Luis Mileo, ao citar o entendimento de Mirabete, assim explica:

E ensina Mirabete: “para nós, mencionando a Lei não a prática de ‘crime’, mas de ‘fato definido como crime’, é possível o cometimento do crime de calúnia contra o menor ou o alienado mental que possua algum entendimento” (2009, v. 2, p. 119)287.

No mesmo sentido, retratando o entendimento tido como majoritário, afirma Eduardo Luiz Santos Cabette:

Diverge ainda a doutrina, mas a conclusão mais coerente é de que os inimputáveis também podem ser vítimas de calúnia, mesmo porque a lei fala em “imputar fato definido como crime”, e não simplesmente “crime”288.

Yuri Carneiro Coelho, também adepto da Teoria Tripartida do Crime, explica seu entendimento, corroborando com as afirmações de Mirabete e Bittencourt:

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No tocante ao sujeito passivo, cumpre ainda acrescentar que as vítimas que não possuem capacidade de culpabilidade, seja pela menoridade, seja pela condição de deficiência mental, possuem uma honra a ser tutelada, não justificando a EXCLUSÃO DE IMPUTAÇÃO do delito ao agente tendo em vista a circunstância formal de que essas vítimas não podem cometer crimes289.

E acrescenta:

Ora, eles não cometem crimes, mas cometem fatos puníveis, ontologicamente iguais aos delitos, e somente têm excluída a sua capacidade de culpabilidade tendo em vista razões de política criminal, calcada em critérios etários ou de saúde mental. [...]290.

Reforçando o principal argumento da corrente que defende a proteção da honra do inimputável, Victor Eduardo Rios Gonçalves cita uma situação hipotética em que acredita ser possível a responsabilização penal do agente caluniador. Veja-se o exemplo:

A calúnia consiste em imputar falsamente fato definido em lei como crime. Ora, quem diz que um rapaz de 16 anos empregou força física para manter relação sexual com uma colega de classe, ciente de que isso é mentira, claramente atribuiu ao menor o crime previsto no art. 213 do CP — estupro — e, com isso, afetou a sua imagem perante a coletividade. Há, inegavelmente, crime de calúnia. O mesmo raciocínio se aplica aos doentes mentais, que também podem ser sujeito passivo do crime291.

Outro doutrinador que compartilha desse entendimento é André Estefam, que assim leciona:

Os inimputáveis podem ser vítimas dos crimes contra a honra. Não há dúvida que os menores e doentes mentais têm reputação, a qual pode vir a sofrer algum dano por meio de calúnia ou difamação. Nem se argumente que estes, por serem desprovidos de culpabilidade, não cometem crimes e, por tal motivo, não podem ser vítimas de calúnia. Isto porque nossa lei penal não descreve a calúnia como a “imputação de crime” a alguém (algo impossível aos inimputáveis, à luz da doutrina dominante); nosso Código tipifica a calúnia como a imputação falsa de “fato definido como crime”. Ora, um fato como tal pode ser cometido, em tese, por qualquer pessoa292.

Também adepto da Teoria Tripartida, Guilherme Souza Nucci, como os demais, defende a possibilidade de ser o inimputável sujeito passivo do delito de calúnia:

6. Inimputáveis e pessoas mortas: os primeiros podem ser sujeitos passivos do crime de calúnia porque a lei fala em atribuir a prática de “fato definido como crime”, e não singelamente na atribuição de “crime”. Há figuras típicas (fatos) passíveis de serem praticadas por menores e loucos – como o homicídio, por exemplo –, embora não sejam crimes por lhes faltar indispensável elemento, que é a culpabilidade [...]293.

Paulo César Busato é enfático a contrariar o entendimento defendido por Hungria e Noronha, tratando-o como um equívoco interpretativo da conduta proibitiva. Nesse sentido:

O equívoco aqui parece residir na interpretação dos termos do dispositivo. Não se imputa à vítima um crime, mas sim um fato definido como crime. Assim, o caluniador não diz que a vítima praticou um crime, mas sim diz que a vítima praticou um fato definido como crime. [...] Retomando a questão, sempre que se imputar a alguém fato definido como crime, haverá o crime de calúnia. A ideia de que se a vítima da calúnia for menor, não haverá delito é insustentável. Isso porque o que se lhe imputou foi um fato. E tal fato é definido como crime, o que não significa que se vá imputar-lhe pena. [...]. Do mesmo modo, aquele identificado como incapaz de compreender o caráter ilícito do fato, realiza um fato, este fato pode ser definido como crime, e não constituir, no que se refere a ele próprio, um crime, que permita a aplicação de uma pena. Sendo assim, imputar-lhe um fato criminoso pode perfeitamente constituir calúnia294.

Conforme se pode notar, os doutrinadores adeptos da Teoria Tripartida do Delito se filiam à corrente segunda a qual o inimputável pode ser vítima no crime de calúnia por não ser exigido que para tanto lhe imputem a prática de um crime, mas sim de um fato definido como crime. Ocorre que, como anteriormente mencionado, os partidários da Teoria Bipartida também se filiam ao entendimento favorável à proteção da honra do inimputável, mas se distinguem daqueles quanto aos seus argumentos.

Ressalta-se, então, que o argumento basilar dos adeptos da Teoria Bipartida é o de que, por ser a culpabilidade apenas pressuposto de aplicação da pena, os inimputáveis cometem crimes e, por isso, podem ser sujeitos passivos.

Depreende-se, assim, que diferentemente dos adeptos da Teoria Tripartida do Delito, os partidários da Teoria Bipartida não entram no mérito de discutirem se a conduta típica prevista no artigo 138 do Código Penal prevê a prática de fato definido como crime ou crime em si. A interpretação lógica, então, é que: ou entendem que a aludida conduta típica se refere a um crime em si; ou não fazem diferenciação entre fato definido como crime e crime.

E a lógica de tal interpretação fica evidente ao analisar os aspectos que envolvem a argumentação dos aludidos doutrinadores (que será demonstrada a seguir), haja vista que se não entram no mérito de discutir se calúnia se trata da imputação de um crime ou de um fato definido como crime e aceitam que o inimputável ocupe o polo passivo do crime de calúnia justamente por entenderem que o conceito analítico de delito não é composto pela culpabilidade, nada mais lógico é aduzir que a ausência da culpabilidade (a qual os inimputáveis não detém) é o fator determinante para que se posicionem dessa maneira.

À exemplo disso, cita-se as considerações de Flávio Augusto Monteiro de Barros:

Filiamo-nos à corrente bipartida. O menor de 18 anos e o enfermo mental cometem crime. Este é fato típico e antijurídico. A culpabilidade não é elemento do delito; funciona apenas como pressuposto de aplicação da pena. Aliás, como ensina Soler: “Dizer de um menino de treze anos, que cometeu determinado roubo, com conhecimento da falsidade do fato, é tanto calúnia, como dizê-lo de um maior”295.

