3. PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM (OU NON BIS IN IDEM)
Os princípios jurídicos buscam ressaltar valores, a fim de orientar e limitar interpretações e aplicação de regras jurídicas. Ensina o professor Renato Marcão (2016) que, ainda que se desconheça uma regra específica, conhecendo os princípios aplicáveis, torna-se possível imaginar a solução justa para o caso.
Dentre os diversos princípios do Direito Processual Penal, encontra-se o princípio ne bis in idem ou non bis in idem, que se traduz do latim como “não duas vezes pela mesma coisa. No sentido de que ninguém pode responder sobre o mesmo fato já julgado, ou ser duplamente punido pelo mesmo delito, ou seja, nenhuma ação penal pode ser instituída duas vezes para a mesma causa de ação.
Tal princípio pode apresentar três significados: 1º) Processual: proibição de se processar a mesma pessoa duas vezes pelo mesmo crime; 2º) Material: é vedado que alguém seja condenado pela segunda vez em razão do mesmo delito; 3º) Execucional: ninguém pode ser executado duas vezes por condenações sobre o mesmo fato (SANCHES, 2015).
A Constituição Brasileira não prevê de forma expressa esse princípio, sua previsão está no Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional:
Art. 20. Ne bis in idem. 1.Salvo disposição em contrário do presente Estatuto, nenhuma pessoa poderá ser julgada pelo Tribunal por atos constitutivos de crimes pelos quais este já a tenha condenado ou absolvido.
2. Nenhuma pessoa poderá ser julgada por outro tribunal por um crime mencionado no artigo 5°, relativamente ao qual já tenha sido condenada ou absolvida pelo Tribunal.
Embora não esteja previsto na Constituição Federal, o princípio em comento tem apoio nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da legalidade. A finalidade da proibição ao bis in idem é vedar que processos sejam reiterados pelo mesmo fato, ou seja, ninguém pode ser inquirido penalmente mais de uma vez pelo mesmo delito.
Renato Marcão ensina sobre esse tema:
Se o acusado for condenado, não tem sentido imaginar que possa responder novamente pelo mesmo delito, inclusive em razão de se verificar o fenômeno da coisa julgada material. (MARCÃO, 2016, p. 82).
Se porventura surgirem novas provas que incriminem o réu já absolvido, não poderá ser instaurado novo processo. Contudo, se surgirem provas novas, a condenação poderá ser rediscutida em forma de ação revisional, manuseada pro reo, vedada a revisão pro societate.
Além disso, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica – adotada pelo Brasil, prevê em seu artigo 8º, 4, que “o acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos”.
Como a maioria dos princípios de direito penal, o princípio em estudo não é considerado absoluto, uma vez que o Estatuto de Roma, em seu artigo 20, 3, traz exceção à regra. Nos casos de crimes de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, o Tribunal poderá julgar uma pessoa que já tenha sido julgada em outro tribunal, desde que este: a) Tenha tido por objetivo subtrair o acusado à sua responsabilidade criminal por crimes da competência do Tribunal; b) Não tenha sido conduzido de forma independente ou imparcial, em conformidade com as garantias de um processo equitativo reconhecidas pelo direito internacional, ou tenha sido conduzido de uma maneira que, no caso concreto, se revele incompatível com a intenção de submeter a pessoa à ação da justiça.
4. REINCIDÊNCIA VERSUS PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM
Alguns doutrinadores entendem que a aplicação da reincidência como agravante de pena ao sentenciado seria uma forma de puni-lo duas vezes pelo mesmo fato, caracterizando uma violação ao princípio ne bis in idem. Portanto, para essa parte da doutrina, a reincidência não deveria ser considerada para agravar pena como agravante na dosimetria da pena.
Assim entende Zaffaroni (2011, p. 266) conforme citado por Rogério Greco (2016, p. 693):
Desde a penalização liberal do século XIX se observou que a agravação de pena por um delito anterior é uma nova pena pelo mesmo delito, que viola a proibição da dupla punição. [...] Quando se invoca a reincidência para impor uma pena superior ao mínimo, o plus punitivo superior ao mínimo não tem nada a ver com o segundo delito, mas senão que é uma pena pelo primeiro. (GRECO, 2016, p. 693).
Para Paulo de Souza Queiroz (2000, p. 29, apud GRECO, 2016, p. 693), “o instituto da reincidência viola o princípio do non bis in idem, vedado pelos princípios da proporcionalidade e da estrita legalidade, dizendo que o legislador, não raro, vulnera, claramente, o mandamento da proporcionalidade. Exemplo disso é a adoção do instituto da reincidência (CP, arts. 61, I, e 63), uma vez que, ao se punir mais gravemente um crime, tornando-se por fundamento um delito precedente, está-se, em verdade, valorando e punindo, uma segunda vez, a infração anteriormente praticada (em relação à qual já foi o agente condenado e punido)”.
Paulo Queiroz também relata que:
A reincidência, ao implicar bis in idem, é inconstitucional, por violação aos princípios da legalidade e proporcionalidade, ao menos enquanto circunstância judicial de agravamento da pena. Além disso, nem sempre o réu reincidente é mais perigoso que o primário, como se presume. Assim, o autor de estupros seguidos, embora primário, certamente é bem mais ameaçador do que o condenado reincidente por pequenos furtos ou lesões corporais leves, por exemplo. Enfim, a reincidência não é garantia da maior perigosidade do infrator, a justificar, também por isso, a sua abolição pura e simples".(QUEIROZ, 2000, p. 81, apud CUNHA, 2015, p. 416).
