9. PRÁTICA DE DELITOS PARA MANTER O VÍCIO
Por fim, mas também de extrema importância para o estudo tratar-se-á de uma consequência que talvez mais atinja a sociedade de forma direta, que é a prática de delitos por parte dos dependentes do crack, para manter o vício. Não é novidade que os dependentes de drogas em especial o dependente do crack, que é uma droga mais pesada, com um poder de dependência maior como visto em tópicos anteriores, comete delitos motivados pelo desejo e/ou necessidade de manutenção do vício.
Conforme exposto no tópico anterior e também extraído da Veja, abaixo o relato de um jovem que tentou a prática de um homicídio, contra seu próprio irmão e motivado pelos efeitos do crack.
“Depois de uma década usando cocaína, conheci o crack em 2007, quando tinha 27 anos. Não sentia vontade de fazer mais nada a não ser usar a droga. Fumava inclusive no trabalho. Nessa época, eu morava em Itu (SP) e era técnico em uma fábrica de sucos. Consumia trinta pedras num dia. Gastava de 5 a 10 reais em cada uma. Cheguei a estourar o cheque especial em cerca de 7 000 reais.
Como faltava muito ao emprego, fui demitido e minha família me internou numa clínica. Fugi depois de três dias. Quando voltei para casa, meu irmão e minha mãe me expulsaram (o pai deixou a família quando ele tinha 11 anos). Fui morar com um primo em Guarulhos. Não demorei muito para frequentar a Cracolândia. Ali, vivia perambulando pela rua e conseguia dinheiro como flanelinha. O mais importante era fumar e acalmar a fissura.
Depois de dois meses em São Paulo, voltei para minha casa em Itu. Peguei um cartão de crédito e comprei umas coisas nas Casas Bahia para trocar por droga. Nesse dia de paranoia, tomei álcool com energético misturado a várias drogas. Com raiva do meu irmão, que tinha me expulsado de casa, tentei matá-lo. Fui levado para a delegacia e depois me senti muito envergonhado. Decidi então me internar. Fiquei 52 dias e acabei de deixar a clínica (ele saiu no último dia 18).
Estou limpo há dois meses e arrumei um emprego como vendedor numa loja de motos. Por saber que tenho uma doença progressiva, incurável e fatal, frequento reuniões de grupos de dependentes anônimos. Não me considero recuperado, mas sim em recuperação. O mais importante é que meu irmão me perdoou.” (Veja SP 2010)
O relato deste jovem exemplifica perfeitamente o que o crack é capaz de fazer com seus usuários, esta é uma consequência social que ocorre frequentemente nas cidades brasileiras, a prática de furtos e roubos também são frequentes, pois conforme visto no relato acima, é comum que os dependentes percam o emprego em decorrência da dependência e para conseguir saciar esse vício, passam a furtar e/ou roubar e/ou traficar para obter a droga.
Ainda na Veja de São Paulo, Ana estudante de massoterapia conta seu drama com a dependência do crack, na época ela estava internada e admitiu além de outras práticas ter cometido assaltos para conseguir a droga.
“Cometi todo tipo de loucura para conseguir crack. Pedi esmola, pegava comida no lixo e até assaltei com arma. Depois, ao me lembrar do rosto das vítimas, sempre me arrependia. Cheguei a pesar 37 quilos e até a me prostituir por duas vezes para conseguir algumas pedras.
A depressão é tão forte que tentei me matar por três vezes, uma delas em frente à minha terapeuta. Ainda bem que ela impediu. Fumo 25 pedras por dia. Estou internada desde o dia 26 de abril e está difícil ficar sem o crack.” (Veja SP 2010)
De acordo com a Agencia Brasil em reportagem de 2013, Violência, furto e roubo são os principais problemas relacionados ao crack nos municípios de fronteira.
Brasília - A violência e crimes como roubo e furto estão entre os principais problemas decorrentes da presença do crack nos municípios da região de fronteira do Brasil, segundo a pesquisa Crack na Fronteira Brasileira, apresentado hoje (30) pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM).
