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Juizado Especial Cível e o estado democrático de direito

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4. CONCLUSÃO

            Vimos que o Juizado Especial surge quando o Estado passa a se preocupar com a aptidão dos indivíduos em reconhecer seus direitos e defendê-los de forma adequada, trazendo consigo as idéias consagradas no Estado Social. As condições econômica e social dos litigantes têm aqui importância maior que a segurança jurídica que é proporcionada pelos princípios constitucionais do processo.

            Essa facilidade em ajuizar ações mediante procedimento simples e informal contribuiu consideravelmente para o sucesso dos Juizados, especialmente entre a população mais carente, que até pouco tempo se via excluída do acesso à justiça por não possuir condições de arcar com as despesas de um processo sem prejuízo de seu próprio sustento e de sua família (SOARES, 2003). Entretanto, a idéia de simplificar o processo de maneira a retirar dele os elementos essenciais de garantia de participação das partes em simétrica paridade na busca de uma suposta efetividade processual caracteriza o Estado do Bem-Estar Social e já não é mais compatível com o direito democrático contemporâneo.

            A finalidade do processo, no Estado Democrático de Direito, não é proporcionar igualdade para os iguais e desigualdade para os desiguais, assim como também não é proporcionar tão somente a realização do direito material. Pensar de tal forma significa regredir aos ideais dos modelos de Estado Liberal e Estado Social de Direito. A finalidade do processo hoje é proporcionar a efetiva participação dos interessados na construção do provimento final, de forma que eles se sintam co-autores do mesmo.

            Assim, a decisão será fundamentada naquilo que foi discutido e provado no processo, e não com base na consciência ética ou no senso de justiça do julgador, que são também características dos modelos de Estado Liberal e Social de Direito.

            O grande problema da época contemporânea já não é o da convicção ideológica, das preferências pessoais, das convicções íntimas do juiz. É o de que os destinatários do provimento, do ato imperativo do Estado que, no processo jurisdicional, é manifestado pela sentença, possam participar de sua formação, com as mesmas garantias, em simétrica igualdade, podendo compreender por que, como, por que forma, em que limites o Estado atua para resguardar e tutelar direitos, para negar pretensos direitos e para impor condenações (GONÇALVES, 1992, p. 195, n. 17).

            Não cabe ao julgador suprir as deficiências da lei e fazer justiça ao caso concreto, como defendem os instrumentalistas adeptos ao procedimento especial que o Juizado adota. A jurisdição, no Estado Democrático de Direito, não pode estar subordinada à discricionariedade do juiz, consoante aquilo que ele julga ser justo. A função do juiz no processo nada mais é do que observar a aplicação das regras e dos princípios que regem o processo, fazer valer o princípio do contraditório, a garantia de participação das partes em igualdade de oportunidades, e fundamentar sua decisão com base na lei (Princípio da Legalidade), e principalmente naquilo que foi demonstrado pelas partes em debate proporcionado no decorrer do curso processual. "[...] o PROCESSO não busca "decisões justas", mas assegura as partes participarem isonomicamente na construção do provimento, sem que o impreciso e idiossincrático conceito de "justiça" da decisão decorra da clarividência do julgador, de sua ideologia ou magnanimidade" (LEAL, 1999, p. 67).

            O procedimento do Juizado Especial Cível foi fixado em razão do valor do direito material discutido (causas inferiores a quarenta salários mínimos). No Estado Democrático de Direito, a situação do direito material pleiteado não pode ser medida de determinação de como se dará o procedimento. O Estado deve apreciar toda e qualquer lesão ou ameaça de direito, e esta atuação jurisdicional deve estar subordinada à garantia do processo como procedimento em contraditório, como é estabelecido em sede constitucional, independentemente do valor econômico da causa ou das condições sociais dos litigantes.

            A garantia do contraditório deve ser respeitada seja qual for o tipo de causa que está sendo apreciada. A "justiça da decisão", no Estado Democrático de Direito, só pode ser discutida na medida em que a decisão tem por base aquilo que foi alegado e provado no processo, através do exercício do contraditório. Não é mais concebível discutir ideais de justiça a partir das condições das partes e da sensibilidade do julgador diante da lacuna da lei e de determinadas causas especiais.

