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O limite legal à taxa de juros

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Agenda 01/08/1999 às 00:00

Os juros correspondem ao preço do uso; daí usura, vocábulo empregado originariamente para designar o empréstimo de dinheiro mediante remuneração. Segundo Ronaldo Lupinacci, (Limite da Taxa de Juros no Brasil, 1ªed, LED, SP, 1998, p.27), hoje o termo significa lucro exagerado ou juro excessivo. Esta é a acepção léxica da palavra.

No âmbito jurídico, ensina Plácido e Silva (Vocabulário Jurídico, Forense, SP, 1987, p.446) que "no conceito atual, usura não significa simplesmente o interesse devido pelo uso de alguma coisa. É o interesse excessivo, isto é, a estipulação exagerada de um juro, que ultrapasse ao máximo da taxa legal, ou estipulação de lucro excessivo, ou excedente do lucro normal e razoável."

A usura e a veemente condenação a esta prática é tão antiga quanto a história da civilização econômica. Os romanos limitavam as taxas de juros; a mais alta não passava de 8% ao ano (Gabriel Wedy em O Limite Constitucional dos Juros Reais, Síntese, Porto Alegre, 1997, p.21). No Código de Hamurabi, por volta de 1.700 a.C., a punição à extrapolação do limite máximo era a perda do capital emprestado.

Aristóteles dizia, já em 350 a.C., num texto que se adequa aos dias atuais (Política, traduzido do grego por Mário Kury, UNB, 1981, p.288):

          "O objeto original do dinheiro foi facilitar a permuta, mas os juros aumentavam a quantidade do próprio dinheiro (esta é a verdadeira origem da palavra: a prole se assemelha aos progenitores, e os juros são dinheiro nascido do próprio dinheiro); logo, esta forma de ganhar dinheiro é de todas a mais contrária à natureza."

Do Direito Romano ao Medieval e finalmente a usura chegou à terra brasilis através das Ordenações Filipinas, código de 1603 que permaneceu em vigor até 1917, por força da Lei de 20 de outubro de 1823, artigo 2º. No Livro Quarto das Ordenações os contratos usurários eram reprimidos. A Lei de 24 de outubro de 1832, entretanto, quebra a tradição – sob influência do liberalismo francês – liberando a estipulação de juros, embora fixasse a taxa legal em 6%, no artigo 4º.

O Código Civil, quase um século após, manteve a lacuna, não estabelecendo limite legal, a não ser para o caso de ausência de convenção ou convenção sem taxa definida. Manteve a fixação da taxa de seis pontos percentuais ao ano para os juros moratórios, no artigo 1.062. O artigo 1.262, no entanto, liberava a taxa convencionada.

A Revolução de 30 encerrou a era do Café com Leite, e Getúlio Vargas promoveu mudanças estruturais na economia do país. Neste quadro surgiu a Lei da Usura, através do Decreto-Lei 22.626, de 7 de abril de 1933, que acompanhando a tendência mundial (França, Alemanha, Áustria, Portugal, Espanha, etc.) fixou um limite para a taxa de juros.

Diz a Lei da Usura:

          "Art. 1º - É vedado, e será punido nos termos desta lei, estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal (Código Civil, art. n. 1.062). (...)

Art. 2º - É vedado, a pretexto de comissão, receber taxas maiores do que as permitidas por esta lei."

Esta proibição à usura foi alçada à hierarquia constitucional pela Carta Magna de 1934, no artigo 117, parágrafo único. A Constituição de 1937 repetiu o preceito no artigo 142 e a de 1946 fez o mesmo no artigo 154.

Em 1938, ainda por influência da política de moralização econômica do governo Vargas, a usura foi erigida à condição de ilícito penal, com a edição do Decreto-Lei 869/38 (artigo 4º, alínea b), e treze anos mais tarde foi tipificada como crime pela Lei 1.521, de 1951, no artigo 4º, alíneas a e b e § 3º.