Observa-se que o argumento principal do doutrinador supramencionado é justamente o de que o menor de dezoito anos e o doente mental cometem crimes, justificando sua afirmação seguinte de que podem ser sujeitos passivos do crime de calúnia. No mesmo sentido, são os ensinamentos de Fernando Capez, que ressalta justamente que por serem capazes de cometerem crimes, os inimputáveis poderão figurar no polo passivo do crime de calúnia:

Damásio compartilha do entendimento de que os inimputáveis podem ser sujeitos passivos do crime em estudo, contudo utiliza‐se de outro argumento. Sustenta o autor que crime é fato típico e ilícito, independentemente da culpabilidade do agente. Os doentes mentais e os menores de 18 anos, portanto, podem praticar crimes, muito embora não sejam culpáveis. Por essa razão, podem ser caluniados. Também adotamos essa posição. [...]. Conclusão: se não praticam crimes, não podem ser sujeitos passivos de calúnia, pois esta é a atribuição de fato definido como crime. A imputação de crime a um irresponsável deve ser considerada difamação296.

Percebe-se que mesmo reconhecendo que a calúnia é a falsa imputação da prática de um fato definido como crime, Capez entende ser impossível um sujeito que não comete crime ocupar o polo passivo do delito de calúnia Isso demonstra que não faz diferenciação entre “fato definido como crime” e “crime” propriamente dito.

Denota-se que, tanto no posicionamento de Capez quanto no de Flávio Augusto Monteiro de Barros, reafirmam dizeres já expendidos no decorrer deste trabalho, os quais consistem nas seguintes afirmações: dentre os doutrinadores adeptos da teoria bipartida, que defendem a proteção da honra do inimputável como sujeito passivo do crime de calúnia, no que diz respeito à diferenciação entre “fato definido como crime” e “crime” propriamente dito, só se pode concluir que: ou não fazem tal diferenciação (como é o caso de Capez, que simplesmente desenvolve seu entendimento no sentido de que imputar a pratica de um fato definido como crime é o mesmo que imputar a prática de um crime); ou creem que caluniar, no ordenamento jurídico pátrio, significar imputar a prática de um crime (como faz Monteiro de Barros).

Mister se faz salientar, nessa análise, que a reafirmação supramencionada também ratifica algo já salientado neste tópico, tal qual: como ainda é conturbada, principalmente no campo doutrinário, a discussão sobre o tema desse trabalho, o que também retoma a importância de sua apreciação.

Tal percepção se justifica pelos argumentos dos doutrinadores adeptos à Teoria Bipartida do Delito, eis que se fossem partidários da Teoria Tripartida, para eles não seria possível, como defende Hungria e Noronha, que o inimputável fosse vítima do crime de calúnia.

Logo, deduz-se que entendem os adeptos da Teoria Bipartida que se essa for a teoria adotada, a honra do inimputável não poderá ser tutelada através do crime de calúnia. A propósito, é justamente isso que Fernando Capez diz em sua conclusão, embora aceite que o inimputável seja vítima no crime de calúnia (por adotar a Teoria Bipartida), ressalva que se for considerado que ele não pratica crimes, não poderá ter sua honra tutelada através da responsabilização criminal do autor do delito pela prática do crime de calúnia, devendo essa, nesse caso, ser tratada como difamação.

Conforme se pode notar, embora exista entendimento majoritário e minoritário sobre o tema, não há pacificidade doutrinária, havendo divergências não só de posicionamentos, mas também argumentativas entre os próprios simpatizantes do entendimento majoritário. Alguns, inclusive, condicionam a proteção da honra do inimputável à aplicação de seu argumento, o que evidencia não só a importância da abordagem do tema em si, como também a relevância da prévia discussão sobre as possíveis Teorias do Crime adotadas pelo Código Penal Brasileiro.

Por outro lado, ressalta-se que se na doutrina a divergência sobre o tema é significativa, nos tribunais pode-se afirmar que o entendimento, praticamente unânime, é o de que o inimputável pode ser sujeito passivo do crime de calúnia. Nesse sentido, vejam-se as ementas dos seguintes julgados:

[...] O crime de calúnia pode ser praticado contra vítima inimputável, pois a norma do art. 138 do CP refere-se à imputação falsa de fato definido como crime e não à falsa imputação da prática de crime. Ora, fato definido como crime é sinônimo de conduta típica. Basta, pois, a falsa imputação de conduta típica à vítima para a caracterização do crime de calúnia, sendo irrelevante, portanto, sua inimputabilidade penal.297

Dano moral. Ação indenizatória. Constrangimento causado por abordagem violenta e falsa acusação de furto. Excesso dos prepostos no trato com o cliente. Nexo de causalidade estabelecido. Doentes mentais e os menores podem ser vitimas dos crimes contra a honra. Indenização devida. Sentença mantida. Recurso improvido.298

Dos julgados supracitados, nota-se que foi adotada a concepção tripartida do entendimento majoritário sobre o tema, o que demonstra que nesse caso, foi considerada irrelevante a inimputabilidade para a configuração do delito, eis que concluíram que calúnia é falsa imputação de fato definido como crime e não de crime propriamente dito.

Nesse mesmo sentido, explica o Relator da Apelação 00381031420118260577 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, utilizando o inimputável como exemplo para o caso concreto em seu voto:

[...]. Nada obstante, a lei fala em “ato definido como crime” e não em crime, enquanto ocorrência no mundo jurídico. A distinção é relevante e não é estranha ao Direito Penal. Veja-se, ad exemplum, a definição do crime previsto no art. 138 do CPC (calúnia): imputar falsamente “fato definido como crime”. Indaga-se: inimputáveis podem ser vítimas de calúnia? Segundo a boa doutrina, sim, pois não se fala em atribuição de crime, mas sim, de “fato definido como crime”. Similar conclusão é extraída do estatuto disciplinar em apreço [...]299.

Aliás, vale citar um trecho do voto do Desembargador Relator Caetano Lagrasta, nos autos de nº 5688754000 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o qual já teve sua ementa supracitada e no qual expõe, o Relator, os fundamentos que lhe permitiram concluir pela possibilidade de o inimputável ter sua honra protegida nos crimes contra honra. Nesse sentido:

[...]. Não há que se falar em ilegitimidade passiva ou impossibilidade jurídica do pedido. O autor, ainda que portador de deficiência mental, não está excluído da proteção da lei. Afirma a Doutrina que os doentes mentais e os menores podem ser vítimas dos crimes contra a honra e, consequentemente, sofrer todos os prejuízos morais desta ofensa, com evidente repercussão na esfera cível. DAMASIO, por entender que os menores e loucos praticam crimes, embora não sejam culpados, admite a calúnia contra eles. Considerando inexistente a distinção entre honra objetiva e subjetiva, afirma FRAGOSO que a criança e o inimputável também são “protegidos" porque como pessoas humanas devem ser respeitadas na esfera social e moral tendo a pretensão ao respeito inerente â personalidade humana, ainda que disto não tenham consciência", havendo equívoco na suposição de que a criança e o doente mental não sentem a ofensa que lhes é feita" (JÚLIO FABBRINI MIRABETE , in Manual de Direito Penal, Parte Especial, vol. 2, Atlas, 1995, p. 153). Desta forma, afastam-se definitivamente as preliminares arguidas em sede de apelação, já adequadamente repelidas em despacho saneador não recorrido300.

Em outros julgados, embora não tão minuciosos como nos acima citados, os tribunais reconhecem a possibilidade de o inimputável ter sua honra objetiva protegida. A saber:

APELAÇÃO CÍVEL. DANOS MORAIS. CALÚNIA. COMPROVAÇÃO. DEVER DE INDENIZAR CONFIGURADO. VALOR DA INDENIZAÇÃO. MENSURAÇÃO. 1. Devidamente comprovado que a requerida, de forma imponderada e infundada, apontou o requerente diante de toda vizinhança como autor de furto, presentes mostram-se os requisitos necessários à sua responsabilização civil. [...] Do Mérito Recursal. Trata-se de caso no qual se discute se a ré é ou não responsável pelo fato de ter acusado o autor, menor à época, de furtar aparelho de DVD da residência de uma afilhada sua. [...] Sendo assim, diante dos elementos probatórios acostados nos autos verifica-se com tranquilidade que a ré realmente apontou o requerente de forma precipitada, ostensiva e injusta como autor do furto, fato deveras grave301.

