4 A Advocacia-Geral da União enquanto Função Essencial à Justiça
Conforme exaustivamente sustentado, a defesa da legalidade no Estado Democrático de Direito abrange inequívoco conteúdo constitucional, frutificando em Justiça. É imperioso, portanto, que se forneça às instituições responsáveis por tais deveres a independência e a autonomia para o desempenho isento de seus misteres.
O exercício de funções públicas demanda garantias específicas. In casu, voltando-se para o núcleo da presente discussão, observa-se que a Advocacia-Geral da União carece, em muito, de prerrogativas institucionais.
A atuação do Poder Público evoluiu consideravelmente em face das relações "indivíduo – Estado", tendo obtido aquele uma gama considerável de direitos assegurados constitucionalmente (direitos e garantias fundamentais), com direito de ação em relação aos arbítrios do Estado, que pode manifestar-se oprimindo os indivíduos descumprindo as normas que impôs a si próprio e àqueles.
O estabelecimento do campo de atuação do Advogado do Estado é fundamental para a compreensão da relação que deve ser travada entre este e o ente público, na pauta do interesse público. Não pode ser outro o entendimento, vez que a atuação do Advogado do Estado é essencial à justiça e à consecução do interesse público. Estamos diante do exercício constitucional de uma atividade de caráter indispensável.
A necessidade de prerrogativas é uma constatação óbvia. Uma das principais garantias é a da não interferência de nenhum dos "poderes" do Estado no exercício das funções institucionais do Advogado do Estado. Portanto, é necessário que a instituição tenha reconhecida a sua independência. Somente se pode falar em independência real, fornecendo-se uma autonomia administrativa e financeira.
A contrário senso, observa-se uma "quase total" subordinação da Advocacia-Geral da União ao poder executivo. A atividade dos advogados públicos integrantes da Advocacia Geral da União acaba por desviar-se da defesa do interesse público (interesse primário) para a defesa dos interesses de uma Administração (interesses secundários).
Sobre a Advocacia-Geral da União, o artigo 131 da CF/88 enuncia:
Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.
A Advocacia-Geral da União atua no flanco judicial e extrajudicial, como também, na seara da consultoria e do assessoramento da Administração Federal.
No federalismo brasileiro, cada ente político (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) é dotados de autonomia de auto-organização, de autogoverno e de auto-administração. Em razão desta autonomia, a lei atribui à União, aos Estados, aos Municípios, ao Distrito Federal e aos Territórios, a capacidade normativa para disciplinar o exercício das funções que lhe são inerentes, respeitadas as competências constitucionais. Para exemplificar: cabe a cada uma das esferas administrativas legislar sobre o estatuto jurídico de seus servidores públicos.
A Lei Complementar nº 73/1993 - Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União - é comezinha em termos de prerrogativas para o múnus constitucional da advocacia pública federal, limitando-se a tratar quase que exclusivamente da sua estrutura organizacional (forma), atribuindo obrigações aos seus membros e estabelecendo uma franca interferência do poder executivo no desempenho de suas atividades.
Assim, os integrantes das carreiras efetivas da Advocacia Geral da União encontram-se submetidos, basicamente, aos ditames da Lei nº 8.112/90 (Estatuto dos Servidores Públicos Federais) e da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia). Essa mixórdia legislativa leva ao disparate de deixar o membro da Advocacia-Geral da União sem a consciência das prerrogativas que lhe assistem.
Ora, a atividade exercida pelos integrantes efetivos da Advocacia-Geral da União, por suas peculiaridades e relevância para a consecução do interesse público, não é condizente com a submissão a qualquer dos poderes da tripartição clássica. A interferência do poder executivo no exercício das atividades da Advocacia-Geral da União encontra-se expressa em vários artigos da referida Lei Complementar (vide os arts. 3º e 28, da Lei nº 73/93, por exemplo). Garantias básicas como inamovibilidade, independência funcional e inviolabilidade sequer são mencionadas. Verifica-se uma verticalização exacerbada na estrutura organizacional em relação ao Poder Executivo.
Não possui o Advogado do Estado legislação especial como a essencialidade da função pública que desempenha exige. Os seus direitos encontram-se estabelecidos na Lei nº 8.112/90 que trata do regime jurídico dos servidores públicos federais, o que se mostra insuficiente, vez que é uma lei geral e não atende aos reclamos da especificidade das atividades desempenhadas por esses profissionais.
O Estatuto da OAB (Lei nº 8.906/94) também não traz disposições específicas acerca das garantias da Advocacia de Estado. Esta lei trata da advocacia em geral (advocacia comum) que difere bastante daquela, principalmente pela disponibilidade que o titular possui do interesse acautelado pelo advogado comum.
Todas estas leis são insuficientes para regular a matéria atinente ao exercício da Advocacia de Estado no âmbito federal. No entanto, por serem normas gerais, são aplicadas aos membros da Advocacia-Geral da União. O problema que se coloca é justamente que a grande maioria das disposições normativas é no sentido de atribuir deveres e obrigações. Fica o Advogado do Estado submetido a, no mínimo, três estatutos legais, os quais não lhe asseguram direitos condizentes com os princípios norteadores da Advocacia de Estado: independência funcional, autonomia administrativa, inviolabilidade etc.