Ocorre que em meio a crise econômica e política de 1964 foi editada a Lei 4.595, chamada Lei da Reforma Bancária, que reestruturou o sistema financeiro nacional e criou o todo-poderoso Conselho Monetário Nacional – CMN, cuja competência foi determinada no artigo 4º:

          "Art. 4º - Compete ao Conselho Monetário Nacional...:

(...)

IX – limitar, sempre que necessário, as taxas de juros..."

Surgiu então a Súmula 596 do STF, segundo o qual "as disposições do Decreto 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional."

Foi o julgamento do Recurso Extraordinário 78.953, de São Paulo, em 5 de março de 1975, que cristalizou esta súmula, em decisão unânime cujo relator foi o Ministro Cordeiro Guerra, que emitiu seu voto nestes termos:

          "(...) Penso que o art. 1º do Dec. 22.626 está revogado, não pelo desuso ou pela inflação, mas pela L. 4.595, pelo menos no pertinente às operações com as instituições de crédito, públicos ou privados, que funcionam sob o estreito controle do Conselho Monetário Nacional. (...)"

Em 1976 o Banco Central expediu a Resolução 389, autorizando os bancos comerciais a operar "taxas de mercado". Estava formalizada a usura.

Só em 1988 vem a atual Constituição Federal, recepcionando o Decreto 22.626/33, retomar a vedação máxima à usura, impondo inclusive limite determinado, em 12% ao ano, no artigo 192, § 3º, como já o era na legislação ordinária.

Pois bem. O limite à taxa anual de juros sempre foi, desde a Lei da Usura, em 1933, o de doze por cento.

A Lei da Reforma Bancária já era, nesta parte, contrária à Constituição de 1946. Insubsistente qualquer tentativa de justificar a delegação de poder a um órgão do Executivo sobre matéria de competência exclusiva do Legislativo.

Agora em 1988 a Carta Magna manteve a sistemática de autonomia e independência dos Poderes – que no Direito pátrio só foi excepcionada nas Constituições "militares" de 1967 e 1969 – vedando a delegação de atribuições. Concomitantemente, uma novidade: o artigo 192, § 3º, repete o limite de 12%, já fixado na Lei da Usura.

A partir desta simultaneidade de disposições (a restauração da sistemática jurídica de independência de Poderes e a fixação de limite à taxa de juros), há dois nítidos caminhos a se percorrer no estudo da usura no Brasil. O primeiro é o limite constitucional dos juros, e o segundo é o infra-constitucional.


CONSTITUCIONALMENTE

A sustentação do limite constitucional dos juros parte do parágrafo 3º do artigo 192 da Constituição, que, segundo os estudiosos constitucionalistas, é dispositivo autônomo:

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          "Art. 192 – (...)

§ 3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar."

Sob a ótica constitucional, a polêmica ficou estagnada numa simples (6 votos a 4) decisão incidental do STF reputando como não auto-aplicável o parágrafo 3º do artigo 192 da Carta Magna.

Da ementa se extrai:

          "Tendo a Constituição Federal, no único artigo em que trata do Sistema Financeiro Nacional (art.192), estabelecido que este será regulado por lei complementar, com observância do que determinou no caput, nos seus incisos e parágrafos, não é de se admitir a eficácia imediata e isolada do disposto em seu parágrafo 3º, sobre a taxa de juros reais (12% ao ano), até porque estes não foram conceituados. Só o tratamento global do Sistema Financeiro Nacional, na futura lei complementar, com observância de todas as normas do caput, dos incisos e parágrafos do art. 192, é que permitirá a incidência da referida norma sobre juros reais e desde que estes também sejam conceituados em tal diploma.

Em conseqüência, não são inconstitucionais os atos normativos em questão (parecer da Consultoria-Geral da República, aprovado pela Presidência da República e circular do Banco Central), o primeiro considerando não auto-aplicável a norma do parágrafo 3º sobre juros reais de 12% ao ano, e a segunda determinando a observância da legislação anterior à Constituição de 1988, até o advento da lei complementar reguladora do Sistema Financeiro Nacional."