            Entre o processo e a situação de direito material já não se concebe uma relação de necessidade lógica, e, em conseqüência, a existência dessa situação não é medida de utilidade do processo. Ao judiciário incumbe apreciar lesão ou ameaça a direito, para deferir ou rejeitar as medidas requeridas, e essa função já não se cumpre pelo prévio controle da existência da lesão ou ameaça. Entre o ato de apreciação, o objeto da apreciação e o resultado da apreciação, há diferenças manifestas. [...] O processo, como procedimento realizado em contraditório entre as partes, cumprirá sua finalidade garantindo a emanação de uma sentença participada. Os seus destinatários já não precisam recear pelas preferências ideológicas dos juízes, porque, participando do iter da formação do ato final, terão sua dignidade e sua liberdade reconhecidas e poderão compreender que um direito é assegurado, uma condenação é imposta, ou um pretenso direito é negado não em nome de quaisquer nomes, mas apenas em nome do Direito, construído pela própria sociedade ou que tenha sua existência por ela consentida (GONÇALVES, 1992, p. 197, n. 21, 21.3).

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            A concepção de acesso à justiça adotada nos Juizados Especiais busca um sistema que deve ser primeiramente de igual acesso a todos e logo, deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos (CAPPELLETTI, GARTH, 1988). Essa tendência de cunho essencialmente instrumentalista, defendida por juristas como Liebman, Dinamarco, Ada Pellegrini, Araújo Cintra, dentre outros, pretende tornar o processo um instrumento para a realização do direito material, mais célere e eficiente, atribuindo escopos sociais, jurídicos e sociológicos, colocando a jurisdição como atividade preponderante em detrimento do processo e das garantias processuais do contraditório, ampla defesa e isonomia (SOARES, 2003). Aqui são atribuídos escopos metajurídicos ao processo, como se o fim da jurisdição fosse que nela estivessem presentes questões éticas e sociais. Ora, os escopos metajurídicos, ainda que presentes na decisão, não constituem a finalidade da mesma. O juiz não pode invocar fins sociais da lei para justificar sua decisão.

            Os instrumentalistas entendem expressamente que, ‘tratando-se de fenômeno sociológico, a legitimidade manifesta-se na aceitação geral do poder pela população’, numa visão luhmanniana de que, não insurgindo a população ou os interessados contra a decisão, esta seria democraticamente justa e legítima. Na democracia dos instrumentalistas, não haveria decisões confractuais ao atendimento da condicionalidade constitucional democrática, mas poderiam eventualmente ocorrer para se adequarem ao fenômeno sociológico dos escopos metajurídicos" (LEAL, 2002, p. 128).

            Este entendimento não reflete a realidade do discurso democrático. No Estado Democrático de Direito, a jurisdição se legitima por estar subordinada aos princípios que garantem a efetiva participação das partes em sua construção em simétrica paridade (contraditório, ampla defesa, isonomia). Assim, só podemos dizer que houve um efetivo acesso à justiça, no Estado Democrático de Direito, quando a sentença é emanada com base em tudo aquilo que foi discutido através do debate que o contraditório proporciona ao processo.

            O processo, independente de escopos sociais e políticos que lhes são conferidos, só pode legitimar uma decisão quando a mesma é formada em contraditório. E se assim não for, pode ser dito que nem mesmo chegou a haver processo, pois a existência deste pressupõe a do contraditório.

            A problemática do acesso à justiça agora deve ser encarada com base na qualidade e legitimidade da decisão. Um procedimento que inibe o contraditório e os meios de defesa pode causar sérios prejuízos às partes. Deste modo, podemos dizer que o resultado só é justo, no Estado Democrático de Direito, quando ele é formado através da participação de seus interessados em contraditório.

            Vemos, assim, que o procedimento dos Juizados Especiais retira das partes garantias essenciais à sua defesa em nome da celeridade e efetividade processual. A CRFB, ao estabelecer a criação dos Juizados Especiais (art. 98, I), não autoriza a relativização das garantias do contraditório e da ampla defesa. E qualquer norma infraconstitucional que viole o princípio do contraditório é, em nosso ordenamento, inconstitucional.

            Quando se estabelece um procedimento que limita a possibilidade de defesa para as pequenas causas, na verdade, o que ocorre é a negação da importância das mesmas. Não pode mais ser admitido que apenas pelo pequeno valor econômico da causa, ela seja julgada sem a devida aplicação do processo com todas as garantias fundamentais a ele inerentes. "A prevalecer o entendimento de que nos Juizados Especiais é vedada a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, LV, CR/88) em toda a inteireza constitucional, transformam-se os Tribunais Superiores e o STF em Tribunais de Exceção destinados ao julgamento de causas de grande potencial econômico, a critério e arbítrio de seus juízes, com supressão do requisito do juízo natural que é instrumento imprescindível da processualidade nas democracias" (LEAL, 2004, p. 78).

