4. Área de Livre Comércio das Américas: desenvolvimento econômico ou a "bananização" definitiva da América Latina?
A retomada do tema da integração regional na América Latina se dá em um momento de revisão do papel e da direção do Estado em relação ao mercado doméstico e internacional. A primeira onda regionalista da década de sessenta esteve marcada pela orientação cepalina de desenvolvimento através da industrialização pela substituição de importações. Tal feito seria complementado à medida que os mercados dos países vizinhos fornecessem mercadorias em substituição a terceiros países, formando, assim, uma rede de desenvolvimento regional. Por motivos que não cabem aqui serem explanados, as medidas então propostas pela CEPAL não surtiram os efeitos almejados, tendo a própria comissão modificado nos anos oitenta sua tradicional orientação desenvolvimentista pelo chamado regionalismo aberto, arraigado numa política de integração voltada para a abertura comercial.
Esta nova orientação guarda consonância com o ambiente de emergência de uma nova agenda econômica e política e significou uma extensão das propostas que vinham sendo implementadas no plano interno dos países latino-americanos para o âmbito internacional, especificamente para o processo de integração. Nesta grandeza, os setores vulneráveis da sociedade civil seriam vítimas do desdém de seus governos não só nas políticas públicas domésticas, mas, outrossim, nos projetos de integração tal qual vinham sendo negociados. Enfatizamos neste ponto a necessidade de uma visão crítica e, antes de tudo, instrumental da integração econômica, para nós entendida menos como um fim em si mesma e mais como um meio para se atingir objetivos outros como a promoção do desenvolvimento econômico e, principalmente, o controle sobre a natureza e extensão deste desenvolvimento, pois na direção de Salvador Arriola, "sem dúvida, o eterno desafio da cooperação internacional para o desenvolvimento é o de resolver o problema das assimetrias entre os países que apresentam diferentes níveis de desenvolvimento, seja por meio de negociações unilaterais ou multilaterais." [22]
É sugestivo, dentro deste raciocínio, verificarmos a omissão do tratado da Área de Livre Comércio das Américas em relação à temática do desenvolvimento e redução de assimetrias regionais. Capítulos inteiros da Terceira Minuta são dedicados a questões decerto importantes como serviços, propriedade intelectual, compras governamentais, entre outros. Não obstante, inexiste um capítulo específico ou mesmo um conjunto de artigos que tratem a fundo a questão do desenvolvimento. Em um continente marcado pela gigantesca assimetria econômica não só entre os países como intrapaíses, tal omissão é, ab initio, excludente dos benefícios da ampliação do livre comércio a uma série de Estados economicamente fracos e, ademais, aos atores sociais com menor poder de barganha dentro de cada Estado.O próprio acesso às negociações da ALCA é excludente, no sentido de que o lobby de setores produtivos no processo de negociação não encontra contrapartida em pequenas e médias empresas, as quais são, potencialmente, as que mais sofreriam com a formação de um livre mercado.