          (STF; ADIn 4-7-600-DF, RTJ 147/719-858)

Foi no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pelo PDT contra ato normativo do Presidente da República, que homologou o parecer SR-70 da Procuradoria-Geral da República, através do Consultor-Geral Saulo Ramos, no dia seguinte à promulgação da Constituição, em 6 de outubro de 1988. Em 7 de outubro o Banco Central emitiu a Circular 1.365, notificando os bancos de que o limite de 12% não precisaria ser respeitado.

O tal parecer do advogado Saulo Ramos se baseava na possibilidade de que a limitação de juros poderia ocasionar desvio de capitais para o câmbio paralelo e para a especulação do ouro. Sobre este parecer falou o Deputado Fernando Gasparian (A Luta Contra a Usura, 1ªed, GCN, DF, 1991, p.13) autor da "Emenda Gasparian" que se tornou o parágrafo 3º do artigo 192 da CF:

          "Não é preciso ser jurista para entender o mal-amarrado sofisma do advogado. O que o caput pede é lei complementar que, na obediência dos incisos que se seguem, reestruture todo o Sistema Financeiro Nacional. O § 3º que, na realidade, deveria ser um artigo a parte, é, em si mesmo, conclusivo, impondo aplicação imediata. O que se pode complementar ou regulamentar de um mandamento tão explícito?"

A clareza deste dispositivo constitucional só veio a ser distorcida a partir do dito parecer e de outros encomendados por instituições financeiras.

Conta Ronaldo Lupinacci (obra citada, p.36) que "por solicitação da Federação Nacional dos Bancos e da Federação Brasileira das Associações de Bancos, diversos juristas forneceram pareceres contrários à aplicação imediata do teto de 12% anuais, tal como previsto no § 3º do art. 192 da Constituição Federal. Foram eles Hely Lopes Meirelles, Caio Tácito, José Frederico Marques, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Celso Bastos, Ives Gandra da Silva Martins, Rosah Russomano, José Alfredo de Oliveira Baracho, Cid Heráclito de Queiroz, Arnoldo Wald e Geraldo Vidigal. Tais pareceres serviram de fundamento para o voto condutor, proferido pelo Ministro Sidney Sanches."

Antes disso não havia controvérsia. Até mesmo no âmbito do Congresso Nacional, onde nasceu a norma, o entendimento era cristalino.

Como noticia Gabriel Wedy (obra citada, p.42), o relator constituinte, Deputado Bernardo Cabral, respondendo questionamento do Deputado César Maia, respondeu ao Deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembléia Nacional Constituinte:

          "Sr. Presidente, respondo com muita satisfação ao eminente constituinte César Maia. A remissão ‘nos termos da lei’ é feita quanto aos crimes de usura. O que se estabelece no texto permanente é que as taxas de juros reais não poderão ser superiores a 12% ao ano. Isto é auto-aplicável, evidentemente."

Decidiu-se em 1989, liminarmente, e no mérito, em 1991, que a eficácia do parágrafo 3º do artigo 192 da Constituição Federal estaria a depender da edição de norma regulamentadora. Foram vencidos os Ministros Carlos Velloso, Paulo Brossard, Marco Aurélio e Ilmar Galvão.

A questão, por óbvio, se fez muito mais política do que jurídica. Denuncia Gabriel Wedy (obra citada, p.47):

          "Esta atitude do STF, em descumprir o limite constitucional de juros, trata-se de um ato eivado de conservadorismo e subserviência ao governo e às grandes instituições financeiras aglutinadas em um verdadeiro cartel."

Do voto vencido do Ministro Paulo Brossard na ADIn 4 uma das mais brilhantes exposições:

          "A usura encontrou o seu paraíso no Brasil, e foi exatamente isto que os constituintes quiseram enfrentar quando aprovaram a limitação dos juros reais em 12% ao ano. (...)

Dir-se-á que as instituições financeiras captam recursos a taxas superiores a 12% ao ano, e que elas não subsistiriam se não cobrassem remuneração que partisse do custo pago. O banco não pode tomar dinheiro a 24% e emprestá-lo a 12%. Nem a Constituição quer isto. (...) O que a Constituição quer é que os juros, por isso disse juros reais, não excedam a 12% ao ano. Ninguém ignora, de outro lado, que o Tesouro é o grande tomador de recursos no mercado, e que ele comanda, por conseguinte, a taxa de juros.

