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Reflexão sobre a coisa julgada, natureza e limites de eficácia das sentenças trânsitas em julgado contrárias à Constituição

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Agenda 27/09/2005 às 00:00

3. O controle da constitucionalidade como garantia da Constituição e seus valores consagrados.

O constitucionalismo, da forma como hoje se apresenta, isto é, com a supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico e a previsão legal do controle de constitucionalidade dos atos normativos, surgiu no século XVIII, com o fim do Estado Absoluto e surgimento do Estado Liberal. Costuma-se apontar, como marcos iniciais, as Constituições escritas e rígidas dos Estados Unidos da América, em 1787, após a Independência das 13 colônias, e da França, em 1791, a partir da revolução Francesa, que trouxeram em seu bojo a organização do Estado e limitação do poder estatal, através da previsão de direitos e garantias fundamentais.

Contudo, como bem ressalta Alexandre de Morais 27, aqueles diplomas correspondem à origem formal do constitucionalismo, sendo que o Direito Constitucional norte-americano tem origem mais remota, sendo integrado pelos textos da época colonial (Fundamental Orders of Connecut, 1639) e a Declaração de Independência, a declaração de Virgínia e outras declarações dos primeiros Estados.

Quanto ao controle de constitucionalidade, sua origem também remonta ao direito norte-americano, tendo como ponto de partida a decisão proferida, em 1803, no julgamento do caso Marbury x Madison, em que o juiz Marshall demonstrou a nulidade do ato legislativo ou executivo incompatível com a Constituição 28.

Nos dias atuais, é imperativo o princípio da supremacia da Constituição, que sustenta que este diploma, estando no ápice do sistema normativo, serve como fundamento de validade de todos os demais atos jurídicos, uma vez que no texto constitucional estão contidos os próprios fundamentos do Estado, sua organização e funcionamento e seus princípios fundamentais. A Constituição é, desta forma, a norma fundamental que confere unidade ao ordenamento jurídico. Ela se destina a disciplinar a vida em sociedade, baseada em um sistema de valores eleitos como essenciais à sua harmonia.

Esta supremacia na ordem normativa corresponde ao princípio da constitucionalidade, enunciado por Luiz Roberto Barroso 29, ao afirmar que por força da supremacia constitucional, nenhum ato jurídico, nenhuma manifestação de vontade pode subsistir validamente se for incompatível com a Lei Fundamental.

Conforme explica Paulo Otero, "a atual fase do Estado Constitucional submete toda a atividade do poder público ao princípio da constitucionalidade, ainda que isso não implique sempre a existência de mecanismos de controle e declaração da invalidade de todos os atos do poder público". 30 Aqui, importa destacar que também a atividade jurisdicional se encontra subordinada ao princípio da constitucionalidade, dependendo a validade dos seus atos da conformidade com a Lei Fundamental.

Em nome da supremacia constitucional, o sistema jurídico brasileiro prevê, ao lado dos instrumentos para garantia da observância dos preceitos normativos ordinários, um elaborado sistema de controle de constitucionalidade das leis, que segue o modelo eclético, admitindo o controle abstrato pelo Supremo Tribunal Federal, e o controle difuso por todos os tribunais.

Dentre os instrumentos de salvaguarda da constitucionalidade, podemos destacar a ação direta de inconstitucionalidade (art. 103. da CF), a ação declaratória de constitucionalidade (art. 102, § 1º da CF), a ação de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º da CF), a ação de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1º CF), o mandado de injunção (art. 5º, LXXI da CF), o incidente de inconstitucionalidade nos tribunais (art. 97. da CF) e a suspensão, pelo Senado, da execução da lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.

Além disso, o sistema atribuiu competência ao maior tribunal do poder judicial, o Supremo Tribunal Federal, para que este fosse o guardião maior da Constituição, não só porque a ele se dirige o recurso em matéria constitucional – recurso extraordinário- mas também porque ele tem o poder de declarar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade com eficácia erga omnes e efeito vinculante. Ressalte-se ainda que, através de uma decisão deste tribunal em via de controle difuso de constitucionalidade, pode-se acarretar a suspensão da norma inconstitucional através de resolução do Senado Federal.

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Todavia, no que se refere aos atos jurisdicionais inconstitucionais, observa-se que estes, uma vez ultrapassados os prazos para recursos ordinário e extraordinário e operada a coisa julgada, carecem de mecanismos específicos de controle de constitucionalidade.

Deste modo, impõe-se a reflexão acerca da possibilidade de controle da constitucionalidade do ato judicial que, ultrapassando as possibilidades de recursos existentes, venha a formar coisa julgada contrária à constituição, fenômeno que se convencionou denominar coisa julgada inconstitucional.