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. IMPRENSA. DANO MORAL. MERECE SER REPARADO PREJUÍZO MORAL ADVINDO AOS PAIS DO MENOR, FALECIDO, A QUEM O JORNAL, NEGLIGENTEMENTE, IMPUTOU FATO CRIMINOSO. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. VOTO VENCIDO302.

Ressalta-se que, embora os julgados supracitados se refiram a ações cíveis indenizatórias, em virtude da ofensa sofrida por inimputáveis à sua honra objetiva, tais julgados têm íntima relação com o delito de calúnia, haja vista que, para reconhecerem que o inimputável fazia jus à aludida indenização, os tribunais, primeiramente, tiveram que reconhecer a possibilidade de o inimputável ser sujeito passivo do crime de calúnia. Por isso, os julgados citados nestes autos se mostram de suma importância.

Por fim, há de se enfatizar que embora não existam muitos julgados sobre o tema, é possível notar que o entendimento minoritário é quase que inexistente na jurisprudência.

5.2 Discussão sobre a teoria do crime adotada no código penal brasileiro e sua relevância para o tema

Há grande divergência doutrinária sobre qual teoria do crime foi adotada pelo legislador quando da elaboração do Código Penal da República Federativa do Brasil.

Assim, consultando diversas doutrinas penalistas brasileiras, é possível notar que não são poucas as teorias existentes, bem como não há entendimento pacífico sobre o assunto.

Nesse liame, mister se faz salientar que, tendo em vista não ser a finalidade desse tópico o esgotamento da análise sobre todas as teorias do crime, mas apenas sua abordagem para que se torne possível o eficaz desenvolvimento do tema principal, não haverá esgotamento do assunto, mas apenas a abordagem das duas principais teorias divergentes.

Em outra vereda, é de ser relevado que é de suma importância para esse trabalho, a abordagem dessas duas teorias, notadamente porque uma delas define o crime, em seu conceito analítico, incluindo a culpabilidade como um de seus elementos, enquanto a outra o define enquadrando a culpabilidade como mero pressuposto de aplicação da pena.

Tais teorias são chamadas de Tripartida e de Bipartida.

A teoria que define o crime como fato típico, ilícito e culpável é a Tripartida, que é a adotada pela maioria dos doutrinadores penalistas brasileiros, conforme explica Ishida:

[...] crime é fato típico, antijurídico e culpável, incluindo os finalistas (Francisco de Assis Toledo, Fragoso, Zaffaroni, Cezar Roberto Bitencourt, Luiz Regis Prado, Maurach) e causalistas (Hungria, Frederico Marques, Aníbal Bruno, Noronha, Manoel Pedro Pimentel) e também os adeptos da teoria social da ação que desejam um ajuste entre o causalismo e o finalismo (Jescheck, Wessels). Esse conceito é majoritário no Brasil e no exterior (Nucci, Manual de direito penal, parte geral, parte especial, p. 161). Sob esse prisma, o menor de 18 anos não comete crime, pois falta a culpabilidade (imputabilidade)303.

Por sua vez, a Teoria Bipartida estabelece que crime é todo fato típico e ilícito, sendo a culpabilidade mero pressuposto de pena, conforme leciona o um de seus adeptos, Fernando Capez:

Concepção bipartida: a culpabilidade não integra o conceito de crime. Entendemos que crime é fato típico e ilícito (ou antijurídico) por várias razões. A Teoria Naturalista ou Causal, mais conhecida como Teoria Clássica, concebida por Franz von Liszt, a qual teve em Ernest von Beling um de seus maiores defensores, dominou todo o século XIX, fortemente influenciada pelo positivismo jurídico. Para ela, o fato típico resultava de mera comparação entre a conduta objetivamente realizada e a descrição legal do crime, sem analisar qualquer aspecto de ordem interna, subjetiva. Sustentava que o dolo e a culpa sediavam-se na culpabilidade e não pertenciam ao tipo. Para os seus defensores, crime só́ pode ser fato típico, ilícito (antijurídico) e culpável, uma vez que, sendo o dolo e a culpa imprescindíveis para a sua existência e estando ambos na culpabilidade, por obvio esta última se tornava necessária para integrar o conceito de infração penal. Todo penalista clássico, portanto, forçosamente precisa adotar a concepção tripartida, pois do contrário teria de admitir que o dolo e a culpa não pertenciam ao crime, o que seria juridicamente impossível de sustentar. Com o finalismo de Welzel, descobriu-se que dolo e culpa integravam o fato típico e não a culpabilidade. A partir daí, com a saída desses elementos, a culpabilidade perdeu a única coisa que interessava ao crime, ficando apenas com elementos puramente valorativos. Com isso, passou a ser mero juízo de valoração externo ao crime, uma simples reprovação que o Estado faz sobre o autor de uma infração penal. Com efeito, a culpabilidade, em termos coloquiais, ocorre quando o Estado aponta o dedo para o infrator e lhe diz: você é culpado e vai pagar pelo crime que cometeu! Ora, isso nada tem que ver com o crime. É apenas uma censura exercida sobre o criminoso. Conclusão: a partir do finalismo, já não há como continuar sustentando que crime é todo fato típico, ilícito e culpável, pois a culpabilidade não tem mais nada que interessa ao conceito de crime. Welzel não se apercebeu disso e continuou sustentando equivocadamente a concepção tripartida, tendo, com isso, influenciado grande parte dos finalistas, os quais insistiram na tecla errada.304

Como se depreende dos ensinamentos de Fernando Capez, os doutrinadores clássicos adotam a Teoria Tripartida por entenderem que o dolo e a culpa estão abrangidos pela culpabilidade e não pelo tipo penal. Assim, como todo crime é doloso ou culposo, a culpabilidade, para eles, é um elemento do crime.

Para os finalistas, entretanto, o dolo e a culpa integram o tipo penal e a culpabilidade só tem o condão de determinar se o agente é punível para o direito penal ou não.

Nessa acepção, é possível dizer que apesar de a teoria tripartida (ou tricotômica) possuir mais adeptos na doutrina, o Código Penal Brasileiro aparenta ter adotado a teoria bipartida (ou dicotômica), já que quando trata da ausência de tipicidade (art. 1º) e de ilicitude (art. 23), prevê que não há crime, mas quando dispõe sobre ausência de culpabilidade (art. 26 e 59), prevê que não há aplicação de pena, demonstrando, assim, que a culpabilidade não está ligada ao crime, mas sim, ao agente.

Além disso, o dolo e a culpa demonstram-se, aparentemente, vinculados à conduta do agente, uma vez que age com culpa aquele que, ao executar determinado delito não teve a intenção de assim proceder, bem como age com dolo aquele quem teve a intenção ou assumiu o risco de cometer um crime. Percebe-se, portanto, que a conduta típica abrange o dolo e a culpa, uma vez que o próprio tipo penal exige que a conduta seja culposa ou dolosa.