As instituições financeiras não podem competir com o Tesouro e têm de seguir-lhe as veredas sob pena de nada captarem. Esta a realidade. Ora, o constituinte não ignorava isso, e foi isso que ele quis modificar ao estabelecer uma regra peremptória, categórica, imperativa, consignada no § 3º do art. 192 da CF. É evidente que essa transformação, que deixou de ser feita em outubro de 1988, e que terá de ser feita, a menos que se conspire contra a Constituição e ela não venha a ser cumprida, é claro que não será feita sem dificuldades e sem resistências. A rotina é mais cômoda. A rotina vem de ruta, ‘caminho conhecido, sem surpresas’. Daí a resistência à mudança. E vai para 11 anos que o país vive na agiotagem. Virou rotina. É natural que pareça imodificável."

Brada o professor João Roberto Parizatto (Multas e Juros no Direito Brasileiro, 1ªed, LED, SP, 1996, p.82) que "o Poder Judiciário haverá de dar um basta em tal situação, revendo-se contratos bancários que estejam impondo taxas abusivas e distantes da realidade... não se justifica a nenhum entendimento legal, ético e jurídico a cobrança de juros que representam diversas vezes a própria inflação do país."

E arremata:

          "Pessoas físicas, jurídicas e micro-empresários não conseguem suportar taxas tão irreais, totalmente distanciadas da realidade atual do país, o que vem contribuindo para a quebra de tantas pessoas e empresas, que não conseguem pagar aquilo que devem aos bancos. Nada justifica a captação de recursos por um percentual e sua repassagem ao tomador do empréstimo em percentual várias vezes superior ao custo do dinheiro para a instituição financeira."

Walter Ceneviva (Direito Constitucional Brasileiro, 1ª, Saraiva, SP, 1989, p.19) reclama que "no Brasil, a eficácia e a validade da Constituição têm sido relacionadas com a conveniência do grupo dominante, embora variem os exercentes do poder no curso do tempo."

Mas, se socialmente o limite deve ser entendido como questão de justiça contra o protecionismo ao poderio econômico das instituições financeiras, juridicamente não há como escapar à conclusão de que esta norma constitucional só não é clara para quem não quiser compreendê-la assim. A começar pela questão da auto-aplicabilidade.

O relator da famosa ADIn 4, Ministro Sidney Sanches, concluiu que "uma vez que faz parte do contexto do artigo, o § 3º também tem de ser regulamentado por lei complementar."

Esta é a idéia central da tese vencedora, precedida por vários pareceres encomendados, já mencionados, entre os quais o de Ives Gandra Martins (A Constituição Aplicada, 1ªed, Cejup, Belém, 1989, p.13), segundo o qual o parágrafo 3º deve ser entendido como parte integrante do artigo 192, que, por sua vez, "hospeda" todo o sistema financeiro nacional; como este sistema seria regulado por lei complementar, também deveria sê-lo a matéria dos parágrafos, calculou o jurista.

Ambas as manifestações, data venia, são insubsistentes em si mesmas.

Primeiro porque o limite dos juros no parágrafo 3º é comando autônomo e não integra o Sistema Financeiro Nacional. Claro que não. Pode até que esta regra a ele se aplique, mas dele não faz parte. O fato de que haverá lei complementar para o SFN não induz que esta lei compreenda também a usura. O raciocínio é torto, sofismático.

Segundo porque a aplicabilidade – ou "empregabilidade", como prefere Ceneviva (obra citada, p.23) – não está sendo considerada com a suficiente exempção.

É o que se passa a ter em conta.

O incomensurável Rui Barbosa (Comentários à Constituição Federal Brasileira, vol II, Forense, Rio, 1933, p.488) definiu as normas auto-aplicáveis como as determinações que, para serem executadas, "não se haja mister de constituir ou designar uma autoridade, nem criar ou indicar um processo especial, e aquelas onde o direito instituído se ache armado por si mesmo, pela sua própria natureza, dos seus meios de execução e preservação."