Entre os municípios que responderam ao questionário disponibilizado pela CNM para a pesquisa na Região Norte, 86% disseram que têm problemas com todos os tipos de droga e 59% disseram ter problemas especificamente relacionados ao crack. Entre eles, a violência foi o que apareceu com maior frequência, com 21% dos municípios o listando em primeiro lugar. Em seguida, 19% apontaram os furtos como principais problemas e 18% apontaram os homicídios. Roubos, com 16%, e exploração sexual, com 11%, também chamam a atenção. (Agencia Nacional, 2013)
[...] No caso da Região Centro-Oeste, onde 76% dos municípios que responderam ao questionário disseram ser rota de tráfico e 85% das prefeituras declararam ter problemas específicos relacionados ao crack, violência, roubo e furto foram apontados como os principais problemas, com 19% dos municípios apontando os dois primeiros itens e 18% indicando o último. As secretarias municipais de Saúde e de Assistência Social, responsáveis por responder a pesquisa, também apontaram, em 15% dos casos, o aliciamento de crianças como consequência da presença da droga.
Seguindo a mesma tendência, 20% dos municípios de fronteira na Região Sul indicaram roubos e furtos como os principais problemas relacionados ao crack. Em seguida, aparece a violência, em 19% dos municípios. No Sul, 65% dos secretários que responderam às perguntas disseram ter problemas específicos relacionados com a droga. (Agencia Nacional, 2013)
Diante do exposto é possível verificar a gravidade dessa consequência gerada pela dependência do crack, que em especial interessa ao direito penal, tanto pela análise das condutas praticadas como também pela análise da capacidade de autodeterminação do agente ativo, o dependente, pois é sabido que se comprovado mediante laudo assinado por médico psiquiatra, que o indivíduo não podia compreender a gravidade do fato praticado, por consequência do efeito da droga, esse poderá ter sua punibilidade extinta ou ainda reduzida conforme será discutido ao longo deste trabalho.
10. ESTATÍSTICAS DO CRACK
Depois de expor as consequências provenientes do consumo e da dependência do crack, cumpre esclarecer e demonstrar em números o quantitativo dessas consequências no Brasil em forma de estatística, desse modo serão apresentados alguns gráficos com as principais informações acerca do consumo da droga bem como de suas consequências.
O primeiro gráfico demonstra as causas das mortes dos dependentes do crack, que acabam morrendo num intervalo de aproximadamente cinco anos após o início do consumo da droga e, em 91,3% (noventa e um vírgula três por cento) dos casos de morte, não acontece pelo consumo da droga propriamente dito, apenas 8,7% (oito vírgula sete por cento), ocorrem por overdose, ou seja são consequência do próprio consumo do consumo do crack as demais mortes ocorrem pela contaminação de doenças venéreas e principalmente em decorrência de confrontos com a polícia e/ou traficantes.
11. O DIREITO PENAL A AUTODETERMINAÇÃO E O USUÁRIO DE CRACK
Segundo o Aurélio, autodeterminação é a ação de decidir por si mesmo, diante dessa definição é possível questionar-se acerca do usuário de crack e sua capacidade de decidir por si mesmo. É sabido que toda droga gera dependência e que a dependência e o uso da droga alteram a capacidade do indivíduo de se autodeterminar, tornando-o um semi-imputável ou até mesmo um inimputável ainda que de natureza temporária.
Diante de tal assertiva, é importante ressaltar que nem sempre haverá necessidade de intervenção compulsória do indivíduo, faz-se necessária uma análise sensível do caso, para determinar que espécie de intervenção deverá ser aplicada, evitando desse modo um retrocesso no tratamento do sujeito, que de plano deve ser o objetivo maior na matéria em discussão.
Trata-se não apenas de discutir a legalidade da internação e sim os seus resultados efetivos para o indivíduo, sua família bem como para a sociedade.
De acordo com o promotor de justiça e mestre em direito público, doutorado e pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, Eudes Quintino de Oliveira Júnior, existe legalidade na lei 10.216/01, que trata da matéria conforme vê-se a seguir:
O governo do Estado de São Paulo inicia o programa de internação compulsória de dependentes de drogas, que será gerenciado pelo CRATOD (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas do Estado) e contará com a presença de um juiz, um promotor de justiça e um representante da OAB para estabelecer a necessidade e conveniência da decretação da medida compulsória.
