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A simetria conceitual existente entre a teoria de justiça de John Rawls e os consórcios públicos

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Agenda 27/09/2005 às 00:00

Este texto realiza estudo comparativo entre os principais aspectos da teoria de justiça proposta por John Rawls e o regime jurídico dos consórcios públicos estabelecido pela Lei n.º 11.107/05.

Sumário:1. Introdução. 2. Do conceito de consórcio público. 3. Do conceito de justiça de John Rawls e do princípio da cooperação interfederativa. 3.1. Do princípio da cooperação interfederativa. 3.2. Da justiça como eqüidade. 3.2.1. Da necessária eticidade nas ações da administração pública. 3.2.1.1. Do conceito de políticas públicas. 3.2.2. Da definição de sociedade proposta por John Rawls e os consórcios públicos. 3.2.3. Da posição original e o véu da ignorância e os consórcios públicos. 3.2.4. do objeto da justiça como eqüidade e os consórcios públicos. 4. Conclusões.


1. Introdução

Importante ao exame de qualquer instituto jurídico é conhecer seus fundamentos filosóficos, pois da exata compreensão deste imprescindível embasamento conceitual é que o operador do Direito obterá a maximização do potencial de utilidade da ferramenta jurídica, objeto de seu foco de atenção. Assim, o presente estudo tem por finalidade realizar estudo comparativo entre os principais aspectos da teoria de justiça proposta por John Rawls e o regime jurídico dos consórcios públicos estabelecido pela Lei Federal n.º 11.107, de 06/04/05, identificando eventuais pontos de convergência existentes entre a aludida teoria e a prática estabelecida pela Lei Reguladora dos consórcios públicos brasileiros.

Vale lembrar, à guisa de introdução, que foram três as principais preocupações que levaram o Governo Federal a elaborar o Projeto de Lei n.º 3.884/04, embrião da Lei Regulatória dos Consórcios Públicos, promulgada em 06/04/05:

1ª - definida como responsabilidade de Estado consubstanciada na"necessidade de complementar o desenho federativo decorrente da Constituição da República, em especial nos aspectos cooperativos do federalismo";

2ª - solucionar a "carência de instrumentos de coordenação de políticas públicas de responsabilidade do Governo Federal, considerando especificamente aquelas executadas de forma conjunta com Estados e Municípios", ampliando o alcance e efetividade das políticas públicas e da aplicação dos recursos públicos; e

3ª - atender aos anseios das entidades nacionais de representação de prefeitos ao longo de 2003, no sentido de completar lacuna legislativa quanto "à precariedade jurídica e às limitações institucionais dos instrumentos de consorciamento que os Municípios hoje utilizam", disciplinando a possibilidade de constituição de instrumentos de cooperação intermunicipalque lhes ofereça "segurança jurídica e possibilidade de planejamento e atuação de médio e longo prazo" [01].

Dessas três motivações, a que está voltada para os aspectos cooperativos do federalismo, em especial, merece comentário, face à sua direta relação com os consórcios públicos. Sem dúvidas, esta é a principal característica do instituto do consórcio público, a ponto de possibilitar referir esta relevante nuance como a principal componente do que denominar-se-á adiante como o princípio da cooperação interfederativa. Assim, o exame detalhado desse aspecto sob a ótica jusfilosófica de John Rawls, portanto, constitui o objeto de análise do presente estudo.


2. Do conceito de consórcio público

Antes de iniciar o exame do princípio da cooperação, componente norteador e essencial do regime jurídico consorcial, à luz da teoria de justiça do consagrado filósofo norte-americano, faz-se necessário breve comentário acerca do conceito de consórcio público com intuito de se estabelecer, de início, acordo semântico facilitador do exame da matéria em apreciação.

Da interpretação sistemática da Constituição Federal e da Lei Federal n.º 11.107/05 é possível depreender que um consórcio público é um contrato firmado entre entes federativos de quaisquer espécies – União, Estados, Distrito Federal e Municípios –, que tem por objeto a gestão associada de serviços públicos. Dessa forma, verifica-se com facilidade que o consorciamento de entes federativos aparece no cenário jurídico como ferramenta poderosa para viabilizar as políticas públicas nos municípios pequenos e de poucos recursos, que apenas para se ter uma noção do alcance deste instituto, em 1999, representavam 74,8% das então 5.507 municipalidades brasileiras [02]. De se perceber que este importante dado estatístico demonstra a relevância do aprofundamento do estudo dos consórcios públicos no Brasil.