Destarte, observa-se que o legislador brasileiro parece ter escolhido a Teoria Bipartida ao elaborar o Código Penal Brasileiro, porém como não há unanimidade sobre o assunto, tampouco na jurisprudência pátria. Seria irrazoável afirmar que apenas uma delas foi a escolhida e é aplicada na prática forense e no âmbito didático, muito embora a Teoria Tripartida tenha maior preponderância, por ser adotada por grande parte da doutrina.

Aliás, vale salientar que o legislador brasileiro é omisso sobre o conceito do crime, o que “inflama” ainda mais a discussão sobre o assunto no âmbito doutrinário e até jurisprudencial. Nesse sentido, explica Cezar Roberto Bitencourt:

[...]. Ao contrário dos Códigos Penais de 1830 (art. 2o, § 1o) e 1890 (art. 7o), o atual Código Penal (1940, com a Reforma Penal de 1984) não define crime, deixando a elaboração de seu conceito à doutrina nacional. As experiências anteriores, além de serem puramente formais, eram incompletas e defeituosas, recomendando o bom-senso o abandono daquela prática305.

Assim, o que se tem de definição de crime existente na legislação brasileira é a prevista na Lei de Introdução ao Código Penal brasileiro (Decreto-lei n. 3.914/41), que se limita apenas a distinguir crime de contravenção penal.

De qualquer modo, é plausível atentar-se para o fato de que o real efeito entre ambas teorias tem maior relevância no âmbito didático do Direito Penal do que na prática forense, pelo fato de que o agente desprovido culpabilidade, seja qualquer teoria a adotada, não será sancionado pelo direito penal, seja porque não comete crime (Teoria Tripartida ou Tricotômica), seja porque é isento de pena (Teoria Bipartida ou Dicotômica). Tal circunstância fática justifica a ausência de maiores discussões jurisprudenciais sobre o assunto.

Não obstante, a ausência de “riqueza” jurisprudencial sobre o assunto, o Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou em alguns julgados sobre ambas as teorias, permitindo-se constatar a variação da aplicação dessas teorias. Nesse sentido:

[...] Também quanto à culpabilidade a ordem merece concessão. O conceito de culpabilidade, envolto em intensos debates doutrinários, costuma ser utilizado em três sentidos no Direito Penal pátrio, que aqui sintetizo apenas para compreensão do julgado: a) como princípio, querendo traduzir a limitação à responsabilidade penal objetiva; b) como limite à sanção estatal, vinculada ao grau de reprovabilidade da conduta; c) como pressuposto da aplicação da pena ou, para os que adotam a teoria tripartida do delito, como elemento analítico do crime. [...]306.

[...] A culpabilidade a que se refere o art. 59 do Código Penal significa juízo de reprovabilidade da conduta, e não se confunde com o terceiro substrato do crime (HC n. 180.167/MG, Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe 24/8/2016). [...]307.

HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. DOSIMETRIA. PENA-BASE. CULPABILIDADE. ELEMENTO INTEGRANTE DA PRÓPRIA ESTRUTURA DO CRIME. IMPOSSIBILIDADE. ANTECEDENTES E CONDUTA SOCIAL. FUNDAMENTAÇÃO CONCRETA. EXISTÊNCIA DE CONDENAÇÕES DEFINITIVAS ANTERIORES. PERSONALIDADE VOLTADA PARA A PRÁTICA DE DELITOS. BIS IN IDEM. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EM PARTE EVIDENCIADO. 1. Argumentos inerentes à culpabilidade em sentido estrito - elemento integrante da estrutura do crime, em sua concepção tripartida - não autorizam a exasperação da pena-base, a pretexto de culpabilidade desfavorável. [...]308.

[...]. Não há como negar que o direito penal moderno tem sofrido influências relevantes (e positivas) do funcionalismo, na tentativa de corrigir algumas falhas conceituais do finalismo proposto por Wezel (v.g., a crise na exata compreensão dos crimes omissivos próprios). Entretanto, isso em nada modifica a estrutura analítica do crime, que se mantém fiel, com suporte na grande maioria da doutrina, ao modelo tripartido de crime, nas vertentes tipo de injusto e culpabilidade. [...]309.

Convém ponderar, no entanto, conforme se verá adiante, que quando o assunto abordado abrange a inimputabilidade e o crime de calúnia, a discussão sobre a teoria do crime a ser adotada migra das margens da irrelevância para o campo do protagonismo, eis que frente a uma das correntes doutrinárias existentes, sobre o alcance da tutela penal ao inimputável como sujeito passivo do crime de calúnia, a possibilidade ou não de o inimputável praticar um crime é crucial para definir se ele terá ou não sua honra protegida.

Por tudo isso, lobriga-se que as considerações ora expendidas são fundamentais para o saudável desenvolvimento do tema principal desse trabalho, bem como que se deve concluir o seguinte sobre o questionamento de qual é a teoria do crime aplicada no Código Penal Brasileiro: não há unanimidade sobre o assunto na jurisprudência e na doutrina; o legislador foi omisso e não estabeleceu de forma expressa qual teoria é a aplicada; embora não exista unanimidade, a doutrina, em sua maioria, adota a Teoria Tripartida, porém é possível a aplicação da Teoria Bipartida, justamente pela omissão do legislador, bem como essa teoria aparenta ser a adotada, muito embora aquela seja mais utilizada por influência da doutrina dominante.

5.3 Argumentos jurídicos e legais

Conforme citado no tópico em que se relatou a existência de controvérsia sobre o tema, o principal argumento dos doutrinadores que entendem ser impossível a proteção da honra dos inimputáveis é o fato de que o delito de calúnia prevê falsa imputação da prática de um crime. Logo, sendo os inimputáveis incapazes de cometer crimes do ponto de vista jurídico, não podem ter sua honra protegida. Esse é o entendimento de Magalhães Noronha e Nelson Hungria, conforme já aludido.

Também já foi mencionado que Hungria, ao se referir ao crime de calúnia, desenvolvendo seu entendimento contrário à proteção da honra do inimputável, fala sobre a prática responsável de um crime. Como já exibido em tópico anterior, tal diferenciação só tem relevância quando adotada a Teoria Bipartida do Delito, em razão de que o conceito analítico de crime com base nesta teoria não pressupõe a existência de responsabilidade penal. Entretanto, Hungria é adepto da Teoria Tripartida do Crime, razão pela qual a palavra “responsável” não traz nenhuma consequência jurídica, tendo em vista que para cometer um crime nos termos dessa teoria, o sujeito precisa ser imputável.

Em que pese, esses entendimentos ganham significativa “força” doutrinária, mesmo fundamentando a corrente minoritária sobre o tema, pela análise do artigo 138 do Código Penal, que prevê o crime de calúnia, percebe-se que não merecem prosperar.

Como se depreende da análise da corrente majoritária sobre o tema, o tipo penal do crime de calúnia não exige que seja imputado ao sujeito a prática de um crime, mas sim de um fato definido como crime. Dessa forma, pouco importa se o inimputável é ou não capaz de cometer um crime, pois o delito de calúnia exige que lhe seja imputado falsamente um fato típico (fato definido como crime), sendo irrelevante se esse fato é ilícito ou culpável.

