Motivado pela recente decisão do STF sobre incidência do ICMS nas operações de arrendamento mercantil, quando o arrendante é situado no exterior, enfocaremos em, apertada síntese, a questão do instrumento normativo competente para definir o fato gerador da obrigação tributária, atendo-nos especificamente ao ICMS.
O fato gerador, expressão consagrada pelo Código Tributário Nacional, geralmente, é conhecido pelo seu aspecto objetivo ou nuclear que é ‘uma situação abstrata, descrita na lei, a qual, uma vez ocorrida em concreto enseja o nascimento da obrigação tributária’ (Cf. nosso Direito financeiro e tributário, 14ª edição. São Paulo: Atlas, 2005, p. 479). Compreende, pois, o plano abstrato da lei descritiva do fato, e o plano da concreção do fato descrito. Sua definição está no art. 114 do CTN: ‘Fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência’.
Pois bem, qual a lei competente para definir o fato gerador do ICMS? A Constituição pode definir o fato gerador? Ou, pode conter essa definição?
Na opinião unânime dos doutos, a Constituição limita-se a outorgar o poder de tributação. Em relação à espécie impostos, porque desvinculados de qualquer atuação estatal, a Carta Política estabeleceu a rígida discriminação nos artigos 153, 155 e 156 eliminando qualquer possibilidade de bitributação jurídica. A discriminação é, portanto, o primeiro grande princípio limitador do poder de tributar.
Daí porque os conceitos e formas de direito privado utilizados na Constituição Federal, para definir ou limitar competências tributárias, são vinculantes, não podendo as leis tributárias alterá-los (art. 110 do CTN). Do contrário, a rígida discriminação constitucional de impostos seria inócua. Somente o próprio texto constitucional pode estabelecer um conceito autônomo, para fins de fixar ou limitar determinada competência tributária.
A definição do fato gerador é incumbência da lei complementar em nível de norma geral, aplicável em âmbito nacional. É o que dispõe o art. 146, III, a da CF:
‘Art. 146. Cabe à lei complementar:
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes.’
Após a definição do fato gerador, em nível de norma geral, cabe ao ente político tributante instituir o imposto com que foi contemplado pela Carta Política, por meio de lei, definindo o seu fato gerador em seus diversos aspectos. A lei complementar, como lei sobre leis de tributação, não é auto-aplicável. O imposto sobre grandes fortunas, outorgado à União (art. 153, VII da CF), até hoje, não tem seu fato gerador definido por lei complementar, o que impossibilita sua instituição, não bastasse a falta de vontade política. O IOF, também, de competência impositiva federal tem seu fato gerador definido de forma bastante abrangente pelo art. 63 do CTN (operações de crédito; operações de câmbio e seguro; e operações sobre valores mobiliários), mas, como sabemos, o referido imposto foi sendo instituído gradativamente pela União. Isso significa que o exercício da competência tributária não é compulsório, ressalvando-se apenas a sanção institucional do art. 11, parágrafo único da Lei de Responsabilidade Fiscal, irrelevante para o presente estudo.
É a lei material de cada ente político que cria o imposto previsto na Constituição, definindo o respectivo fato gerador. E a lei ordinária, ao definir o fato gerador do imposto, deve obediência à lei complementar. Não porque esta goza de superioridade eficacial, como proclamada por parcela da doutrina, mas, porque é de sua competência definir o fato gerador de impostos discriminados na Carta Magna.
Isso não quer dizer que a lei complementar deva sempre prevalecer sobre a lei ordinária. Se aquela estabeleceu uma restrição que a conceituação constitucional do imposto não admite, sua inconstitucionalidade poderá ser provocada pelo sujeito ativo do tributo. Se, ao contrário, ela estabeleceu uma ampliação do imposto em relação ao que foi outorgado pela Carta Política, caberá ao sujeito passivo questionar a norma da lei complementar.
Resumindo, ambas as leis, a complementar e a ordinária devem submissão diretamente à Constituição Federal, inexistindo hierarquia entre elas, nem a proclamada superioridade eficacial de uma sobre a outra, ao menos, em termos jurídicos. Do ponto de vista político, pode-se dizer que a lei complementar é mais representativa da sociedade, à medida em que foi aprovada pela maioria absoluta dos congressistas.