4. Da coisa julgada como instrumento fundamental no direito processual e segurança jurídica.

O processo tem por finalidade dirimir as lides levadas a juízo, através da remoção de obstáculos à realização do Direito. Nas palavras de Teori Albino Zavascki, "É objetivo fundamental da jurisdição, segundo entendimento corrente, a eliminação de conflitos de interesses mediante decisões justas". 31

Outrossim, é fundamental para a pacificação social objetivada pelo Direito a estabilidade das decisões, sendo certo que a segurança jurídica seria gravemente comprometida se fosse admissível discutir-se indefinidamente uma questão já decidida em juízo, levando as partes a uma eterna sensação de incerteza e angústia.

No intuito de garantir a segurança jurídica, o ordenamento dispõe de diversos institutos que têm como finalidade a estabilização das decisões judiciais, tais como os prazos processuais, as preclusões de toda ordem e, a mais importante destas, a coisa julgada, instituto fundamental ao funcionamento do processo, que tem o condão de assegurar a firmeza das situações jurídicas.

Por muito tempo predominava o entendimento de que a imutabilidade da sentença se justificava por ela representar a revelação, pelo juiz, da verdadeira vontade da lei, daí tendo surgido o aforismo "O juiz é a boca que pronuncia as palavras da lei." Hoje, contudo, este idealismo não mais prevalece. Na verdade, o fundamento da coisa julgada, explica Murilo Sechieri Costa Neves 32, é puramente prático, consistindo na necessidade de se evitar a perpetuação de conflitos de interesses. Deste modo, é a coisa julgada um instrumento que atende às conveniências do processo, tendo enorme importância na obtenção da paz na convivência social.

Com efeito, conforme afirma Walter Nunes da Silva Júnior 33, os litigantes, além do desejo de saírem vencedores na demanda judicial, têm ainda a pretensão de que a decisão proferida se revista de autoridade, sendo imposta ao vencido, a despeito de sua recalcitrância em com ela conformar-se.

Todavia, a segurança jurídica almejada pela coisa julgada não é um valor absoluto. Ela representa um princípio constitucional e, nessa qualidade, sujeito a relativização de modo a possibilitar a harmonização do ordenamento jurídico. Superada está a época em que se defendia com intransigente veemência que a coisa julgada seria capaz de fazer de albo nigrum e mudar falso in verum.

É que, como fora explicado, a segurança jurídica possui um valor instrumental, conquanto da maior relevância, com relação ao processo, visando a salvaguardar a paz jurídica e a credibilidade do poder jurisdicional. Porém, é preciso se reconhecer que, em determinados casos, esta mesma credibilidade melhor será assegurada se a coisa julgada for relativizada, em favor de outros princípios constitucionais previstos pelo ordenamento.

Como adverte Cândido Dinamarco 34, é necessário se equilibrarem, no sistema do processo, as exigências conflitantes da celeridade, que favorece a certeza das relações jurídicas, e da ponderação, cuja função é produzir resultados justos.

O autor se refere, como exemplo, a um recurso especial levado a julgamento perante o Superior Tribunal de Justiça, cujo relator fora o Ministro José Delgado. Tendo o Estado de São Paulo sido vencido em ação de desapropriação indireta, fora condenado a indenizar a parte adversa, com que veio a realizar um acordo de parcelamento. Posteriormente, verificando-se que o terreno expropriado pertencia ao próprio Estado e não aos autores, aquele veio a ajuizar ação declaratória de nulidade cumulada com repetição de indébito, tendo o Ministro Delgado votado em favor da procedência, a despeito da coisa julgada. Sua tese foi vencedora por três votos contra dois 35.

Deste modo, alerta Dinamarco, deve-se promover uma interpretação sistemática dos princípios e garantias constitucionais do processo civil, uma vez que nenhum deles constitui um fim em si mesmo, mas todos servem como meios de proporcionar um sistema processual justo.


5. O valor da justiça revelado pela isonomia

Como já fora dito, o Direito representa a realização de uma tábua de valores, composta pelos valores ordem, segurança, poder, paz, cooperação, solidariedade e justiça, os quais se realizam em todas as manifestações do Direito. Contudo, o valor fundamental do fenômeno jurídico é o valor justiça.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XXXV, efetiva a promessa da justiça nas decisões judiciais através da garantia do acesso à justiça, ao dispor: "a lei não excluirá da apreciação do judiciário lesão ou ameaça a direito".

Teori Albino Zavascki 36 explica que proferir decisões justas é efetivar, no plano social, as finalidades básicas do sistema normativo, consagrando os ideais estabelecidos pelo ordenamento jurídico.

Não obstante, declarar o significado da palavra justiça não é tarefa das mais fáceis, tendo se empenhado em explanar a matéria pensadores das mais diversas épocas e origens. É certo, porém, que o conceito justiça formulado por Aristóteles na obra Ética a Nicômaco 37 revela-se, ainda hoje, como uma forma eficiente de descrever o termo.

Para Aristóteles, a justiça, assim como o seu extremo oposto, a injustiça, são conceitos ambíguos, na medida que descrevem mais de um fenômeno. Nesse ínterim, o filósofo relata três versões para o conceito de justiça, sempre dentro do contexto de que o ideal ético é o meio-termo entre dois extremos.