O interesse público reclama a modificação desta situação, não podendo o Advogado do Estado ser mero instrumento chancelador das atividades do Executivo que muitas vezes faz prevalecer os interesses de uma Administração em detrimento do interesse público. A Advocacia de Estado tem que receber tratamento equiparável à função essencial que exerce sob pena de prejuízos irreparáveis à coletividade.
Consigne-se que há um grupo de trabalho redigindo uma nova lei orgânica para a Advocacia-Geral da União. Contudo, nada se pode precisar acerca das garantias que serão abordadas no projeto de lei "em construção", sobretudo se considerarmos que a iniciativa dessa lei é do Poder Executivo, cujo mandatário tem a conveniência política do agir.
Na recente Emenda Constitucional nº 45/2004, concedeu-se a autonomia para as Defensorias Públicas estaduais. Vejamos:
Art. 134... . ..............................
§ 1º (antigo parágrafo único)... ............
§ 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º. (NR) [01]
Por que não se tratou da Defensoria Pública da União? Ontologicamente, o que justificaria essa diferença constitucional de tratamento? Pior ainda: nada se falou sobre a Advocacia-Geral da União, sobre as Procuradorias dos Estados e sobre as Procuradorias dos Municípios.
O Ministério Público, bem o sabemos, goza de tal autonomia desde o texto primevo, em virtude das lutas encampadas na Constituinte de 1988 (cf. art. 127 e parágrafos).
Quando essa realidade fracionária cessará? Ficaremos a depender da "força política" dos membros da Advocacia-Geral da União, das Procuradorias dos Estados, das Procuradorias dos Municípios, da Defensoria Pública da União, para que novas emendas constitucionais aconteçam? Ou perceberemos que o tratamento casuístico da autonomia não pode perseverar por total falta de justificativa? Deve o Texto Constitucional, in casu, ficar retalhado, construindo um mosaico quebradiço das Funções Essenciais à Justiça?
5 Conclusões
Na consecução de seu múnus constitucional, a Advocacia-Geral da União assume o desafio de defender a execução das políticas públicas levadas a efeito pelo Poder Executivo federal, dentro do primados do Estado Democrático de Direito, notabilizando-se como mais um órgão essencial à consecução da Justiça – princípio fundante da República Federativa do Brasil (art.3º, inciso I, da CF/88). A Advocacia-Geral da União contribui para a viabilização das políticas públicas, sob os auspícios da constitucionalidade e legalidade, zelando pela concretização de um Estado Democrático, pautado na defesa do interesse da União, o qual não poderá estar apartado do interesse público. Para o desempenho eficiente de seus misteres constitucionais, a Advocacia-Geral da União há de ser inequivocamente reconhecida como órgão fora do espectro de subordinação do Poder Executivo.
As necessidades complexas da sociedade atual, com o desafio de instituir um Estado Democrático de Direito, pautado no reconhecimento da Ordem Constitucional e nos Direitos Fundamentais, trouxeram a necessidade de criação de novas instituições, inexistentes na concepção clássica de Estado. Nesse desiderato, exsurge a Advocacia-Geral da União como órgão integrante das Funções Essenciais à Justiça, consoante se observa de sua topografia constitucional (Título IV – DAS FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA), sendo forçoso reconhecer-lhe posição de independência e total ausência de subordinação administrativa com relação ao Poder Executivo federal.
Destaque-se, portanto, que a Advocacia-Geral da União representa os interesses da União, pessoa jurídica de direito público interno e externo, no âmbito dos poderes constitucionalmente estabelecidos, a saber: Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário. Não sem razão, o Constituinte inseriu o Ministério Público e a Advocacia-Geral da União no Capítulo IV, do Título IV da Constituição Federal, conferindo-lhes status de FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA, eximindo-as de qualquer vinculação e/ou subordinação ás funções constitucionalmente estabelecidas nos capítulos I (Poder Legislativo), II (Poder Executivo) e III (Poder Judiciário).
Desta feita, o Constituinte procurou estabelecer a independência de atuação e autonomia organizacional das funções essenciais ao Estado Democrático de Direito, com o escopo de possibilitar sua ação intimorata na defesa da sociedade (in casu, o Ministério Público), do interesse e patrimônio públicos (in casu, a Advocacia de Estado), dos direitos dos hipossuficientes (defensorias públicas), sem o risco de sofrer ingerências indevidas de qualquer um dos demais poderes constitucionalmente estabelecidos.
O perfeito desempenho dos misteres constitucionais da Advocacia-Geral da União passa indeclinavelmente pelo reconhecimento de autonomia financeira e organizacional, da qual não poderá prescindir. Afirma-se com essa medida, a explicitação de uma anatomia e de um espírito afinado aos ideais institucionais constitucionalmente concebidos; a forma mais legítima de se organizar a Advocacia-Geral da União, distante da ingerência de poderes periféricos que desafiem a consecução do interesse público (primário).
A autonomia e independência necessárias às Funções Essenciais à Justiça vêm sendo lentamente reconhecidas, de maneira fracionária, sem uniformidade, com muitas pelejas. Enquanto tal conotação preponderar, fazendo a Advocacia de Estado um apêndice ("inflamado") do poder executivo, podemos afirmar que a matriz teleológica do princípio da separação (e harmonia) de funções no Estado Democrático de Direito brasileiro restará frustrado.
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Nota
01 Disponível em: <http://www.senado.gov.br>. Acesso em: 13 dez. 2004.