A partir da instituição de consórcios públicos, as pequenas e pobres comunas brasileiras poderão implementar políticas públicas que estão há tempos paradas na prancheta por absoluta falta de recursos, bem como dar prosseguimento àquelas que foram interrompidas por insuficiência de verbas públicas.

Aliás, a falta de recursos é uma das principais causas de obras paralisadas em nosso país. Levantamento feito pelo Tribunal de Contas da União, encomendado pela Comissão de Fiscalização e Controle da Câmara Federal, visando a subsidiar estudos relativos a alterações na elaboração do orçamento apontam a existência, na atualidade, no Brasil, de três mil (3.000) obras paradas, devido ao "descaso, falta de compromisso das bancadas, irregularidades e escassez de investimentos públicos" [03], gerando prejuízo de R$ 15 bilhões aos cofres públicos, valor correspondente ao dobro do que o governo investe em infra-estrutura por ano.

E uma das causas levantadas, a escassez de investimentos, pode ser atacada eficazmente através do consorciamento de entes federativos, que propiciará o somatório dos recursos de cada ente consorciado, destinados à realização de determinada prestação de serviços comum a todos. Assim, se os municípios A e B não dispunham, individualmente, de recursos para a construção de um hospital local em cada município, juntos, os recursos somados poderão propiciar a construção e manutenção da aludida obra, viabilizando o incremento da prestação do serviço de saúde em ambos os municípios consorciados.


3. Do conceito de justiça de John Rawls e do princípio da cooperação interfederativa

Assim, diante do grande potencial realizador, em termos de políticas públicas que o instituto do consórcio público traz, é inevitável relacioná-lo com as diversas teorias de justiça até hoje desenvolvidas pelos mais renomados filósofos da humanidade. É natural concluir que a implementação de ações de Estado, visando ao bem comum, significa a materialização concreta da aspiração humana de realização de justiça.

Mas o que vem a ser justiça? Este é um conceito sobre o qual o ser humano se debruça há milênios e ainda não conseguiu obter uma resposta definitiva para tão instigante questionamento.

Todavia, a despeito de existirem inúmeros tratados sobre o conceito de justiça – e isto restringindo-se tal universo apenas aos conceitos ocidentais, devido ao raro intercâmbio conceitual verificado neste tema com as culturas ditas não-ocidentais –, concentrar-se-á o presente ensaio numa das mais atuais concepções de justiça, que é a formulada por John Rawls, prestigiado filósofo político norte-americano, falecido aos oitenta e um anos, em 2002, considerado um dos maiores representantes da teoria da democracia liberal dos dias de hoje. Em 1971, escreveu "Uma Teoria da Justiça", importante tratado jurídico-político que o alçou definitivamente à condição de integrante do seleto grupo dos grandes pensadores sociais do Século XX. Verificar-se-á adiante que é possível identificar uma contundente simetria conceitual entre dita teoria e o princípio da cooperação interfederativa existente no regime jurídico dos consórcios públicos.

Assim, também é relevante ao exame da matéria, buscar definir o que seja um princípio em nossa ordem jurídica, pois a partir desse conceito, poder-se-á delinear com maior precisão o significado e alcance do princípio da cooperação, norteador das atividades consorciais, o que propiciará um exame mais proveitoso da mencionada simetria conceitual.

3.1. Do princípio da cooperação interfederativa

Leciona Almiro do Couto e Silva que "os princípios meramente indicam caminhos para soluções que só serão tomadas após processo de ponderação com outros princípios. Todos eles são comparados e sopesados a fim de que se apure com que ‘peso’ ou em que ‘medida’ deverão ser aplicados ao caso concreto, por vezes se verificando, ao final desse processo, que só um deles é pertinente à situação em exame, devendo afastar-se o outro ou os outros, sem que haja, assim, revogação de um princípio em outro" [04].