Ora, que outra conceituação se daria ao “fato definido como crime”? O raciocínio é lógico: se o legislador quisesse dizer que calúnia fosse a falsa imputação de um crime, ele assim diria inserindo tão somente a palavra “crime” no texto do artigo 138 do Código Penal. Porém não foi isso que fez. Ao contrário, foi cauteloso ao exigir que a imputação necessária é a de um fato que seja tipificado no ordenamento jurídico brasileiro como crime, sendo prescindível, então, qualquer análise a respeito da capacidade penal da vítima da imputação para determinar se ela terá ou não sua honra protegida. Não se sabe se o legislador pensou ou não nos inimputáveis quando elaborou o tipo penal da calúnia. No entanto, é certo que a dicção do dispositivo legal mencionado é determinante para proteção da honra desses sujeitos, vez que mesmo dizendo uma coisa, há quem diga que o tipo diz outra. Isso que permite imaginar-se, então, o que diriam se realmente fosse exigida a prática de um crime? Provavelmente inventariam outros requisitos.

Aliás, nessa nuance, vale citar a exemplificação feita por Cezar Roberto Bitencourt, em que ele relata a semelhança entre a situação ora abordada e os crimes próprios. Nos crimes próprios, como é sabido, embora tenha-se a prática da conduta típica (definida como crime), não se fala em configuração do delito, por não possuir, o agente, a condição especial exigida no tipo penal310.

Dessa forma, sob a análise do artigo 138 do Código Penal, depreende-se que se determinado sujeito atribuir a outro a prática de um fato definido como crime próprio, embora não seja juridicamente possível que a vítima tenha cometido o crime propriamente dito, ter-se-á a configuração do delito de calúnia, tendo em conta que houve a imputação de um fato definido como crime.

Conquanto, a imputação, obviamente, deve ser idônea, isto é, deve ser possível de ter acontecido ao menos na esfera fática (desconsiderando-se a possibilidade jurídica). Esclarecendo, deve-se incidir o Princípio da Razoabilidade sobre as imputações, o que para o tema deste trabalho, será abordado em tópico autônomo. Entretanto, adiantando prudentemente o que seria a incidência desse princípio, justamente para a adequada compreensão da situação exposta, exemplifica-se uma hipótese em que incidirá a referida idoneidade ou razoabilidade da imputação nos crimes próprios.

Suponha-se que se impute, falsamente, à uma mulher, que há algum tempo, ela matou seu filho logo após o parto sob a influência de estado puerperal (crime de infanticídio, previsto no artigo 123 do Código Penal – exemplo de crime próprio). Ora, seria possível que uma pessoa que não conhecesse a mulher (não soubesse que ela nunca engravidara ou que ela era infértil) acreditasse que ela realmente agiu da forma que lhe foi imputada? Obviamente que sim, já que, em regra, as mulheres podem engravidar e ter filhos. Mas se essa imputação fosse feita a um homem? Notadamente ninguém acreditaria, pois, homens não geram crianças.

Claramente, não se pode olvidar que em algumas circunstâncias, no campo jurídico, se o homem induz ou auxilia a mulher na prática do infanticídio, poderá responder criminalmente como coautor. Porém, aqui só se deve levar em consideração a atribuição fática possível, de maneira que para que houvesse, nesse caso, a configuração da calúnia, a imputação feita ao homem deveria corresponder, corretamente, à sua conduta (auxiliar ou induzir a gestante). No entanto, em casos de pessoas com a aparência masculina, mas que possuem o corpo feminino, a configuração da calúnia no exemplo dado seria possível, desde fosse a vítima da imputação capaz de gerar um filho.

Depreende-se, então, que o raciocínio perante a imputação falsa da prática de um crime próprio, a um sujeito que não é capaz de cometer o crime, que o fato imputado configuraria, é o mesmo quando a imputação de um fato definido como crime é feita a um inimputável.

Outra percepção não se pode ter a respeito da corrente minoritária, então, a não ser a de que os defensores dessa corrente, embora sejam doutrinadores renomados, equivocam-se na interpretação do tipo penal, como bem afirma Busato311 em trecho já apontado no tópico que trata da divergência doutrinária sobre o tema. Aliás, na mesma linha de raciocínio, reforçando que a imputação necessária para configurar o delito de calúnia não precisa ser de um crime, leciona Rogério Greco:

Na verdade, quando buscamos saber se um inimputável pode ser sujeito passivo do crime de calúnia, seja essa inimputabilidade originária de doença mental, seja de menoridade penal, devemos primeiramente, interpretar a expressão contida na última parte do art. 138 do Código Penal, que afirma que a calúnia diz respeito à imputação falsa de um fato definido como crime. Entendemos que o diploma repressivo tão somente exige a imputação a alguém de um fato definido como crime, mesmo que essa pessoa, dada sua incapacidade de culpabilidade, não possa, tecnicamente, cometer o crime, que se lhe imputa, para efeitos de responsabilidade penal. O que se exige, frise-se, é a imputação de um fato que se encontra na lei penal definido como crime.312

Além do mais, cumpre ressaltar, que pela dicção do próprio tipo penal do crime de calúnia, é notória a impossibilidade de configuração do referido delito quando se atribuir ao sujeito a prática de um crime propriamente dito e não a prática de um fato criminoso (fato definido como crime). Razão essa que, segundo o Princípio da Legalidade (o qual já teve sua relação com o tema minuciosamente abordada no capítulo em que é feita a análise dos aspectos constitucionais sobre o tema), a conduta praticada pelo agente deve, necessariamente, se amoldar com perfeição ao fato previamente previsto em lei como criminoso, previsão a qual, inclusive, deve ser acompanhada da respectiva cominação legal.

Nesse sentido, Fernando Capez afirma que “[...] somente haverá́ crime quando existir perfeita correspondência entre a conduta praticada e a previsão legal”313. Logo, para que o agente incorra nas sanções de determinado crime, sua conduta deve se amoldar perfeitamente ao fato típico previsto.

Dessa forma, como o artigo 138 do Código Penal prevê como conduta delituosa a atribuição falsa da prática de “fato definido como crime”, não é possível que a atribuição da prática de determinado crime se configure no delito de calúnia. Ademais, como se sabe, essa vedação à não extrapolação da literalidade do tipo penal deriva não só do Princípio da Legalidade, mas também da regra aplicada ao Direito Penal, segundo à qual é vedada a utilização de analogia in malam partem (em prejuízo do autor da conduta criminosa).

Necessário se toma lembrar, nessa vereda, as afirmações já expendidas no capítulo em que foi tratado sobre a análise do crime de calúnia, no sentido de que é entendimento, quase unânime, na jurisprudência pátria de que a atribuição do nomen iures (denominação jurídica) do delito não é capaz de configurar o crime de calúnia, sendo necessária a imputação de um fato específico e determinado, tendo sido citados diversos julgados das Cortes Superiores nacionais (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça) nesse sentido.

Nesse sentido, vale relembrar um trecho do seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal:

[...] 3. O crime de calúnia exige, para sua configuração, imputação de fato falso e determinado. Mera alusão ao nomen iuris do crime em ofensas pessoais não configura o crime de calúnia se não há imputação de fato circunscrito numa situação específica. [...]314.

Como na jurisprudência, na doutrina há analogia, no mesmo sentido. Cezar Roberto Bitencourt, por exemplo, também entende necessário que a imputação seja determinada e que sejam individualizadas as circunstâncias identificadoras do fato (específica). A saber:

[...] A imputação deve referir-se a fato determinado, sendo insuficiente, por exemplo, afirmar que a vítima furtou. É indispensável individualizar as circunstâncias identificadoras do fato, embora não sejam necessários detalhes minuciosos que, muitas vezes, somente a própria investigação pode conseguir. [...]315.