Para os Estados Unidos, o aumento considerável do comércio exterior mexicano e o acúmulo de sucessivos crescimentos do Produto Interno Bruto do vizinho do sul são aclamados como mostra dos benefícios de uma área de livre comércio nos moldes do NAFTA. Preferimos um argumento menos diplomático e mais realista:
"No sistema formado pelo NAFTA, um país é competitivo na direta dimensão de sua miséria. No México de hoje, 80% da população vive abaixo do nível da pobreza. Os salários industriais caíram de US$ 127 em 1982 para US$ 74 em 1999. O país virou um exportador de miséria, de vez que os elementos mais ativos da economia são as remessas dos imigrantes, de cerca de US$ 6,3 bilhões em 1999, e as maquiladoras. A emigração do México para os EUA aumentou de 278.229 entre 1991 e 1997, para 366.000 entre 1998 e 1999, resultado do modelo econômico perverso que gera um déficit anual de 500 mil empregos." [23]
A abertura do mercado e as diversas reformas econômicas de cunho liberal postas em prática na maior parte dos países latino-americanos nos anos noventa, salvo raras exceções como Chile e República Dominicana, não surtiram os efeitos desejados, tendo os fluxos de investimentos crescido em países que trilharam caminhos distintos. A comparação com os países do leste asiático é um exemplo concreto de que a estabilidade de preços, a desregulamentação econômica, a abertura comercial e a rígida responsabilidade fiscal não garantem, por si só, o ingresso de investimentos estrangeiros e o crescimento econômico. [24]
Gráfico nº 1. Participação no comércio internacional: comparação entre América Latina e Ásia, 1980-2003 (%)
Fonte: UNCTAD 2004
* Não inclui o Oriente Médio e o Japão
Gráfico nº 2. Participação em estoques mundiais de investimento estrangeiro direto: comparação entre América Latina e Ásia, 1980-2003 (%)
Fonte: UNCTAD 2004
* Não inclui o Oriente Médio, o Japão e Hong Kong
Os dois gráficos são auto-explicativos quanto aos efeitos das políticas econômicas adotadas ao longo dos últimos vinte anos na América Latina. Os países asiáticos apresentam hoje um invejável ritmo de crescimento porque, além de não terem seguido à risca a ortodoxia liberal, souberam aproveitar-se das forças motoras da globalização, penetrando nos mercados mundiais cada vez mais interconectados e atraindo investimentos estrangeiros. Se em relação à participação no comércio internacional é evidente o atraso da América Latina em relação ao leste asiático, no que tange ao estoque de IED a posição das duas regiões é, à primeira vista, equânime, uma vez que ambas as regiões possuem um estoque global similar de acordo com o gráfico nº 2. Entretanto, os efeitos dos investimentos nas duas regiões foram bastante distintos. A correlação entre investimento estrangeiro direto e crescimento da renda per capita foi muito mais fraco na América Latina, em função de fatores como: i) orientação dos investimentos para o mercado (market seeking) ao invés da orientação para a eficiência (asset seeking), a qual possui um maior efeito sobre o crescimento, ii) concentração dos investimentos em indústrias intensivas em capital e tecnologia em que os países possuíam baixa competitividade internacional, iii) efeitos exíguos de spillover dos IED’s entre as empresas locais em virtude da baixa quantidade de tecnologia transferida e iv) redução dos investimentos internos paralelos aos investimentos estrangeiros diretos. [25]
O contraste em relação ao IED e a participação no comércio mundial se verifica também nos índices de crescimentos das duas regiões ao longo das últimas três décadas.
Gráfico nº 3. Taxa de crescimento médio do produto interno bruto: comparação entre América Latina e Ásia, 1970-2003 (%)
Fonte: UNCTAD 2004
* Compreende a variação entre 1990 e 2003
** Não inclui o Oriente Médio e o Japão
Mediante esta análise comparativa, conclui-se que a recessão das décadas de oitenta e noventa, apesar de ter havido como causa fatores de ordem estrutural da economia mundial, foi agravada nos países da América Latina e contornada pelos países do leste asiático em função de distintas estratégias de desenvolvimento adotadas.
O objetivo deste artigo não é estigmatizar a globalização econômica ou o Consenso de Washington pelas duas décadas perdidas na América Latina, mesmo porque os países asiáticos também promoveram reformas que, apesar de que em menor grau e rigidez, foram conducentes com a proposta liberal. O grande problema é que os modelos de desenvolvimento incorporados pelas políticas públicas dos governos latino-americanos não tomaram como partida as vicissitudes regionais. Deve-se perguntar, neste sentido, qual a vantagem de se apostar em um modelo de integração que, em última instância, incorpora os ditames que colaboraram para o aprofundamento da crise econômica e social na América Latina?