Ainda nesse contexto, o eminente jurista, traduzindo escritos de Alexy, traz a lume o entendimento do autor alemão sobre as diferenças entre princípios e regras, reproduzindo o original em alemão da seguinte forma¸ in verbis:

"Ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam, tanto quanto possível, observadas as possibilidades jurídicas e fáticas, sejam realizadas na maior medida. Princípios são, pois, comandos de otimização, os quais se caracterizam por poderem ser atendidos em distintos graus e que a medida do seu preenchimento depende não apenas das possibilidades fáticas como também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é definido pela combinação de princípios e regras." [05]

Assim, filiando-se ao entendimento de Alexy, pela sua coerência e objetividade, utilizar-se-á neste trabalho a idéia de que os princípios são comandos de otimização (Optimierungsgebote) incidentes ao caso concreto, cuja medida de aplicação atenderá as possibilidades fáticas e jurídicas envolvidas. É que se pode perfeitamente admitir que um princípio seja mitigado ou até mesmo preterido por outro, face às infinitas possibilidades fáticas que o mundo da vida poderá configurar em determinado caso concreto, tanto na aplicação da regra por operadores não-julgadores, quanto na prolação de decisão pelo julgador.

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Portanto, no caso específico dos consórcios públicos, pode-se afirmar que o princípio da cooperação é o comando otimizador prevalente das atividades realizadas em regime de consorciamento, pois ele constitui a própria essência do instituto consorcial, como noticiou a Exposição de Motivos n.º 18/04, de 25/06/04, do Projeto de Lei n.º 3.884/04, que deu origem à Lei Reguladora dos Consórcios Públicos Brasileiros – Lei Federal n.º 11.107/05 –. De se verificar que dito comando principiológico carrega a idéia da conjugação de esforços dos diferentes entes federativos, visando à implementação de determinada política pública, que individualmente, nenhum deles teria condições plenas de realizar com eficácia. Em outras palavras, trata-se da recepção no ordenamento jurídico pátrio do conhecido adágio popular que assevera que "a união faz a força".

Dessa forma, é natural concluir que dito princípio deverá receber a devida atenção por todos os operadores que atuarem no regime jurídico consorcial. Importa repisar que a cooperação é a essência do instituto. Por conseguinte, uma vez delineada uma definição possível do princípio da cooperação dos entes federativos, passa-se ao estudo das principais características da teoria de justiça proposta pelo eminente professor norte-americano.

3.2. A justiça como eqüidade

Segundo Rawls, o conceito de justiça pode ser explicado pela eqüidade, pois na medida em que são estabelecidas condições iguais entre as pessoas de um determinado grupo social, a justiça tenderá a se realizar naturalmente. Verificar-se-á logo a seguir que este aspecto teórico reflete-se na prática consorcial através da sua convergência conceitual com o já mencionado princípio da cooperação subsistente em um consórcio público.

Com efeito, as pequenas e pobres municipalidades se associarão visando à superação das mais diversas injustiças sociais diretamente relacionadas com a escassez de recursos para a implementação das políticas públicas de prestação de serviços à coletividade.

Assim, através da gestão associada de um determinado serviço público – tome-se o de saúde, por exemplo – os entes federativos consorciados proporcionarão às pessoas de menor poder aquisitivo de suas comunidades acesso a serviços de melhor qualidade prestados pelo sistema público de saúde administrado de forma consorciada. Este acréscimo qualitativo da prestação dos serviços públicos de saúde, no que diz com a disponibilização ao usuário de um sistema de saúde mais qualificado, aproximará o grande contingente pobre da população do diminuto segmento social que desfruta de condições financeiras propiciadoras do acesso aos serviços privados de saúde, via de regra, mais qualificados.

Portanto, diante desta perspectiva, quer parecer que o conceito de justiça como eqüidade, desenvolvido pelo célebre filósofo político encontra ressonância no plano concreto através do consórcio público, portanto, constituindo-se referido instituto em ferramenta implementadora de justiça (como eqüidade) no âmbito das comunidades beneficiárias da gestão associada de serviços públicos.

Em sua teoria da justiça como eqüidade, ao tratar de generalizar e levar a um nível mais alto de abstração o conceito tradicional de contrato social proposto por Jean-Jacques Rousseau no século XVIII (1762) [06], John Rawls intencionou apresentar uma alternativa para as concepções clássicas de justiça – utilitarismo e intuicionismo – que há muito dominam a tradição filosófica ocidental [07].

Com efeito, apresenta-se justa à avaliação humana, a idéia de que o Estado, utilizando-se adequadamente dos recursos públicos, propicie atendimento satisfatório, em termos de prestação de serviços públicos, à sociedade que lhe provê recursos para o cumprimento de tais finalidades de interesse comum.