Diante disso, depreende-se com segurança que, de acordo com o ordenamento jurídico pátrio, a atribuição falsa da prática de um crime a alguém jamais seria capaz de configurar o delito de calúnia. Assim sendo, não se pode permitir que o inimputável não tenha sua honra protegida, pelo fato de parte da doutrina possuir entendimento, juridicamente, impossível sobre a conduta típica, prevista no crime de calúnia.

Outra exigência descabida feita pela doutrina para que o inimputável tenha sua honra protegida no crime de calúnia, é a capacidade de entender o caráter ofensivo da imputação. Segundo Fernando Capez, Mirabete faz tal exigência:

[...] Mirabete, por sua vez, sustenta que, “para nós, mencionando a lei não a prática de ‘crime’, mas de ‘fato definido como crime’, é possível o cometimento do crime de calúnia contra o menor ou o alienado mental que possua algum entendimento”316.

Percebe-se que embora Mirabete entenda ser possível a proteção da honra do inimputável, como sujeito passivo do crime de calúnia, pelo fato de a conduta típica deste se tratar da falsa imputação de fato definido como crime, a doutrinadora defende a exigência de que o inimputável possua algum entendimento sobre a conduta que lhe foi atribuída.

Nessa mesma linha de raciocínio, Cezar Roberto Bitencourt, ainda que seja favorável à proteção da honra do inimputável quando esse for vítima de calúnia, tendo sido, inclusive, diversas vezes citado neste trabalho, também entende como necessária a capacidade de discernimento do inimputável como condição para configuração do delito317.

Ora, como já aludido, reafirma-se: tal exigência demonstra-se claramente descabida.

Conforme já planeado minunciosamente em capítulo autônomo, o crime de calúnia tutela a honra objetiva de seu sujeito passivo, sendo que a ofensa à última, como é sabido, diz respeito à reputação do sujeito perante à sociedade. Isto é, reflete como a sociedade vê aquele sujeito em relação aos seus atributos (morais, sociais, físicos, etc.).

Por outro lado, uma ofensa à honra subjetiva atinge o íntimo do ofendido, podendo gerar várias consequências, como por exemplo, fazê-lo refletir sobre a pessoa que é, causar-lhe repulsa de si mesmo, mudar seu modo de agir, deprimi-lo, causar-lhe problemas psicológicos (como depressão, por exemplo), diminuir sua autoestima, etc. Por isso, quando a ofensa atinge a honra subjetiva da vítima, denota-se, com nitidez, que é justificável a exigência de que o sujeito entenda a ofensa, já que essa deve ser capaz de gerar consequências como as ora citadas.

Não obstante, no que diz respeito à honra objetiva, não se pode adotar o mesmo entendimento. No crime de calúnia, a ofensa não gera consequências que dependerão da forma com que a vítima vai reagir com as imputações que lhe foram feitas, mas da forma com que a sociedade reagirá a essas imputações, já que esse delito tutela apenas a honra objetiva da vítima, que em linhas gerais, nada mais é que sua reputação. Desse modo, as consequências, nesse caso, dependerão unicamente da reação da sociedade, o que permite a conclusão de que, independentemente da capacidade do agente de compreender a ofensa, ele poderá sofrer tais consequências.

Aliás, convém frisar que uma má reputação pode gerar, no meio social, diversas consequências negativas, tais como a exclusão social, o bullying, a discriminação, a violência, dentre outras. Assim, pouco importa se a vítima de uma calúnia tem capacidade de entender a ofensa que lhe foi proferida, porque, tendo ela entendido ou não, sofrerá as consequências desta no meio social.

Nota-se, então, que a capacidade de compreensão não é fator determinante para que a lesão à honra objetiva do sujeito se concretize no crime de calúnia, eis que o que se busca com a tutela penal nesse delito é justamente evitar que a vítima tenha sua reputação denegrida.

Portanto, percebe-se que como não se trata de ofensa à honra subjetiva do agente (o que ele pensa dele mesmo), é prescindível que ele entenda o caráter ofensivo da imputação que lhe é feita.

Por fim, ressalta-se que embora a conduta típica do crime de calúnia não possa ser considerada como uma falsa imputação de crime a alguém, conforme supra demonstrado, vale considerar que mesmo se fosse possível que tal imputação fosse capaz de configurar o aludido delito, ainda assim seria possível o alcance da tutela penal aos inimputáveis.

Tal asserção se explica da seguinte maneira:

Conforme já ressaltado, há vasta divergência na doutrina pátria sobre qual a teoria do crime adotada no Código Penal da República Federativa do Brasil.

Pois bem.

Para os doutrinadores partidários da Teoria Bipartida do Delito, não há qualquer óbice para que o inimputável seja sujeito passivo do crime de calúnia, eis que entendem que a culpabilidade é mero pressuposto de pena. Logo, de acordo com essa teoria, o inimputável seria perfeitamente capaz, do ponto de vista jurídico, de praticar um crime, mas não sofreria pena e sim medida de segurança.

Assim, se tal teoria do crime for a adotada no Código Penal pátrio, seriam os inimputáveis capazes de praticarem crimes e, por conseguinte, se a conduta típica do crime de calúnia consistisse na imputação a alguém da prática de um crime, o inimputável, notadamente, teria sua honra protegida quando caluniado.

Aliás, apenas a título de registro, conforme já ressaltado em tópico anterior, embora o entendimento majoritário da doutrina seja o de que é a Teoria Tripartida a adotada no Código Penal Brasileiro, analisando esse diploma legal, vê-se que ele se adequa com maior perfeição à Teoria Bipartida do Delito.

Nessa linha, nota-se que independentemente da teoria do crime adotada no Código Penal Pátrio, o entendimento de que o inimputável não pode ser sujeito passivo do crime de calúnia não tem embasamento jurídico legal.

Isso porque, adotando-se qualquer uma das teorias, é nitidamente possível, do ponto de vista jurídico, que o inimputável pratique um fato definido como crime. Além disso, acolhendo-se o equivocado entendimento de que a conduta típica do crime de calúnia consiste na atribuição falsa da prática de um crime e aplicando-se a Teoria Bipartida do Delito, o que é permitido pelo Código Penal Pátrio, por não ter sido claro nesse sentido, bem como por tratar do instituto da culpabilidade como pressuposto de pena, o que torna provável a aplicação dessa teoria, seria juridicamente possível considerar que inimputável tem capacidade praticar um crime.

Assim sendo, é possível concluir que, jurídica e legalmente, não há qualquer óbice para a proteção da honra do inimputável quando esse for caluniado.

5.4 Argumentos extralegais

Inicialmente, salienta-se que os argumentos apresentados neste tópico, embora sejam favoráveis ao alcance da tutela penal ao inimputável como sujeito passivo do crime de calúnia, não têm amparo na lei, apenas em valores sociais e morais, que estão sempre em linha paralela com o Direito.

Desse modo, o que se pretende mostrar nesse tópico são argumentos morais, sociais, de política criminal, dentre outros, que fundamentam a necessidade de proteção da honra do inimputável mesmo quando se adota a Teoria Tripartida do Delito e se considera que a conduta típica do crime de calúnia se trata de falsa imputação da prática de um crime, o que impossibilitaria, em tese, a proteção da honra do inimputável.