Pois bem, no caso, a Constituição, em seu art. 155, outorgou competência aos Estados e ao Distrito Federal para instituir imposto sobre:
‘II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.’
Acrescentou o § 2º, inciso IX que:
‘Incidirá também:
a) sobre entrada de bem ou mercadoria importados do exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade, assim como sobre o serviço prestado no exterior, cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria, bem ou serviços’.
Verifica-se do art. 155, II da CF que o imposto inserido na competência impositiva estadual diz respeito a ‘operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações ...’. O disposto no § 2º, IX, a não poderá ser interpretado isoladamente, como se tratasse de outro imposto. Qualquer bem ou mercadoria procedente do exterior, para ser tributado pelo ICMS há de qualificar-se como ‘operação relativa à circulação de mercadoria’.
Examinemos só a parte da circulação de mercadorias para não alongar este estudo.
A expressão ‘circulação de mercadorias’ não se confunde com transporte de mercadorias, nem com seu mero deslocamento físico.
Tratadistas de renome emprestaram à aludida expressão o sentido de negócio jurídico bilateral, consensual, da compra e venda ou qualquer outro negócio jurídico de que se irradie a circulação econômica e não meramente física (José Nabantino Ramos: O conceito de circulação, in RDP, V. 2, Ed. Revista dos Tribunais, p. 36; Pontes de Miranda: Comentários à Constituição de 1967, tomo II, Editora Revista dos Tribunais, p. 491).
Pode-se dizer que é pacífico na doutrina o conceito de circulação jurídica, que envolve transferência de titularidade da mercadoria. Esse conceito está consagrado pelo STF: RE 70.616-SP, RTJ-58/360; RE 72.541-MG, RTJ-61/230; RE 72.412-SP, RTJ-61/804; RE 74.852-SP, RTJ-64/538; RE 55.434-SP, RTJ-67/439.
Outrossim, é de capital importância que o imposto com que foi contemplado os Estados é sobre ‘operações relativas à circulação de mercadorias’.
Logo não é qualquer operação que pode ser tributada, mas só aquela operação que diz respeito à circulação de mercadoria. E mercadoria é bem destinado ao comércio, à venda. Sabemos que não há diferença substancial entre bem e mercadoria, mas apenas diferença pela destinação. O mesmo bem pode ser mercadoria ou simplesmente um objeto conforme sua destinação. Uma caneta é mercadoria para o dono da loja, porque destinado à revenda, mas será um mero objeto para a pessoa que a adquiriu para uso próprio.
Por isso, a expressão ‘operações relativas à circulação de mercadorias’ pressupõe, no mínimo, movimentação da mercadoria que configure etapa no seu curso desde a fonte de produção, esta abrangendo também a importação, até o consumo final. Sem que haja um deslocamento em direção ao consumo não há que se falar em circulação de mercadorias. Do contrário seria o mesmo que afirmar que determinada mercadoria circula quando alguém a transfere da mão esquerda para a mão direita.
Respeitada a conceituação constitucional do imposto, cabe à lei complementar definir o fato gerador, como retro mencionado.
No caso do ICMS, a Lei Complementar nº 87/96, embora não possa ser considerado um primor legislativo, porque aprovada de afogadilho, ao definir o fato gerador em seus artigos 1º e 2º dispõe em seu art. 3º sobre hipóteses de não incidência, misturando casos de imunidades (incisos I, II, etc.) com hipóteses de exclusão do campo abrangido pela tributação, ou seja, casos de não-incidência expressa.
Dentre as hipóteses de não-incidência destaca-se a do inciso VIII in verbis:
‘VIII – operações de arrendamento mercantil, não compreendida a venda do bem arrendado ao arrendatário.’
Logo, as operações de arrendamento mercantil estão expressamente excluídas do campo de incidência, contido no § 1º do art. 2º da citada Lei Complementar que assim prescreve:
‘§ 1º O imposto incide também:
1 – sobre a entrada de mercadoria importada do exterior, por pessoa física ou jurídica, ainda quando de tratar de bem destinado a consumo ou ativo permanente do estabelecimento’.