De igual modo, afigura-se injusta a concretização de situação fática onde o Estado, em razão de inúmeros fatores, dentre os quais, a insuficiência de recursos, deixa de cumprir seu papel viabilizador do interesse público. Afinal, quando os cidadãos pagam seus tributos [08], esperam legitimamente que a Administração Pública cumpra sua parte, prestando serviços públicos minimamente aceitáveis do ponto de vista qualitativo, que consiga satisfazer eficazmente às necessidades coletivas dos mais diversos matizes.

Assim, quando o tributo é recolhido pelo fisco, mas não se verifica proporcionalidade [09] entre a arrecadação fiscal e a implementação das políticas públicas, o cidadão comum experimenta um sentimento desagradável, de inoperância estatal, que decorre da concretização de uma injustiça na relação jurídica do particular, em especial o contribuinte, com o Estado.

De se notar que a instituição de consórcios públicos está intimamente relacionada com esse sentimento de injustiça gerado pela inoperância governamental decorrente da insuficiência de recursos. É que a partir da gestão compartilhada de serviços públicos, os entes federativos poderão reduzir os seus déficits operacionais de políticas públicas, diminuindo esta sensação de injustiça que atualmente grassa entre as comunidades prejudicadas pela aludida inoperância estatal. Daí, a relevância do estudo dos consórcios públicos sob a ótica filosófica, pois assim pode-se colacionar a este tema, fundamentos filosóficos imprescindíveis à correta interpretação e conseqüente desdobramento de tão instigante assunto.

Indubitavelmente, John Rawls é um dos filósofos contemporâneos de mais notoriedade no mundo ocidental na atualidade. Como já referido, desenvolveu uma teoria que enxerga a justiça como eqüidade [10], que se caracteriza, dentre outros aspectos, por estar perfeitamente contextualizada ao mundo contemporâneo, pelo que tem recebido o devido destaque no mundo acadêmico ocidental.

E é em razão de sua notável atualidade que o presente ensaio centrou-se no levantamento dos pontos convergentes entre o regime jurídico dos consórcios públicos e a teoria de Jonh Rawls, sem que isso signifique qualquer menosprezo às demais teorias de justiça desenvolvidas por outros consagrados filósofos políticos de renome mundial, pois todo o progresso realizado pela humanidade, em qualquer campo do saber, decorre, utilizando-se de uma expressão hegeliana, de aufhebung [11], ou seja, do entendimento de que a concepção de uma nova teoria é invariavelmente precedida por um movimento de superação e guarda dos conceitos até então desenvolvidos naquela matéria.

O célebre filósofo norte-americano parte do pressuposto de que "cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar" [12]. Com essa observação, ele rechaça a teoria de justiça utilitarista clássica, representada por Sidgwick [13], que prescreve que "a sociedade está ordenada de forma correta, e portanto, justa, quando suas instituições mais importantes estão planejadas de modo a conseguir o maior saldo líquido de satisfação obtido a partir da soma das participações individuais de todos os seus membros" [14].

Assim, segundo a concepção de Rawls, em uma sociedade justa, o tratamento isonômico entre os cidadãos passaria a ser inviolável, não sendo mais possível admitir-se a infringência de qualquer direito individual em benefício da maioria, como até hoje tem se admitido. O raciocínio esboçado por Rawls merece reflexão no presente estudo porque corrobora, no plano das políticas públicas, o entendimento de que os serviços públicos, que são formas de expressão material de tais políticas, não serão justos, ainda que presente o maior saldo líquido de satisfação possível, se deixarem de contemplar eficazmente qualquer segmento da sociedade, seja por exclusão de determinado segmento, seja por insuficiência operacional.

Exemplificando, um serviço de iluminação pública municipal, que contemple apenas os bairros onde residam pessoas de maior poder aquisitivo, deixando às escuras as vilas pobres da cidade, configura-se em uma prestação de serviço injusta por excluir arbitrariamente determinado segmento da comunidade do direito à segurança que decorre da iluminação das vias públicas daquela localidade. Evidente, no exemplo, que a exclusão do segmento pobre da comunidade consubstancia a injustiça naquela prestação de serviço, pois todos os municípes, indiscriminadamente, têm direito à iluminação pública.

Da mesma forma, a priorização exacerbada de asfaltamento apenas das vias públicas situadas em regiões pobres da cidade, em detrimento da pavimentação em outras áreas de poder aquisitivo maior, também configura injustiça no plano da implementação da políticas públicas locais a merecer a devida correção, segundo a teoria filosófica apresentada por John Rawls.