A nosso ver, mais importante do que se pensar em um modelo de integração, é necessário pensar o que se pretende com a mesma. De que maneira ela pode contribuir para diminuir a assimetria dentro dos países e entre os países? Deve-se aqui lembrar que o governo norte-americano resiste em dar um tratamento diferenciado e especial aos países de menor desenvolvimento relativo e não apóia a criação de um fundo de convergência regional para atenuar as assimetrias entre os países."Esta posição tem sido mantida no marco das negociações multilaterais da ALCA e também na negociação bilateral dos Tratados de Livre Comércio". [26]
É mister, portanto, reavaliar o projeto de integração que se pretende para as Américas, sobretudo por iniciativa dos países mais vulneráveis (entenda-se, todos, com a exceção dos EUA, o Canadá e talvez o México e o Chile, por já possuírem um maior grau de abertura comercial aos produtos e serviços norte-americanos). Extremamente importante é a inclusão da variável social nas discussões não só no âmbito das negociações da ALCA, como no plano interno dos países por parte da sociedade civil (empresas, universidades, sindicatos e grupos de interesses diversos) e do próprio governo. A nosso ver, tal postura envolveria, necessariamente, um modelo de integração que fosse além da competição mercadológica e do mero ganho de produtividade por parte das firmas dos Estados envolvidos. Um mínimo de interação público/privada é a chave para a promoção de um crescimento econômico aliado ao desenvolvimento econômico. [27] Na mesma direção leciona Stiglitz:
"(...) começa-se a aceitar, contemporaneamente, que o melhor desempenho do aparato produtivo que se esperava lograr a partir do jogo automático dos mercados só se alcançaram em parte e vastos setores da sociedade foram excluídos do mesmo. Começa-se também a escutar, tanto no meio acadêmico, quanto no âmbito político, vozes que reclamam ir além do ‘Consenso de Washington’ e começar a explorar novas idéias de construção de marcos regulatórios, políticas de desenvolvimento produtivo e tecnológico, ações de fomento à economia e assegurar uma maior equidade na distribuição dos benefícios da modernização do aparato produtivo. Em tais direções, serão necessárias novas formas de ‘ingerência institucional’, novos modelos de interação público/privado, etc."(tradução livre) [28]- [29]
A estratégia de muitos países na negociação tem sido conceder naquilo que possuem menor produtividade desde que recebam concessões nos setores em que são mais competitivos. Neste diapasão, a adoção de uma Área de Livre Comércio das Américas em nada alteraria a nova geografia microeconômica da América Latina, mas, certamente, acentuaria a concentração de produção de bens-naturais/commodities ao sul e a migração de maquiladoras para demais países além do México.
A referida estratégia, corolário do dogma do benefício do livre comércio, é, na verdade, reflexo das teorias de comércio internacional, baseadas em situações ideais nem sempre capazes de incorporar variáveis importantes como a influência do poder político e econômico dos Estados para o cumprimento ou descumprimento das regras do jogo. Em uma situação ideal, a concentração produtiva nos setores mais competitivos e nas atividades onde há abundância dos respectivos fatores de produção (para Heckscher e Ohlin, capital e trabalho) dentro de cada Estado traria ganhos relativos a todos os envolvidos. Talvez seja dentro desta mesma lógica que Bahamas e demais países caribenhos se engajam com estoicismo no desenvolvimento de suas economias, exportando bananas e importando bens manufaturados dos Estados Unidos.
A abrupta e descontrolada liberalização comercial em grande parte dos países ao sul dos EUA na década de noventa tem contribuído para a concentração produtiva em commodities e bens primários, concomitantemente ao ingresso cada vez maior de produtos manufaturados importados ou produzidos por firmas estrangeiras estabelecidas nestes países.
Enfim, dependendo do formato do Tratado da Área de Livre Comércio das Américas e da capacidade dos países mais vulneráveis de barganharem condições justas de competitividade tanto de setores voltados para a exportação quanto de setores importantes para a geração de renda e emprego, pode-se estar selando o caminho definitivo em direção à "bananização" generalizada da América Latina.