Assim, passa-se a expor-se tais fundamentos.

Embora nos termos da Teoria Tripartida do Delito o inimputável não cometa crime do ponto de vista jurídico, ele possui honra objetiva. Dessa forma, quando é caluniado, tem sua honra lesada como qualquer pessoa humana, podendo sofrer diversas consequências com a modificação negativa de sua reputação, como discriminação e exclusão social.

Depreende-se, então, que se a finalidade do direito penal é tutelar os bens jurídicos de maior relevância para o ser humano (Princípio da Fragmentalidade e da Intervenção Mínima), dentre os quais a honra está abrangida, não há porque excluir dessa proteção o inimputável que, como qualquer ser humano, sofre lesão à sua honra objetiva e é prejudicado significativamente com as consequências dessa lesão, pelo mero fato de que, de acordo com determinado entendimento doutrinário, tal sujeito não é capaz de cometer crimes do ponto de vista jurídico.

Aliás, como diversas vezes tem-se afirmado que, segundo os adeptos da Teoria Tripartida do Delito, o inimputável não é capaz de praticar crimes do ponto de vista jurídico, explica-se tal consideração: embora segundo esse entendimento o inimputável não tenha a capacidade de cometer um crime, como é sabido, na realidade, sabe-se que o inimputável é capaz, claramente, de cometer uma conduta típica (fato definido como crime), o que, para os desconhecedores do direito, nada mais é que um “crime”.

Desta forma, o que se afirma quando se diz que o inimputável não seria capaz de cometer um crime do ponto de vista jurídico, é que sua condição (inimputabilidade) lhe impede de preencher todos os elementos do delito. Porém no campo fático, da realidade, é perfeitamente possível que ele execute a conduta delituosa.

Portanto, após essas considerações, há de se concluir que não se pode permitir que a ausência de um requisito jurídico (culpabilidade), seja óbice para a proteção da honra objetiva de um sujeito que sofre os efeitos práticos, como qualquer ser humano, quando tem sua honra lesada, bem como que tem a capacidade real de praticar crimes como qualquer ser humano, diferenciando-o dos imputáveis apenas pelo fato de não ter a capacidade de entender o caráter criminoso da conduta que lhe é falsamente imputada, igualmente como por não ter a capacidade de determinar-se a partir desse entendimento.

Nessa perspectiva, vale salientar que a reputação, conforme já explicado em capítulo anterior, nada mais é do que o reflexo da imagem que a sociedade em geral tem do sujeito. Assim, como a sociedade, em sua maioria, é formada por pessoas que não possuem conhecimento jurídico aprofundado, percebe-se que a reputação do inimputável não deixaria de ser modificada, negativamente, se lhe atribuíssem a prática de um crime (considerando que a conduta típica fosse tal atribuição) pelo fato de que, do ponto de vista jurídico, ele não comete crime.

Dessa forma, se efetivamente será lesado com a falsa imputação e se é capaz de praticar um crime na realidade, o fato de juridicamente não ser capaz de ocorrer a configuração de um crime, por não possuir capacidade de entender o caráter criminoso da conduta que lhe foi imputada e determinar-se a partir desse entendimento, não deve ser óbice para que tenha sua honra objetiva protegida. Como já explicado, o que influencia a sociedade a modificar, negativamente, a reputação da vítima é a simples atribuição da conduta típica e o conhecimento de sua ilicitude, pouco importando se o agente entendia ou não o que estava fazendo. Ou seja, a sociedade não pondera se aquela conduta imputada configura um crime propriamente dito ou não, não se faz esse juízo de valor sobre os demais elementos do delito, justamente porque esses não são conhecidos.

Aliás, mesmo que de alguma forma o conhecimento jurídico fosse amplamente difundido no seio da sociedade e essa, em sua maioria, soubesse diferenciar um delito de uma simples conduta típica, denota-se que a lesão à reputação do sujeito ainda existiria, justamente porque o fator determinantemente prejudicial à reputação do sujeito não é o fato de uma conduta ser considerada como delito, e sim, o fato de ser ela considerada ilícita, ou melhor, proibida. Assim, mesmo se a sociedade conhecesse que o inimputável não comete crime porque não tinha a capacidade de entender e se determinar de acordo com essa capacidade quando da execução do delito, só se veria que ele é uma pessoa “perigosa”, um “criminoso” porque praticou a conduta ilícita.

Nesse liame, apreende-se, então, que não dar proteção à honra do inimputável quando esse sofrer a falsa imputação da prática de crime (considerando a aplicação da corrente minoritária sob a égide da Teoria Tripartida do Delito), permite o desenvolvimento de um senso comum de discriminação e exclusão social desses sujeitos, principalmente quando a imputação for dirigida a deficientes mentais.

Tal conclusão é auferida a partir da seguinte reflexão: se a cada vez que se atribuir falsamente a prática de um fato definido como crime a um doente mental e este não puder ter sua honra protegida, justamente pela condição de doente mental que tem, criar-se-á um pensamento social de que se trata de uma conduta lícita, que não é reprovada pelo ordenamento jurídico pátrio. E mais, tal pensamento social abrange também a ideia de que a honra do doente mental não tem o mesmo valor jurídico que a dos demais seres humanos ou simplesmente que tais sujeitos não são possuidores de honra. Esses não só propiciariam a discriminação desses sujeitos que já são por demais discriminados e excluídos no meio social, como também “legalizariam” tal discriminação e influenciariam para a exclusão social.

Nesse sentido, leciona Busato:

Finalmente, importa referir que a sustentação em contrário implica reconhecer que os menores de 18 anos e os portadores de desordens mentais que prejudiquem a compreensão das normas não são detentores de honra, o que revela, no mínimo, uma postura altamente discriminatória318.

Busato, acertadamente, ainda diz que considerar a conduta caluniosa proferida ao doente mental, como difamação, apenas mascara o caráter discriminatório do entendimento segundo o qual o inimputável não pode ter sua honra protegida no crime de calúnia, já que a imputação de uma conduta criminosa é mais lesiva que uma simples ofensa difamatória. A saber:

Poder-se-ia dizer que, no caso dos menores de 18 anos e dos doentes mentais, não se trata de calúnia, porque não é crime, mas sim de difamação. Entretanto, essa postura mascara novamente um perfil discriminatório, porquanto é sabido que, ao contrário da conduta meramente desonrosa, a imputação de uma conduta capaz de sofrer a intervenção do sistema de controle punitivo – seja com medidas ou penas – é perfeitamente capaz de promover uma ofensa à honra de maior magnitude do que aquela319.

Nessa vereda, infere-se que a coerência da asserção de Busato pode ser comprovada pela simples comparação das penas dos crimes de calúnia e difamação, sendo que a pena do primeiro, prevista no artigo 138 do Código Penal, poderá ser de seis meses a dois anos, cumulada com pena de multa, enquanto a pena do segundo, prevista no artigo 139 do Código Penal, poderá ser apenas de três meses a um ano, também cumulada com pena de multa.