A primeira acepção da palavra justiça, para o filósofo grego, significa o respeito à lei. Segundo Aristóteles, a lei traz comandos em que se revelam todas as virtudes, de forma que ser justo obedecendo à lei representaria a virtude por excelência, a virtude completa.

A segunda concepção de justiça descrita pelo autor é a justiça distributiva, que consiste, sumariamente, na distribuição proporcional de bens de acordo com o mérito de cada pessoa. Explica o filósofo:

"A justiça distributiva é a conjunção do primeiro termo de uma proporção com o terceiro, e do segundo com o quarto, e o justo nesse sentido é o meio-termo, e o injusto é o que viola a proporção, pois o proporcional é o intermediário, e o justo é o proporcional". 38

O terceiro sentido da palavra justiça, complementa, é o que denomina justiça corretiva, segundo a qual o justo seria o intermediário entre um ganho e uma perda, e o papel do juiz, no caso da ocorrência de um dano, seria restaurar a justiça através da subtração de uma parte do ganho do ofensor, o que se concretizaria através da aplicação da pena.

A segunda significação da palavra é a que mais de perto interessa à presente questão, pois a isonomia corresponde justamente à realização da justiça distributiva.

Com efeito, o princípio da isonomia, previsto no art. 5º, caput, da Constituição Federal, consiste no dever jurídico atribuído ao Estado e a todos os cidadãos de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, o que, em outras palavras, corresponde à justa distribuição.

Costuma-se, também, associar-se à justiça à qualidade da cognição estabelecida no processo, de forma que a sentença justa será aquela que tenha sido objeto de uma cognição ampla e profunda, em que às partes tenha sido oportunizados o contraditório e a ampla defesa em toda a sua plenitude.

Pois bem, na esteira do raciocínio desenvolvido ao longo deste trabalho, cabe colocar que valor segurança jurídica, consagrado pela coisa julgada, quando a ele se atribui caráter absoluto, pode levar à consagração de injustiças, sempre que, ao serem decididas situações idênticas, as decisões tragam resultados desiguais, em violação à justiça distributiva.

É certo, porém, que normalmente a injustiça deverá ceder ao imperativo da segurança jurídica, em nome da manutenção do poder jurisdicional. Deste modo, conforme anteriormente exposto, Cândido Dinamarco 39 defende que a garantia da coisa julgada deve ser posta em equilíbrio com as demais garantias constitucionais e com os institutos jurídicos conducentes à produção de resultados justos mediante as atividades inerentes ao processo civil.

Em nome da justiça das decisões, impõe-se de modo especial a revisão da coisa julgada quando se verificar a desigualdade no tratamento da mesma matéria, ou seja, na hipótese de se ter por ferido o princípio da isonomia. Exemplo típico desta situação foi relatado por Francisco Barros Dias 40. Este autor referiu-se à situação, bastante comum, em que um servidor público tenha obtido determinada vantagem funcional perante o Judiciário e, uma vez transitada em julgado a sentença que concedeu tal vantagem, tenha assegurado em seu direito de forma definitiva. Esse servidor, no entanto, exerce cargo idêntico ao de um outro colega da mesma repartição, tendo ambos ingressado no serviço público na mesma data, com salários rigorosamente idênticos. Pois bem, suponha-se que o outro servidor também tenha ido ao judiciário buscar a mesma vantagem. Contudo, neste caso, o Judiciário negou o seu direito, quer porque um outro Juiz entendeu que não fazia jus a tal pleito, quer porque houve mudança da jurisprudência sobre o assunto. A sentença proferida no processo desse outro servidor também veio a transitar em julgado. Assim, restará o fato de que um ficará percebendo salário maior, concedido pelo Judiciário, e o outro uma menor remuneração, sendo ambas as situações irreversíveis em virtude da coisa julgada.

Uma situação desta natureza certamente causará perplexidade e a sensação de injustiça entre os sujeitos envolvidos, comprometendo-se, sobremaneira, a credibilidade dos julgamentos proferidos pelo judiciário. Assim, melhor seria admitir-se a relativização da coisa julgada para que, mediante a equiparação das vantagens asseguradas aos sujeitos que dispõem de situações jurídicas idênticas, se venha a resguardar o princípio constitucional da isonomia, em nome do valor maior do ordenamento jurídico representado pela justiça.

É preciso, pois, que se considere o caráter não absoluto do valor segurança nas relações jurídicas, e, consequentemente, da garantia da coisa julgada, em face do princípio da justiça das decisões judiciárias, constitucionalmente prometido mediante a garantia do acesso á justiça. "Não é legítimo eternizar injustiças a pretexto de evitar a eternização de incertezas". 41

Sobre a autora
Ilana Flávia Cavalcanti Silva

advogada em Maceió (AL), especialista em Direito Civil, especialista em Direito Administrativo, Constitucional e Tributário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Ilana Flávia Cavalcanti. Reflexão sobre a coisa julgada, natureza e limites de eficácia das sentenças trânsitas em julgado contrárias à Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 818, 27 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7338. Acesso em: 5 nov. 2024.

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