Segundo Rogério Sanches (2015, p. 416) “a jurisprudência não tem acatado este entendimento, sob o fundamento de que o princípio da individualização da pena (art. 5°, XLVI , CF/88) demanda maior censura na aplicação da sanção daquele que reitera na prática delitiva. O STJ tem sido firme ao declarar que a conduta do reincidente merece maior reprovabilidade, tendo em vista a sua contumácia em violar a lei penal. Portanto, não há que se falar em duplo apenamento pelo mesmo fato, nem violação do princípio do ne bis in idem. No STF, o Plenário, ao julgar o Recurso Extraordinário 453.000, considerou constitucional o instituto de reincidência, afastando a ocorrência de bis in idem”.
A partir do RE 453.000, julgado pelo STF, foram negados alguns Habeas Corpus que tratavam da matéria, dentre eles:
1. Habeas corpus. Roubo. Condenação. 2. Pedido de afastamento da reincidência, ao argumento de inconstitucionalidade. Bis in idem. 3. Reconhecida a constitucionalidade da reincidência como agravante da pena (RE 453.000/RS). 4. O aumento pela reincidência está de acordo com o princípio da individualização da pena. Maior reprovabilidade ao agente que reitera na prática delitiva. 5. Ordem denegada.
(STF - HC: 93815 RS, Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 04/04/2013, Tribunal Pleno, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-083 DIVULG 03-05-2013 PUBLIC 06-05-2013).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de não ter sua previsão na Constituição Federal de 1988, o princípio ne bis in idem possui total apoio no princípio constitucional da legalidade, bem como no princípio da dignidade da pessoa humana. Diante disso, pode-se considerar que tal princípio decorre, então, dos princípios gerais expostos nos textos fundamentais.
Do estudo do presente trabalho pode-se perceber que há quem alegue que a agravação da pena a partir da reincidência criminal trata-se de uma reprovação mais severa em relação ao segundo delito cometido. Para tais, a motivação na reincidência ofende o princípio ne bis in idem, tanto na sua vedação de se punir a mesma pessoa pelo mesmo crime, como também, na sua vedação de imputar ao autor do delito consequências posteriores.
Já aqueles que defendem o instituto da reincidência, no entanto, observam que a maior severidade na aplicação da sanção ao reincidente não se justifica na circunstância de ter o sujeito cometido crime pretérito, mas sim, ao fato de ter sido condenado por um delito, cumprido a pena imposta, e ainda assim voltar a cometer novo fato delituoso. Tal situação põe em evidência o maior grau de culpabilidade da conduta futura, em razão do desprezo dispendido por quem, embora tenha sofrido uma pena anterior, novamente recai no delito.
Como se pode perceber nas palavras do advogado criminalista, Celso Delmanto (2010, p. 295):
(...) O fato do reincidente ser punido mais gravemente do que o primário é, a nosso ver, justificável, não havendo violação à Constituição da República e à garantia do ne bis in idem, isto é, de que ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo fato.” (DELMANTO, 2010, p. 295).
Nos Tribunais Superiores prevalece esta última ideia, inclusive, assunto do Informativo nº 700 do Supremo Tribunal Federal, o qual ilustra um julgado que a Corte Suprema reconhece a constitucionalidade do instituto da reincidência (art. 61, I, CP), justificando-o como forma de efetivar o princípio constitucional da individualização da pena (art. 5º, XLVI, CF) ao passo que possibilita a punição mais severa ao réu reincidente se comparado com o réu primário. Em observância, também, ao princípio constitucional da igualdade (art. 5º, caput, CF), no sentido de que os iguais devem ser tratados de modo igual e os desiguais, de modo desigual, na medida de suas desigualdades.
Pode-se concluir que a agravação da pena, com observação ao instituto da reincidência, nenhuma violação provoca ao princípio ne bis in idem, até mesmo porque, o próprio Direito Penal possui criteriosa ponderação na sua aplicação.
Nesse sentido, inclusive, existe Súmula do Superior Tribunal de Justiça, a saber:
STJ Súmula nº 241 - 23/08/2000 - DJ 15.09.2000
Reincidência - Circunstância Agravante - Circunstância Judicial: A reincidência penal não pode ser considerada como circunstância agravante e, simultaneamente, como circunstância judicial.
Uma vez que a agravação da pena para o reincidente justifica-se devido a este possuir maior culpabilidade, influenciada na punição que lhe foi feita anteriormente, ainda assim, apesar do regime que lhe foi imposto no cumprir da pena, não foi suficiente para regenerá-lo. Ou seja, não se pune o delinquente reincidente de novo pelo mesmo delito, já sentenciado anteriormente; mas sim, pune-se de forma mais severa devido ao delito novamente praticado, pela maldade na intenção do criminoso, revestido de maior gravidade no seu elemento moral.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CAPEZ, Fernando; PRADO, Stela .CódigoPenal Comentado – Parte Geral. – 5ª edição – Saraiva 2014.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal – Parte Geral. – 3ª edição – JusPodivm2015.
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GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. – 18ª edição – Impetus 2016.
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NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. – 17ª edição – Editora Forense 2017.