            Em suma, os Juizados Especiais não têm proporcionado um efetivo "acesso à justiça", quando este é encarado em termos qualitativos e na perspectiva de um Estado Democrático de Direito. As decisões proferidas nos referidos tribunais especiais são dadas de forma aristocrática, não sendo permitida a efetiva participação das partes em contraditório.

            A nossa crítica se estabelece no sentido de que não basta a busca pela efetividade e celeridade processuais, mas além disso, um processo em contraditório que proporcione aos seus interessados uma participação efetiva na formação do provimento final.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

            BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Processo Constitucional in Revista da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas, v. 2, n 3 e 4, p. 1-312. Belo Horizonte: 1999.

            ______; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988. 168 p.

            CARVALHO NETO, Menelick de. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o Paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Comparado, vol. 3. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000.

            CATTONNI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Processual Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001a. 288 p.

            ______. Interpretação jurídica, processo e tutela jurisdicionais sob o paradigma do Estado Democrático de Direito in Revista da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas, v. 4, n. 7 e 8, pp. 106/116. Belo Horizonte, 2001b.

            CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 18ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2002. 359 p.

            DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 2000.

            GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide Ed., 1992. 220 p.

            ______. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebnachler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. II apud SOARES, Carlos Henrique. O advogado e o processo constitucional. Belo Horizonte: Decálogo, 2004.

            LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo – primeiros estudos. 2ª ed., ver. e atual., Belo Horizonte: Síntese, 1999.

            ______. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002.

            ______. Comentário de Acórdão do STF. Boletim Técnico da Escola Superior de Advocacia da OAB/MG. Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 59-80, jan. a jun. de 2004.

            NEVES, Eliana Pinto de Oliveira. Juizado Especial Cível e Acesso à Justiça no paradigma do Estado Democrático de Direito. 81 f. Monografia desenvolvida sob o financiamento do PROBIC/PUC Minas – Programa de Bolsas de Iniciação Científica da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Arcos, 2004.

            NUNES, Dierle José Coelho. O princípio do contraditório. Boletim Técnico da Escola Superior de Advocacia da OAB/MG. Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 39-55, jan. a jun. de 2004.

            CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002 apud SOARES, Carlos Henrique. A participação do advogado como efetiva garantia do contraditório entre as partes no processo jurisdicional brasileiro. 2003. 170f. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte, 2003.

            SOARES, Carlos Henrique. A participação do advogado como efetiva garantia do contraditório entre as partes no processo jurisdicional brasileiro. 2003. 170f. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte, 2003.

            ______. O advogado e o processo constitucional. Belo Horizonte: Decálogo, 2004. 187p.


NOTAS

            01

Dados referentes aos anos de 2001, 2002 e 2003, fornecidos pelo Fórum da Comarca de Arcos/MG, em realização de pesquisa financiada pelo PROBIC/PUC Minas (vide NEVES, Eliana P. O. – Juizados Especias Cíveis e Acesso à Justiça no paradigma do Estado Democrático de Direito. 81 f. Programa de Bolsas de Iniciação Científica da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Arcos, 2004).
Sobre os autores
José Marcos Rodrigues Vieira

Doutor em Direito. Professor de Processo Civil da UFMG e PUC Minas (graduação e pós-graduação).

Bruno de Almeida Oliveira

Mestrando em Direito Público. Professor de Direito Administrativo da PUC Minas.

Carlos Henrique Soares

Advogado militante. Mestre e Doutor em Direito Processual – PUC-MG e Universidade Nova de Lisboa. Professor de Direito Processual Civil da PUC-MG/Barreiro e Pitágoras-BH. Professor de Pós-Graduação do IEC, CEAJUFE, UNIFENAS, FDSM e APROBATUM. Coordenador de Pós-graduação em Direito Processual Civil pelo IEC/PUCMINAS. Autor de livros e artigos jurídicos. Palestrante.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, José Marcos Rodrigues; OLIVEIRA, Bruno Almeida et al. Juizado Especial Cível e o estado democrático de direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 807, 18 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7287. Acesso em: 29 dez. 2024.

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