3.2.1. Da necessária eticidade das ações da administração pública

Portanto, parece inafastável concluir que a Administração Pública ao planejar as suas políticas públicas deverá observar com rigor a implementação de tratamento isonômico a seus cidadãos, pena de cometimento de ações injustas sob o ponto de vista da eticidade que, como se sabe, diferencia-se de moralidade, na visão hegeliana, porque enquanto a moralidade se orienta por princípios formais de obrigação, abstratos e ahistóricos e, portanto, intrínsecos ao sujeito, a eticidade inclui todo o movimento de concretização objetiva, carregando "conteúdo e uma existência que se situa num nível superior ao das opiniões subjetivas e caprichos pessoais", como bem asseverado por Thadeu Weber [15]. Em outras palavras, na moralidade o sujeito é avaliado a partir dos aspectos subjetivos de seu agir, independentemente dos conceitos vivenciados pela coletividade. A avaliação moral do sujeito levará em conta tão-somente a sua carga pessoal de valores, que poderá não coincidir com os usos e costumes do grupo social em que vive.

Já na eticidade, a subjetividade é colocada em segundo plano, pois considera o agente como membro (Mitglied [16]) de uma comunidade ética, sendo qualificado a partir de determinações objetivas evidenciadas nos resultados e conseqüências de suas ações. Aqui, no campo ético, a aprovação da conduta do agente dependerá dela estar harmonizada com os valores defendidos pela sociedade em que o sujeito convive, que são objetivamente aferíveis.

Portanto, no caso do controle das ações do Estado, é relevante a aplicação do conceito de eticidade ao invés do de moralidade, pois aquele proporciona parâmetros objetivos de avaliação da conduta estatal. Desse modo, a ação do Estado no campo das políticas públicas será ética se, dentre outras coisas, conseguir implementar serviços públicos eficazes que satisfaçam efetivamente às necessidades coletivas, sem exclusão de quaisquer segmentos sociais. E neste espectro, de ampla abrangência social, verifica-se que os consórcios públicos assumem papel de destaque na realização de atividades estatais com grande carga ética, concretizadoras da tão almejada justiça social.

3.2.1.1. Do conceito de políticas públicas

Nesse aspecto, objetivando melhor situar o leitor, vale evidenciar o significado semântico de políticas públicas empregado no presente ensaio. Maria Paula Dallari Bucci as define como "instrumentos de ação dos governos" [17]. A jurista, citando Fábio Konder Comparato [18], coloca que o government by policies (governo pelas políticas) desenvolve e aprimorao government by law (governo pela lei). E mais, entende que "as políticas são uma evolução em relação à idéia de lei em sentido formal, assim como esta foi uma evolução em relação ao government by men [19], anterior ao constitucionalismo" [20], deixando transparecer uma irreversível trajetória de aproximação entre o direito – e seus mecanismos de controle – e as políticas públicas.

Ainda dentro do exame do conceito de políticas públicas, releva trazer a distinção entre princípio e política proposta por Ronald Dworkin:

"Denomino ‘política’ aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (ainda que certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem que algum estado atual deve ser protegido contra mudanças adversas). Denomino ‘princípio’ um padrão que deve ser observado, não porque vá comprometer ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou de eqüidade ou alguma outra dimensão de moralidade." [21]

Aliás, importa destacar a existência de estudos na doutrina pátria, merecendo destaque o realizado por Maria Paula Dallari Bucci [22], que propicia antever uma crescente aproximação do conceito de política pública à seara do direito administrativo, o que possibilitará o desenvolvimento de mecanismos jurídicos mais efetivos no controle da eficácia da política governamental, impedindo que, sob o manto da discricionariedade conferida ao agente político, sejam implementadas ações governamentais ineficazes e/ou injustas.

No âmbito dos serviços públicos, a execução das políticas públicas é, via de regra, atribuição das diversas agências reguladoras hoje existentes em nosso país. Exemplificativamente, vale citar a Agência Nacional das Telecomunicações (ANATEL), criada pela Lei Geral das Telecomunicações (Lei Federal n.º 9.472/1997) e a Agência Nacional de Águas (ANA), criada pela Lei Federal n.º 9.984/2000. De se perceber que as normas jurídicas – e, portanto, finalisticamente, o Direito –, conferem a indispensável conformação jurídica das políticas públicas, apresentando-se como elementos indispensáveis na gênese das referidas políticas. Entretanto, a fase de controle das referidas ações governamentais ainda carece do entendimento de que o Direito seja elemento também imprescindível. Daí resulta que a ineficácia de algumas políticas públicas restem indevidamente acobertadas pelo vetusto conceito de discricionariedade da Administração Pública, o qual tem inviabilizado o controle efetivo do uso dos recursos públicos nas ações governamentais, ensejando males de toda a natureza, como o desvio de verbas públicas de suas finalidades sociais, bem como a endêmica corrupção vivenciada atualmente pelo Estado brasileiro.