Pontes de Miranda resume:

          "Quando uma regra se basta, por si mesma, para sua incidência, diz-se bastante em si, self-executing, self-acting, self-enforcing. Quando, porém, precisam as regras jurídicas de regulamentação, porque, sem a criação de novas regras jurídicas, que as completem ou suplementem, não poderiam incidir e, pois, ser aplicadas, dizem-se não bastantes em si."
          (Comentários à Constituição de 1967, 1ªed, vol I, 1968, p.126)

A doutrina americana – precursora na dicotomia da aplicabilidade das normas constitucionais – está consubstanciada nas palavras do jurista Thomas Cooley (Treatise on the Constitutional Limitations, 6ªed, Boston, 1890, p.93, apud Rui Barbosa, traduzindo, obra citada, p.495):

          "Pode-se dizer que uma disposição constitucional é auto executável quando nos fornece uma regra mediante a qual se possa fruir e resguardar o direito outorgado, ou executar o dever imposto, e que não é auto-aplicável quando meramente indica princípios, sem estabelecer normas, por cujo meio se logre dar a esses princípios vigor de lei."

Os doutrinadores falam em apresentação de princípios, contra a especificação de preceitos decorrentes. Para compreender melhor este critério é mister que a caracterização da auto-aplicabilidade passe, ainda que superficialmente, pela definição da natureza da norma, se programática ou não.

Normas programáticas, conforme o constitucionalista Paulo Bonavides (Direito Constitucional, 2ªed, Forense, Rio, 1986, p.200), são aquelas destinadas ao legislador, têm por objeto a conduta estatal e por natureza são imperfeitas, incompletas, demandando operações integrativas.

Segundo o jurista, elas teriam por fim "provocar uma sucessiva atividade legislativa que venha disciplinar uma certa matéria em sentido conforme com aquilo que ela dispôs, fazendo-o quase sempre em linhas gerais". (ibidem, p.213)

Já as normas preceptivas se destinam ao povo, objetivam relações privadas e são completas; por isso de aplicação imediata. Considerando que as normas não-programáticas são auto-aplicáveis porque dirigidas ao povo e não ao legislador, cabe novamente a ensinança de Bonavides (obra citada, p.215):

          "O caráter ‘mediato’ ou ‘imediato’ de aplicação de uma norma depende unicamente, segundo Carl Schmitt, da respectiva presença ou ausência da ‘auctoritas interpositio’ de um ‘simples’ legislador."

De outro lado, Paulo Dourado de Gusmão (Introdução ao Estudo do Direito, 16ªed, Forense, Rio, p.107) leciona que a lei constitucional ou ordinária não será auto-aplicável quando depender de ato legislativo a disciplinar detalhadamente a matéria. E completa:

          "Nestes casos, a lei (regulamentável) enuncia somente um princípio ou uma regra muito ampla, que necessita disciplina pormenorizada para ser aplicada."

Nota-se, então, o primeiro critério: a pormenorização ou o detalhamento de uma regra geral, de traços genéricos.

A norma insculpida no parágrafo 3º não é ampla, principiológica, de modo algum. O texto dispõe que a taxa de juros reais não poderá ser superior a 12% ao ano. Define o alcance da expressão ("incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito"). E qualifica exatamente a espécie dos juros (reais). O que mais falta à compreensão da norma? De que carece para ser aplicada?

Por fim há ainda outro critério para definir a norma em relação à sua aplicabilidade, que é o da classificação da lei em função da sua imperatividade.

Quando em relação ao particular ela for impositiva proibitiva (jus cogens que veda determinada ação), a norma será sempre de eficácia plena.

Rememorando os tempos de escola, Gabriel Wedy (obra citada, p.74) diz que "os acadêmicos de direito que estudaram as primeiras linhas de direito constitucional, bem como princípios basilares da hermenêutica, não ignoram que regras constitucionais de caráter proibitivo, como é o caso em apreciação, revestem-se de auto-aplicabilidade."

