I – Como “a palavra é, por excelência, a arma do advogado”[1], só quem souber manejá-la com propriedade e segurança conquistará triunfos profissionais invejáveis. O que aspira aos primeiros lugares da Advocacia deverá, portanto, ou fale ou escreva, ostentar suas credenciais de cultor das boas letras.
Ainda que dele se não exijam os mesmos atributos por que se distinguem e recomendam à pública admiração os escritores de muito nome (v.g.: torneio clássico da frase, dicção peregrina e elegante, galas de estilo, etc.), nunca se dispensará, porém, o advogado da estrita observância dos requisitos a que se obriga todo aquele que, em razão do ofício, tenha de enunciar pontualmente seu pensamento: clareza e correção[2]. Nenhuma qualidade se avantaja à clareza. Dada ao homem para comunicar suas ideias, a palavra somente alcançará seu fim se clara e inteligível[3].
Pelo que, falha no intuito de expressar-se quem, por deficiência verbal, não é pronta e cabalmente compreendido; mas falha gravemente se é advogado, visto que em seu brasão profissional o campo maior compete por direito de preferência à arte de persuadir.
Só o argumento que facilmente se percebe é poderoso a influir no ânimo de terceiro e movê-lo ao talante do expositor. À disciplina do pensamento há de corresponder, pelo conseguinte, expressão verbal precisa e livre de tudo o que o possa tornar obscuro e impenetrável.
A precisão do termo, intimamente associada ao conceito de clareza, impõe que ao rigor do raciocínio lógico suceda representação oral e escrita por palavras que lhe evidenciem o vero sentido e lhe sejam acomodadas.
II – Da mesma sorte que os outros profissionais, têm os advogados seu falar próprio: a linguagem forense.
Vocábulos e expressões técnicas do direito, constitutivos da fraseologia jurídica, haverá de conhecê-los bem o advogado e empregá-los com severa propriedade. A primeira providência, pois, de quem deseja adquirir o estilo do foro é ler os bons textos legais e as obras jurídicas estimáveis pela castiça locução vernácula portuguesa[4].
A essa mui particular feição de escrever, em que à ordem lógica dos conceitos corresponda fiel e perfeita representação gráfica e artística, chamou-lhe Jhering “elegantia juris”[5].
A expressão clara do pensamento não se mostra incompatível com o bom gosto literário, antes o aconselha e encarece. Nenhum espírito culto se recusará, em verdade, a aplaudir consigo o esforço daquele que imprimiu no seu escrever o selo da arte e da estética. A duvidar alguém, é ler uma página de Rui, Castilho ou Herculano, e logo se convencerá de que a glória literária não lhes cingiu a fronte a esses eminentes escritores, senão após aturada e constante dedicação à arte da linguagem.
III – O método mais seguro e eficaz para adiantar-se alguém nos segredos de sua língua é conversar assiduamente os autores que melhor a possuíram: os clássicos[6]. Detendo-se na leitura criteriosa de suas obras, não será maravilha se lhes vier a adquirir, com o andar do tempo, as excelências da forma e a riqueza do estilo. Tal prodígio será simples corolário do processo de assimilação. Não se cuide fora isto desairoso, por implicar, em certo modo, imitação de outrem.
De todo o ponto inatendível é semelhante objeção. Primeiro, porque a presunção da originalidade cede àquele dito profundo e solene do mais sábio dos homens: Não há nada de novo debaixo do Sol[7]! Tudo o que hoje dizemos, já o disseram os antigos, e não raro com mais arte e propriedade. Além disso, a imitação do autor clássico dará a conhecer ao leitor curioso, enquanto não alcance o seu próprio estilo, as maneiras mais expressivas de dizer, os meneios sintáticos mais apurados e as construções que melhor se conformem ao gênio da língua.
Tanto que o alcance, porém, libertar-se-á do arquétipo literário. De fato, como observou preclaro escritor, “saber imitar é aprender a não imitar mais, porque é habituarmo-nos a reconhecer a imitação e a passar sem ela, quando já não for precisa”[8].
IV – Os mais crassos defeitos que podem aviltar a pena do escritor são os erros gramaticais inescusáveis.
“Não há escritor sem erros”, proclamou o exímio Rui[9], aludindo certamente não aos erros toleráveis e invencíveis, mas àqueles que afrontam os cânones elementares de gramática. Esses não conhecem absolvição. Identificam-se pela denominação de solecismos, e são infrações gravíssimas das leis do bem escrever. No evitá-los deve o advogado pôr toda a sua diligência e tento[10].
É a notar que as petições, sobre constituírem o assento material de uma pretensão levada a Juízo, valem como carta de crédito intelectual de quem as elaborou. Por elas também se homenageia o juiz a quem se destinam. E não entra em dúvida que nenhum motivo de lisonja deparará ao magistrado, que a tiver de despachar, uma petição pejada de erros de português.