Quer-se, assim, colocar que se o direito é imprescindível na criação de uma política pública, pois todas são criadas e reguladas por uma norma jurídica, como já observado, também deveria sê-lo no momento de avaliação de seu grau de eficácia, que ocorreria ao final do processo, pela incidência dos diversos mecanismos jurídicos de controle disponíveis (interno, externo e judicial), ocasião em que os agentes políticos responsáveis pelas políticas públicas ineficazes e/ou injustas seriam responsabilizados. Entretanto, infelizmente não é o que se tem observado na prática governamental brasileira onde alguns agentes políticos, por vezes, criam políticas públicas socialmente inócuas, que apenas representam custos ao erário, sem que sejam por isso penalizados, pela singela razão de que referida ação é compreendida como discricionarismo político, restando liberada, portanto, da incidência dos sistemas de controle jurídicos disponíveis (interno, externo e judicial).

É nesse sentido, de inclusão do direito administrativo na fase de controle da eficácia das políticas públicas, que se entende que o ingresso do conceito de políticas públicas na seara jurídica é medida urgente a ser implementada face à sua incontestável relevância nas ações de controle da Administração Pública brasileira.

Assim, diante dessa tendência, ousa-se afirmar que, o conceito de políticas públicas – que em sua grande parte, viabilizam a efetividade de direitos fundamentais [23] e de serviços públicos – integrará o rol de institutos jurídicos em futuro próximo.

3.2.2. Da definição de sociedade proposta por Rawls e os consórcios públicos

Apesar de Rawls desenvolver sua teoria considerando precipuamente a necessidade de estabelecimento de relações justas basicamente entre pessoas físicas, pensa-se que seus conceitos possam ser introduzidos no estudo das relações consorciais, efetivadas pelos entes federativos, pessoas jurídicas de direito público interno, porque os princípios catalogados pelo eminente professor norte-americano são igualmente aplicáveis no âmbito das pessoas jurídicas, uma vez que as ações destas representam, em última análise, o consenso de vontade dos seres humanos que as dirigem.

Assim, vale abordar o conceito de sociedade enunciado pelo filósofo, pois assemelha-se ao conjunto de entes que formam um consórcio público. Anuncia Rawls: "uma sociedade é uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que em suas relações mútuas reconhecem certas regras de conduta como obrigatórias e que, na maioria das vezes, agem de acordo com elas" [24]. Com efeito, um consórcio público é uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas jurídicas de direito público que pautam suas relações mútuas pelo contrato de consórcio público, agindo na maior parte das vezes, de acordo o aludido pacto.

Com muita propriedade, Rawls dispõe, ainda, que as regras estabelecidas pela sociedade especificam "um sistema de cooperação concebido para promover o bem dos que fazem parte dela" [25]. Ora, como já demonstrou, instituir um sistema de cooperação é a finalidade maior da instituição de um consórcio público. Aliás, esta é a razão pela qual se entende que as atividades consorciais devem ser analisadas e conduzidas sob a primazia do princípio da cooperação, como já referido.

Também é absolutamente possível depreender que além da identidade de interesses, a relação entre os entes consorciados também se caracterizará pela existência de eventuais conflitos porque "as pessoas não são indiferentes no que se refere a como os benefícios maiores produzidos pela colaboração mútua são distribuídos, pois para perseguir seus fins cada um prefere uma participação maior a uma menor" [26]. Por isso, Rawls defende a idéia de que os interessados escolham de comum acordo um conjunto de princípios que irá reger as relações sociais naquele grupo social. Estes princípios teriam por objetivo o estabelecimento de direitos e deveres dos integrantes do grupo, bem como a definição da distribuição apropriada dos benefícios e encargos da cooperação social. E esta escolha deverá ser feita logo no início, na organização do grupo, no momento que ele denominou de posição original.