Há vozes que bradam contrariamente à execução do programa com intensas críticas de alguns seguimentos que defendem a internação somente com a concordância do paciente, de seus representantes e não como medida coativa judicial. Nem se faz necessário tecer comentários a respeito dos refúgios existentes nas grandes cidades para criar os locais coletivos de consumo de drogas e a convivência com as pessoas que trabalham ou se locomovem pelas cracolândias, assistindo as cenas de degradação da pessoa humana. Apesar de todo esforço policial e até mesmo dos órgãos de saúde, até o presente nenhuma medida realmente eficaz foi levada a efeito, a não ser algumas paliativas e provisórias, lideradas por ONGs imbuídas de boa vontade. De nada adianta despejar moradores de rua viciados de suas tocas que, na sequência, após circularem por outras praças, retornam para o habitat natural.
É inquestionável o direito da pessoa de se manifestar a respeito de determinada decisão que lhe aprouver, desde que seja capaz, com plenas condições de discernimento. Não preenchida a condição de autogoverno e autodeterminação, como é o caso do dependente em drogas, a representação passa para os familiares e, na falta, para terceiros juridicamente legitimados, como a própria Justiça.
Diante de tal permissivo, é lícito ao Estado intervir e determinar medidas coativas para a preservação da vida, de acordo com as balizas estabelecidas pela dignidade humana, opção feita pela Constituição Federal, já que o detentor da cidadania não se encontra mentalmente apto para o exercício de seus direitos e necessita da aplicação de medidas protetivas específicas. Qualquer outra solução que contrarie o interesse maior prevalente, que é o da saúde, do viver, não tem o condão de inverter o pensamento determinado pela lei maior.
De fato como bem explicado pelo Mestre e Doutor supracitado, é de extrema importância que o Estado intervenha nos casos em que for verificada a falta de autodeterminação do indivíduo, prevenindo e reduzindo danos maiores, devendo neste caso haver o afastamento do princípio da liberdade objetivando um bem maior que é o direito à vida e a dignidade da pessoa humana.
Para o direito penal a autodeterminação é elemento da imputabilidade, que por sua vez é elemento da culpabilidade, faz-se necessário acalorar esse debate para melhor compreender o entendimento da doutrina e dos tribunais acerca do referido tema, qual seja a internação compulsória dos usuários de crack.
A legislação brasileira tipifica a conduta de consumir drogas, aquelas que estejam enquadradas como ilícitas, na portaria da ANVISA, conforme está disposto no Art. 28. da Lei 11.343 de 23 de agosto de 2006, a lei de drogas:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Diante disso é importante salientar que de acordo com o sistema finalista brasileiro, aquele que consome substância considerada como ilícita pratica conduta típica passível de punição, o que leva-se a refletir em que pese uma mudança na legislação de modo que não seja necessário o pedido da família para que haja a internação e sim ficando comprovada que a atitude ilícita de consumir drogas está gerando consequências sociais irremediáveis, quem sabe culminando em lesão à própria vida, de plano o juiz poderá determinar a internação como forma de pena.
Nesse sentido têm entendido os tribunais, concedendo a tutela jurisdicional, para que seja procedida a internação do dependente de crack, a pedido da família, conforme destacam abaixo as jurisprudências neste sentido:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA. TRATAMENTO CONTRA O CRACK. AVALIAÇÃO PSIQUIÁTRICA PRÉVIA. IMPRESCINDIBILIDADE DE AVALIAÇÃO E, CASO NECESSÁRIO, INTERNAÇÃO. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO.
Neste processo, a família pediu a internação que foi negada a priori, em primeira instância e reformada a decisão mediante a interposição de recurso a posteriori, que autorizou a internação de um jovem para tratamento na modalidade compulsória, fundamentado pelo art. 6º da Lei 10.216/01, a respeito disso posiciona-se um dos magistrados do egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
A despeito da exigência contida no art. 6º da Lei n.º 10.216/01, entendimentos recentes desta Corte vêm garantindo a possibilidade de que o pedido de internação compulsória venha, até mesmo, desacompanhado de prévia avaliação médica quando evidente a situação de urgência no tratamento, podendo o exame ser realizado no curso do feito, por determinação judicial, diante de sérios indícios da gravidade do estado da pessoa a ser avaliada, expondo à situação de risco a própria saúde e de seus familiares.