Aliás, vale também citar as considerações feitas por Luis Regis Prado, que também afirma que o inimputável é detentor de honra e, por isso, deve ter a proteção dessa através do delito de calúnia. Veja-se:

Indaga-se também, nesse contexto, se uma criança ou um doente mental pode ser sujeito passivo da calúnia. Por um lado, sustenta-se que os inimputáveis, por serem despojados da plena capacidade de culpabilidade – entendida como capacidade entender e de querer – e, de consequência, de responsabilidade criminal, não podem ser sujeitos passivos dos delitos de calúnia. De outra parte, assinala-se, com acerto, que as razões que justificam a incapacidade de culpabilidade não pedem ser invocadas para excluir a proteção que a lei penal confere a reputação e ao sentimento de dignidade que inimputáveis possam ter. todo ser humano é titular o bem jurídico honra. Assim, aqueles que carecem de capacidade de culpabilidade (v.g., menores, doente mentais, portadores de desenvolvimento mental incompleto ou retardado etc.) também merecem a proteção dispensada pelo Direito [...]320.

Por óbvio, o menor de 18 (dezoito) anos de idade também sofreria as mesmas consequências supramencionadas, porém com menor intensidade, haja vista que, por mais repugnante que isso seja, no seio da sociedade já existe um pré-conceito negativo em relação aos doentes mentais que não alcança aqueles.

Além do mais, nessa mesma linha de raciocínio, percebe-se que o inimputável, muito provavelmente, seria visto na sociedade como um potencial criminoso, podendo-se entender que não faz jus à proteção justamente pelo fato de estar propenso a cometer crimes a qualquer momento, tendo em vista sua deficiência de discernimento ou seu desenvolvimento mental incompleto.

Assim, percebe-se que esse senso comum que se criaria no entorno das pessoas que não têm um conhecimento jurídico mínimo, deriva de um raciocínio lógico sobre as consequências da não reprovação da conduta caluniosa em relação ao inimputável, uma vez que, de tanto ser caluniado e não ter direito à proteção estatal, tal entendimento acaba se consolidando, de maneira que se crava no meio social como verdade, para os leigos.

Portanto, supondo que a ausência de proteção da honra do inimputável através do crime de calúnia fosse legal, levando-se em consideração os aspectos sociais e morais que pairam sob o tema, nota-se que ainda assim a proteção da honra do inimputável seria a medida mais adequada. Isso porque esse sujeito também é detentor de honra e a adoção de entendimento contrário, pelo legislador, nada mais seria que uma discriminação legalizada, o que não suprime da norma o seu caráter violador de Direitos Humanos. Para reforço dessa reflexão, basta recordar-se da parecida situação presenciada pelo mundo durante o Nazismo de Adolf Hitler.

5.5 Necessidade de aplicação do princípio da razoabilidade

Em que pese o inimputável, como qualquer outro ser humano que recebe a tutela estatal, mereça ter sua honra protegida quando for caluniado, não se pode olvidar que a falsa imputação deve ser idônea e séria. Isto é, se a calúnia consiste na falsa imputação da prática de um fato definido como crime, é necessário que, na realidade, o inimputável seja capaz de praticar a conduta que lhe foi imputada.

No entanto, diante da diversidade de possibilidade de imputações, não é possível estabelecer previamente quais devem ser tuteladas pelo direito penal e quais não devem.

Assim, as falsas imputações realizadas deverão ser analisadas caso a caso, tomando como parâmetro o Princípio da Razoabilidade.

A título de exemplo, ressalta-se que é inidônea a imputação de que uma criança recém-nascida teria subtraído de outra uma mamadeira ou que teria furtado um veículo, já que tal conduta imputada a esse inimputável jamais seria possível de ocorrer no “mundo real”. Nesse sentido, leciona Fernando Galvão:

[...]. A melhor solução, no entanto, remete-se à analise para as circunstâncias do caso concreto. Quando a imputação falsa for dirigida a uma criança em tenra idade ou a um louco que reconhecidamente é incapaz de realizar a conduta punível, haverá́ a impossibilidade material de ofensa à honra do inimputável. Diante das circunstâncias do caso concreto, pode o juiz reconhecer que o meio empregado para ofender a honra da pessoa é absolutamente ineficaz (art. 17 do CP), tornando o crime de calúnia impossível. Por outro lado, se a imputação tiver potencial para ofender a honra objetiva do inimputável deve-se reconhecer a possibilidade de caracterização do crime de calúnia321.

Percebe-se que Fernando Galvão, com acerto, enquadra a imputação irrazoável como crime impossível, já que o meio empregado (fato) é absolutamente ineficaz, porque não gera qualquer potencialidade de lesão à honra da pessoa.

Na mesma linha de raciocínio, leciona Rogério Greco:

Raciocinemos: pode-se imputar falsamente a um adolescente, com 17 anos de idade, a prática de um fato definido como um crime de furto? Imagine-se que o agente, autor do delito contra a honra, tenha afirmado falsamente a um terceiro que o mencionado adolescente levara a efeito a subtração de um aparelho de DVD. Pode-se, razoavelmente, acreditar que uma pessoa com 17 anos de idade tenha praticado a subtração do mencionado aparelho? A resposta só pode ser afirmativa. O que se está atribuindo ao adolescente é tão somente a prática de um fato, ou seja, a subtração de coisa alheia móvel, definido como crime (no caso aquele previsto pelo art. 155 do Código Penal)322.

Não obstante, sendo inverossímil (impossível de acontecer) a imputação, não há de se falar em calúnia, conforme acrescenta Grecco:

Agora, imagine-se a hipótese em que o agente tenha atribuído a um recém-nascido, ou seja, uma criança com poucos meses de vida, a prática do mencionado delito de furto (só que agora de uma maneira, obviamente...). Seria razoável acreditar que uma criança de 6 meses de idade, ou até mesmo de um ano de vida, tenha praticado um fato definido como crime? Nessa hipótese, cairíamos naquilo que discutimos anteriormente, que diz respeito à ausência de verossimilhança da imputação323.

Dessa forma, sendo razoável, verossímil e idônea a imputação feita ao inimputável, a configuração do delito de calúnia é possível. Do contrário, não haverá de se falar em calúnia. Nesse sentido, concluiu Rogério Greco:

Portanto, concluímos, nada impede que, de acordo com o princípio da razoabilidade, se entenda que um inimputável possa, em tese, praticar um fato descrito como crime na lei penal, mesmo que por ele não possa ser responsabilizado criminalmente324.

Nota-se, portanto, que a imputação feita ao inimputável deve ser possível de existir no “mundo real”, isto é, deve ser verossímil, conforme ensina Grecco. Assim, caso tal imputação não seja idônea, de acordo com o Princípio da Razoabilidade, a atribuição caluniosa deve ser considerada como crime impossível (artigo 17 do Código Penal), tendo em vista que o meio utilizado pelo agente é absolutamente ineficaz, não possuindo, portanto, qualquer potencialidade lesiva à honra do inimputável.

Sobre os autores
Carlos Eduardo Pires Gonçalves

Graduado em Direito pela Universidade Paranaense (2004). Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Penal pela Unp - Universidade Potiguar. Professor das disciplinas de Processo Penal II, Direito Penal III e IV, e Prática Processual Penal I e II no curso de Graduação em Direito da Unifamma. Leciona em diversos cursos de pós-graduação na área criminal.

Guilherme Rodrigues de Figueiredo

Graduado em direito pelo Centro Universitário Metropolitano de Maringá - UNIFAMMA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Carlos Eduardo Pires; FIGUEIREDO, Guilherme Rodrigues. Da (im)possibilidade de o inimputável figurar como sujeito passivo no crime de calúnia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6927, 19 jun. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72254. Acesso em: 12 mai. 2024.

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