3.2.3. Da posição original e do véu da ignorância e os consórcios públicos

A posição original defendida pelo filósofo político norte-americano é "o status quo inicial apropriado para assegurar que os consensos básicos nele estabelecidos sejam eqüitativos" [27]. Em outras palavras, é o momento em que todos os interessados decidem escolher os princípios de justiça que nortearão as relações do grupo envolvido. Este momento nos consórcios públicos ocorrerá por ocasião dos trabalhos preparatórios [28] para a celebração do protocolo de intenções. Portanto, nesse aspecto, surge outro ponto de convergência entre o regime consorcial e a teoria de justiça proposta por John Rawls, qual seja a necessidade do estabelecimento de uma posição original no processo de criação de um consórcio público.

Uma vez estabelecida a posição original na criação de um consórcio público, cabe agora referir outro fato consorcial que encontra correspondência na teoria de Rawls. Trata-se de examinar o ambiente em que se dará aludido debate. Crucial perceber que os trabalhos preparatórios deverão ser levados a cabo dentro de um clima de imparcialidade, onde todos os entes envolvidos se projetarão em absoluta igualdade de condições, independentemente da situação real que ostentem no universo político, econômico, populacional ou geográfico dos entes federativos interessados em se consorciar. Mas como fazer isso?

Tal situação somente será alcançada através da utilização do que Rawls denominou de véu da ignorância [29], artifício por ele criado para resolver o problema da escolha dos princípios que nortearão a justiça de um determinado grupo social. É através desse fictício véu que os entes envolvidos despir-se-ão de suas reais características e capacidades materiais, a fim de assumirem uma posição inicial de discussão marcada pela igualdade de condições entre todos os integrantes do grupo formado.

O véu da ignorância possibilita a escolha unânime de uma concepção particular da justiça. Sem ele, a negociação na posição original seria impossível, pois somente as pessoas genericamente determinadas têm condições igualitárias de participação no processo de construção do que seja justo. Assim, o véu da ignorância é uma tentativa de colocar todas as pessoas no mesmo nível de condições.

Assim, ao assumirem ficticiamente um nível de igualdade de condições, os entes federativos consorciandos, que repita-se por relevante, poderão ser Municípios, Distrito Federal, Estados e União, conforme preceitua o artigo 241 da Constituição Federal [30], estabelecem verdadeiro véu da ignorância, elemento imprescindível na criação de regras consorciais justas a todos os integrantes da gestão associada. Aliás, esta necessidade do estabelecimento de uma situação de igualdade de condições entre os entes federativos na criação de um consórcio público também encontra respaldo constitucional no princípio da autonomia dos entes federativos insculpido nos artigos 18 da Carta Federal [31]. Dessa forma, naquele momento, em que todos os entes interessados no consorciamento iniciam o debate acerca das regras que regerão o futuro consórcio público, é que se deve atribuir, por ficção, igualdade de condições entre os interessados, estabelecendo-se, assim, ambiente adequado ao prosseguimento das tratativas que visam à instituição de uma gestão associada de serviços públicos.

Curiosamente, verifica-se que este processo teórico desenvolvido por Rawls encontra guarida no plano concreto do regime consorcial. É que antes da celebração do contrato de consorciamento, os entes interessados reunir-se-ão previamente, visando à celebração do protocolo de intenções, definido pelo Projeto de Lei n.º 3.884/04, em seu art. 2º, inc. III, como sendo o "contrato preliminar que, ratificado mediante lei pelos entes da Federação interessados, converte-se em contrato de consórcio público" [32]. E este acordo prévio objetiva fixar, desde já, as regras fundamentais de convivência entre os entes que se consorciarão no futuro. Visa, portanto, partindo de uma situação análoga à posição original preconizada por Rawls, a estabelecer uma concepção pública de justiça no âmbito do consórcio que está prestes a se formar. Ou seja, a firmatura do protocolo de intenções representa o nascimento da carta fundamental do consórcio público, onde ficarão estabelecidas as regras que todos aceitam e sabem que os outros aceitam. Este diploma fundamental será posteriormente denominado de estatuto do consórcio público, carta que regerá as relações consorciais, alcançando-lhes a necessária coordenação, eficiência e estabilidade, conforme asseverava Rawls [33].