Assim também têm entendido outros tribunais pelo Brasil, conforme se posicionou o Tribunal de Justiça de São Paulo, concedendo liminar para internamento compulsório a pedido da família.
INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA. Dependente químico. Praia Grande. Usuário de 'crack' resistente ao tratamento. Internação compulsória pedida pela mãe. Liminar concedida. 1. Legitimação ativa. Ministério Público. A alegação é fruto de um engano. A ação não é proposta pelo Ministério Público, que sequer oficia nos autos. 2. Internação compulsória. Dependente químico. A autora demonstrou suficientemente o tratamento sempre interrompido do filho e, embora não provado o perigo que a presença do filho acarreta, não há contraposição, a alegação tem fundamento na experiência comum e não há razão para a interferência do tribunal, uma vez que o juiz está mais perto dos fatos. A alegação de perda de objeto deve ser levada ao juiz do processo. A jurisprudência tem admitido a obrigação do Estado e do Município oferecer tratamento aos dependentes químicos. Agravo a que se nega seguimento. Aplicação do art. 557. do CPC.
Essas decisões no sentido de internar o indivíduo, dependente de crack só vem a fortalecer a ideia principal deste tópico que visa mostrar que a pessoa afetada pela droga perde sua capacidade de autodeterminação sob a ótica do direito público em consonância com o direito penal e em nome de outros princípios jus constitucionais, o princípio da liberdade deve ser afastado e a internação deve acontecer.
Para o direito penal a falta de autodeterminação quando comprovada é fundamento para diminuição de pena com base no disposto nos Arts. 45. e 46 da Lei 11.343 de 23 de Agosto de 2006, que Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências, de acordo com os referidos dispositivos:
Art. 45. É isento de pena o agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito, proveniente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Parágrafo único. Quando absolver o agente, reconhecendo, por força pericial, que este apresentava, à época do fato previsto neste artigo, as condições referidas no caput deste artigo, poderá determinar o juiz, na sentença, o seu encaminhamento para tratamento médico adequado.
Art. 46. As penas podem ser reduzidas de um terço a dois terços se, por força das circunstâncias previstas no art. 45. desta Lei, o agente não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Todavia por falta de prova pericial na maioria dos casos os dependentes químicos respondem como se tivessem a capacidade de autodeterminar-se perfeitamente conforme se verifica na apelação criminal, tombada nos autos sob nº APR 10338110096579001 MG (TJ-MG).
APELAÇÃO CRIMINAL - CRIMES DE ROUBO - DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DE FURTO - IMPOSSIBILIDADE - GRAVE AMEAÇA CARACTERIZADA - REDUÇÃO DAS PENAS - DESCABIMENTO - NÃO RECONHECIMENTO DA CAUSA DE DIMINUIÇÃO DO ART. 46, DA LEI Nº 11.343 /06 - INCAPACIDADE DE AUTODETERMINAÇÃO PELA DEPENDÊNCIA QUÍMICA NÃO COMPROVADA - SUBSTITUIÇÃO DA REPRIMENDA CORPORAL POR RESTRITIVAS DE DIREITOS - INVIABILIDADE - CRIME QUE ENVOLVE GRAVE AMEAÇA CONTRA PESSOA. 1. Evidenciado o emprego de grave ameaça na conduta do réu em desfavor das vítimas, deve ser mantida a condenação pelos crimes de roubo. 2. A causa de redução de pena do artigo 46 da Lei nº 11.343 /06, só poderá ser aplicada quando comprovado que o agente não possuía, à época do cometimento do ilícito, discernimento para entender o caráter criminoso de sua conduta. 3. Se o crime envolve grave ameaça contra pessoa, inviável a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos.
Este é o entendimento mais recente dos tribunais, tendo em vista que esta decisão de 2014, a perícia é a principal prova inclusive exigida pela Lei para caracterizar aqueles que praticaram delitos sem saber exatamente a ilicitude do ato que estavam praticando, em consequência do consumo de drogas em especial do crack.