Aos lidadores da palavra — os advogados sobretudo — lembre-lhes sempre esta advertência do venerando Bluteau: “Indício quase sempre certíssimo de não saber um homem uma língua é o desprezá-la, porque ninguém despreza o que sabe”[11].
Notas
[1] Nereu Corrêa, A Palavra, 1972, p. 22.
[2] Donde a exortação de J. Soares de Melo: “O advogado deve escrever de forma elegante, precisa e clara. Falar com exatidão” (Perfis Acadêmicos, 1957, p. 97).
[3] Exemplo das consequências, verdadeiramente funestas do estilo travado e obscuro, traz este despacho lançado em confusa petição: “Indefiro, até onde entendi”.
[4] Será bem que o advogado leia, por acrescentar os cabedais de sua linguagem forense, as obras que ao propósito escreveu Eliasar Rosa, eminente conhecedor assim de nosso idioma pátrio como do Direito: Os Erros mais Comuns nas Petições, Glossário Forense, Dicionário de Conceitos para o Advogado, etc; Ainda: procure ter sempre à mão uma boa gramática (a do provecto Napoleão Mendes de Almeida, por exemplo), os dicionários de Caldas Aulete e Laudelino Freire ou do Aurélio, e alguns livros sobre questões de linguagem como: Tréplica, de Ernesto Carneiro Ribeiro; Estudos da Língua Portuguesa, de Mário Barreto; Língua Vernácula, de José de Sá Nunes, etc. Tocantemente a leituras, vem a pelo este alvitre de um sábio: “Ler sem anotar pouco adianta; ler, sem um bom dicionário ao lado, é perda considerável de tempo. É que a leitura se faz, palavra por palavra” (Eliézer Rosa, A Voz da Toga, 2a. ed., p. 71).
[5] Cf. Edmundo Dantès Nascimento, Linguagem Forense, 1980, p. 222.
[6] Do vasto rol de autores que passam por modelos acabados da boa linguagem podemos citar esta meia dúzia: Rui Barbosa, “o maior dentre os nossos escritores” (José Rizzo, Estudos da Língua Portuguesa, 1922, p. 207). Obras: Parecer sobre a Redação do Código Civil, Réplica, Oração aos Moços (“a peça mais trabalhada da língua portuguesa” — cf. Nereu Corrêa, op. cit., p. 42), etc.; Antônio Vieira, “o clássico mais autorizado da língua portuguesa” (Francisco José Freire, Reflexões sobre a Língua Portuguesa, 1842, 1a. parte, p. 10). Obras: Sermões, História do Futuro, Cartas, etc.; Manuel Bernardes, “o mais suave e delicioso clássico português!” (Silveira Bueno, História da Literatura Luso-Brasileira, 1965, p. 54). Obras: Nova Floresta, Luz e Calor, Últimos Fins do Homem, etc; Alexandre Herculano: “A sua palavra é um relâmpago: deslumbra, fulmina” (Alves Mendes, Discursos, 1879, p. 127). Obras: Lendas e Narrativas, Eurico, Opúsculos, etc; Camilo Castelo Branco, “o mais opulento dos clássicos portugueses” (Castilho, in As Sabichonas, 1872, trad.). Obras: Amor de Perdição, Boêmia do Espírito, A Queda dum Anjo, etc; Machado de Assis: “Originalíssimo na invenção, timbrava outrossim na correção da linguagem” (Fausto Barreto e Carlos de Laet, Antologia Nacional, 41a. ed., p. 95). Obras: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Memorial de Aires, D. Casmurro, etc.
[7] Eclesiastes, cap. I, v. 10.
[8] Antônio Albalat, A Arte de Escrever, 9a. ed., p. 40; trad. Cândido de Figueiredo.
[9] Réplica, nº 10. Isto sentia bem Tobias Barreto, quando disse: “Há três cousas neste mundo que o homem não pode ter completamente puras: a consciência, a boca e a gramática” (Obras Completas, 1926, vol. II, p. 173).
[10] Breve exemplário de solecismos hediondos:
a) “Fazem” 81 dias que o réu está preso (por faz);
b) “Haviam” muitas pessoas no local (por havia);
c) O irmão “interviu” na briga (por interveio);
d) Os policiais “deteram” o réu (por detiveram);
e) O juiz “penalizou” com rigor o acusado (por apenou, puniu, castigou, etc.);
f) “Interim” (ínterim), “ávaro” (avaro), “púdico” (pudico), “gratuíto” (gratuito) e aquele que tem sido o mais frequente dos solecismos de prosódia (ou pronúncia): “récorde”, em vez de recorde. Sinônimo de proeza, façanha, marca, etc., recorde é a forma aportuguesada de “record”. Sua pronúncia: recorde (ó), a despeito do intolerável sestro de alguns locutores, que persistem, obdurados, na cacologia “récorde”. Não era caso de se lhes remeter um memorando fonético?! Estamos que sim!
[11] Prosas Portuguesas, 1726, 2a. parte, p. 189.