3.2.4. Do objeto da justiça como eqüidade os consórcios públicos

A teoria de justiça como eqüidade visa ao estabelecimento de uma justiça social, tendo por objeto primário "a estrutura básica da sociedade, ou mais exatamente, a maneira pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social" [34]. Esta idéia também encontra similitude no estudo dos consórcios públicos. Poder-se-ia afirmar que há dois pontos de convergência que merecem abordagem nesse aspecto: o primeiro diz com a própria finalidade do consórcio público (justiça externa) e o segundo, com a relação entabulada pelos entes federativos na execução da gestão associada de serviços públicos (justiça interna).

Quanto à própria finalidade do consórcio, que busca o estabelecimento da justiça social, portanto externa ao instituto consorcial, é importante frisar que ela somente será obtida, se a gestão associada de serviços públicos ofertada às populações dos entes federativos envolvidos corresponder efetivamente à legítima expectativa daquelas comunidades.

Nesse tocante, entra em cena a questão de avaliação da justiça da política pública implementada pelo consorciamento, que poderia ser realizada a partir de critérios disponíveis em nossa ordem jurídica como, por exemplo, os princípios da proporcionalidade, eficiência e isonomia, como referido anteriormente. Vale lembrar que o tão-só fato de existir uma política pública não significa que ela seja eticamente aceitável ou, em outras palavras, que ela seja justa. As ações governamentais levadas a cabo com fins meramente eleitoreiros, exemplificativamente, parecem constituir alvos prioritários do controle ético que se propõe neste trabalho. Será que tais ações se sustentariam depois de sofrerem criterioso exame ético pelos órgãos de controle postos à disposição da sociedade pelo nosso ordenamento jurídico?

Sem dúvida, a necessidade de observância do componente ético por ocasião da implementação da gestão associada de serviços públicos é um assunto que deverá receber a devida atenção dos entes consorciados sob pena de cometimento de injustiça e/ou de ineficácia – e conseqüente inutilidade – do consórcio público constituído. Assim, pode-se afirmar que um consórcio público somente cumprirá seu papel de implementador de justiça social, quando suas ações contemplarem serviços públicos justos, segundo a ótica da eqüidade defendida por Rawls, proporcionando aos seus usuários, em especial os de menor poder aquisitivo, efetivas condições de acesso a serviços que ostentem padrões de qualidade mínimos, comparáveis aos serviços prestados pela iniciativa privada. Aliás, esta avaliação qualitativa dos serviços prestados pelo consórcio público também parece ser fundamental, na medida em que a equivalência material de qualidade entre os serviços públicos e privados é garantia de implementação da justiça social no caso concreto.

No dizente ao segundo aspecto, que trata das relações interna corporis do consórcio, importa destacar que parece surgir com suficiente clareza o fato de que a justiça no âmbito das relações dos entes integrantes do consórcio público – por esta razão denominada de interna no presente ensaio – somente será alcançada, se forem adequadamente atendidos os pressupostos teóricos, propostos por John Rawls, de sociedade, da posição original e do véu da ignorância. Sem eles, pensa-se ser inviável a obtenção de êxito nas relações entabuladas entre os consorciados, vez que o ambiente estará suscetível à prática de toda sorte de ações eticamente reprováveis, instauradoras de injustiças entre os entes consorciados. Ademais, se a relação contratual estabelecida entre os entes consorciados é injusta, parece natural concluir que as atividades do dito consórcio, de alguma forma, tenderão a refletir estas injustiças no seio das comunidades por ele atendidas. Por conseguinte, quer-se colocar que o cometimento de injustiças internas ao consórcio tem o gravame de ensejar o aparecimento de injustiças externas à gestão associada de serviços públicos, consubstanciando prejuízos de toda sorte aos seus usuários.

Sobre o autor
Cleber Demetrio Oliveira da Silva

Sócio da Cleber Demetrio Advogados Associados, da RZO Consultoria e Diretor Executivo do Instituto de Desenvolvimento Regional Integrado Consorciado (IDRICON21), Especialista em Direito Empresarial pela PUCRS, Especialista em Gestão de Operações Societárias e Planejamento Tributário pelo INEJE, Mestre em Direito do Estado pela PUCRS, Professor de Ciência Política no curso de graduação da Faculdade de Direito IDC, de Direito Administrativo em curso de pós-graduação do IDC e Professor de Direito Administrativo e Direito Tributário em cursos de pós-graduação do UNIRITTER da rede Laureate International Universities.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Cleber Demetrio Oliveira. A simetria conceitual existente entre a teoria de justiça de John Rawls e os consórcios públicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 816, 27 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7344. Acesso em: 25 nov. 2024.

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