O Desembargador Araken de Assis (TARS, Ap Civ 190011791) traz a velha lição:

          "Da antiga classificação em self-executing ou não, basta recordar que sendo proibitiva a norma, automaticamente assume eficácia plena".

Outra vez a lição certeira de Ruy Barbosa (obra citada, p.75, mantida a grafia original):

          "Entre os textos contitucionaes executáveis sem o concurso de legislação applicativa sobressaem os de caracter prohibitório. No prohibir que se faça alguma coisa não há nada, que exija ulterior acção da lei. A acção ulterior da lei poderá vir a ser necessária, a fim de castigar as infracções da regra prohibitiva. Isto, porém, é coisa totalmente diversa da prohibição em si mesma.

É que a norma prohibitiva encerra em si mesma tudo quanto se há mister, para que desde logo se torne obrigatória a prohibição, embora a sancção contra o acto, que a violar, ainda não esteja definida.

Se uma Constituição prohibe formalmente certos e determinados actos, a prática de qualquer delles transgride ipso facto o preceito constitucional; porquanto a interdicção, como interdicção, na medida traçada pelos seus termos, é cabal quanto à obrigação, que juridicamente estabelece, erga omnes, de ser respeitada."

          (Neste trecho de obra escrita há quase 70 anos o jurista parece estar fazendo comentário sobre o parágrafo 3º do artigo 192 da Carta Magna de 1988, tal é a adequação da hipótese.)

Tanto quanto esta lição se encaixa perfeitamente à norma em debate é o que leciona Paulino Jacques, em seu Curso de Direito Constitucional (2ªed, Forense, Rio, 1958, p.406):

          "A proibição e punição da usura (Constituição de 1946, art.154) pode ser incluída entre as modalidades de intervenção econômica estatal indireta; limita a ganância do particular. O preceito veio da Constituição de 1934 (art. 117, parágrafo único), que foi mantido na Carta de 1937 (art. 142). As sanções penais, contudo, dependem de lei ordinária; as civis são self-executing." (grifo nosso)

Então fica claro que o dispositivo em debate, tanto por ser específico, quanto por ser proibitivo, independe de regulamentação. Isto está nítido desde os debates no Congresso Nacional.

Em suma, tem-se que uma norma constitucional pode ser programática ou não. Se não o for, se não ficar limitada a exarar princípios e programas, então será auto-aplicável. E o comando do § 3º do artigo 192 da CF não se limita a princípios, mas desce a detalhes como o valor numérico da taxa de juros (12%), o alcance da expressão e tanto mais.

Há também a questão da mediação, pela qual a norma constitucional será de aplicação imediata quando não houver necessariamente a interposição de autoridade (auctoritas interpositio) a exercer função legislativa como condição à sua aplicação. A norma em apreço, na parte do limite de 12%, naturalmente, não depende sob aspecto algum da função normativa da autoridade. É, também por isto, auto-aplicável.

Sabe-se, por fim, que a norma não-programática – também chamada preceptiva, porque dela emana preceito e não mero programa – pode ser permissiva ou proibitiva, e que quando é proibitiva a aplicabilidade é automática.

O limite à taxa de juros não é programa e sim preceito; preceito, sem dúvida, proibitivo ("as taxas... não poderão ser"). Auto-aplicável, destarte.

Note-se que são razões diversas, mas bastantes em si mesmas, cada uma per se. Juntas se reforçam, se amarram perfeitamente numa inegável construção lógica. Construção que, diferentemente de pareceres encomendados e comprometidos, respeita a sistemática jurídica constitucional, o contexto social e a lógica jurídica.

Conclui-se, então, pela auto-aplicabilidade da norma insculpida no parágrafo terceiro do artigo 192 da Constituição Federal.

Sobre o autor
Nelson Zunino Neto

Advogado, pós-graduado em Direito Eleitoral e em Direito Ambiental, atuante principalmente em Direito Eleitoral, Empresarial, Administrativo e Civil. Autor do livro Tempo mínimo de propaganda eleitoral em rádio e tv, 2020.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZUNINO NETO, Nelson. O limite legal à taxa de juros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 34, 1 ago. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/724. Acesso em: 23 nov. 2024.

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