Por que a exclusão expressa do inciso VIII do art. 3º?
É para deixar bem claro que as operações de leasing só se subsumem ao conceito de ‘circulação de mercadorias’ quando o arrendatário adquire a propriedade do bem arrendado. Enquanto estiver pagando o preço mensal do arrendamento, descabe a cogitação de ‘operações relativas circulação de mercadoria’ porque não existe movimentação em direção ao consumo, pois a mercadoria arrendada, a menos que seja adquirida, retornará à posse de seu proprietário. Incogitável, outrossim, a figura do fato gerador provisório, atentatório ao princípio da segurança jurídica.
Logo, não nos parece ter a LC nº 87/96 exorbitado do âmbito de sua competência ao excluir expressamente o arrendamento mercantil da definição de fato gerador do ICMS. Somente a Constituição poderia alterar o conceito tradicional das categorias de direito privado, utilizadas para fixação de competências impositivas dos entes federados. E o legislador constituinte, quando quis, assim o fez.
Por isso, na vigência da ordem constitucional anterior em seu texto original, que não previa a tributação dos bens de capital, o STF editou a Súmula 570, hoje, prejudicada, mas que assim dispunha:
´O imposto de circulação de mercadorias não incide sobre a importação de bens de capital’.
Não é por outra razão, também, que o STJ editou a Súmula 166 nos seguintes termos:
‘Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte’.
Mais recentemente, decidiu o Colendo STJ no Resp 146.389-SP, in DJ de 13-6-2005:
‘Não configura fato gerador do ICMS a importação de aeronaves mediante contrato de arrendamento mercantil (leasing)
À toda evidência, essas Súmulas e o Resp citados encamparam o conceito de circulação jurídica de que falamos.
Se é verdade que o texto constitucional abarca operações procedentes do exterior e, por conseguinte, a entrada de mercadorias no país, não menos verdade que essa entrada há de representar uma ‘operação relativa circulação de mercadorias’ como retro conceituado.
Do contrário, haverá confusão com o fato gerador do imposto de importação, previsto no art. 19 do CTN, incidindo na bitributação jurídica não admitida pela Carta Política. A bitributação jurídica só seria possível ante expressa ressalva feita pela própria Constituição como no caso do antigo IVV municipal e do ICMS estadual, incidentes sobre combustíveis líquidos e gasosos, exceto óleo diesel.
O disposto no § 2º, inciso IX, a do art. 155 da CF não pode ser interpretado senão em harmonia com o disposto no seu caput e inciso II, sob pena de admitir a dupla outorga de competência impositiva aos Estados. E o art. 155, II da CF não pode ser interpretado de forma a negar a função da lei complementar, atribuída pelo art. 146, III, ‘a’, e muito menos de forma a violar o princípio constitucional da discriminação de rendas tributárias, garantia maior do contribuinte, assegurada em nível de cláusula pétrea.
Assim, com todas as vênias, merece reexame a tese da tributação do leasing internacional, sufragada pelo STF no RE 206.069-SP, in DJ de 13.9.2005. Somente após o detido exame do art. art. 3º, inciso VIII, em confronto como o inciso I, do § 1º do art. 2º da Lei Complementar nº 87/96 e à luz de textos constitucionais pertinentes é que poderia concluir pela incidência ou não do ICMS nas operações de arrendamento mercantil, na hipótese de o arrendador tiver domicílio no exterior.
Essa regra do inciso VIII, do art. 3º retrotranscrito, salvo melhor juízo, excepciona, expressamente, a incidência do ICMS nas operações de arrendamento mercantil para deixar claro que essas operações, por não representar ‘circulação de mercadorias’, não estão abrangidas pelo campo de incidência descrito no inciso I, do § 1º do art. 2º (entrada de mercadoria importada do exterior). Dessa forma, irrelevante saber se a operação de arrendamento mercantil ocorreu no âmbito interno do território brasileiro, ou no âmbito internacional.
São estas as modestas considerações para reflexão sobre o tema, à luz da recente decisão da Corte Suprema, que tudo indica, afasta-se do conceito de ‘circulação jurídica’ tradicionalmente acolhido em seus julgados.