Considerações Finais
Dentro do enfoque adotado neste artigo, pode-se caracterizar a criação da ALCA como uma estratégia por parte dos EUA para assegurar um maior acesso a um mercado em disputa pelas demais potências econômicas surgidas no pós-Guerra Fria. Tal como se percebe, a formação de uma Área de Livre Comércio das Américas rompe com o histórico de integração regional na América Latina e Caribe em que, desde a década de sessenta, os EUA não manifestaram qualquer interesse. Com providência ensina Clodoaldo Bueno:
"Há cem anos, os norte-americanos inspiraram-se no então relativamente recente e bem sucedido Zollverein alemão para formular, em nome do Pan-Americanismo, a ousada proposta de integração econômica, na qual não faltou, até, a sugestão de moeda comum. A ALCA tem em comum o integracionismo da virada do século XIX para o XX, o ambiente econômico mundial (triunfo das idéias liberais) e a busca do reforço da hegemonia dos EUA sobre o hemisfério. Inspirada, como não poderia deixar de ser, para atender aos interesses norte-americanos, a ALCA deve ser examinada com cautela, como tudo, aliás, que se refere às relações externas do país." [30]
A nosso ver, a despeito de uma visão mais radical no sentido de atribuir à criação da ALCA um reforço da hegemonia dos Estados Unidos sobre o novo continente, trata-se, no mínimo, da retomada mais acentuada de objetivos comerciais sobre o hemisfério diante da concorrência de demais países e blocos regionais. Tal concorrência se dá, por um lado, no interior do continente, através de acordos de livre comércio internos, como os acordos entre Mercosul e Comunidade Andina, sem a participação norte-americana. E, por outro lado, de fora do continente, sendo as negociações do Mercosul com a União Européia representativas do perigo para os EUA em não consolidar uma integração regional de abrangência hemisférica.
A estratégia americana tem sido minar a posição autônoma de blocos sub-regionais como o Mercosul, através de acordos bilaterais. A experiência dos países em desenvolvimento nas negociações multilaterias, a partir da Rodada de Doha, ao constituírem o chamado G-21, pode ser um modelo a ser seguido pelos países em desenvolvimento no processo de negociação da ALCA. Os países que ainda não firmaram tratados bilaterais de livre comércio com os EUA, ao que parece, figuram contrários à manutenção dos temas estabelecidos no início do processo de negociações em toda sua extensão. Na Conferência Ministerial de 2003 uma solução para o impasse seria a adoção de dois níveis compromissos. Um núcleo com um mínimo de compromissos em todas as áreas temáticas e aplicáveis a todos os países (ALCA light) coexistiria com compromissos oriundos de acordos bilaterais ou plurilaterais. Paralelamente, os EUA costuraram acordos de livre comércio com Colômbia, Bolívia, Equador, Peru, Panamá e República Dominicana.
A estratégia dos Estados Unidos parecia ser abranger a maior parte de países americanos de maneira a "driblar" as negociações ministeriais, onde a intransigência de blocos como o MERCOSUL limitavam a imposição de suas posições no âmbito hemisférico diretamente. Tal estratégia, por sua vez, não garante o acesso ao mercado dos países envolvidos da mesma maneira que uma eventual Área de Livre Comércio das Américas, mesmo porque vários são os países que possuem acordos bilaterais ao mesmo tempo com os EUA e com terceiros países ou blocos regionais. [31]
As discussões sobre a liberalização do comércio foram notadamente conduzidas para o plano multilateral, por influência dos EUA, desde a criação do GATT em 1948. Contudo, a desconfiança em relação ao regionalismo foi revisada a partir dos anos noventa. Este fenômeno, em certa medida, pode ser explicado pela redução da capacidade dos Estados Unidos em ditarem as regras do regime multilateral do comércio. A primeira reunião das Américas em 1994 na cidade de Miami é o ponto de partida do projeto norte-americano no pós-Guerra Fria para a América Latina e Caribe. O regionalismo passou a ser uma alternativa aos entraves à liberalização multilateral, a qual tornou-se evidente na Rodada Uruguai:
"É quando os EUA, como alternativa ao multilateralismo, como uma espécie de seguro contra possibilidade do fracasso da Rodada Uruguai, vai começar a negociar o primeiro acordo de livre comércio com o Canadá, Israel e depois o NAFTA, no qual, o Canadá e os EUA negociam com o México. O curioso não é tanto que isso tenha ocorrido nesse momento, mas que tenha se mantido depois do êxito da Rodada Uruguai, porque a Rodada deveria, em princípio, ter desencorajado os esquemas regionais." [32]
Os acordos regionais para os EUA são claramente uma alternativa ou, em certos casos, um complemento às negociações multilaterais no âmbito da OMC. Os países latino-americanos, por sua vez, participam de um jogo de negociações complicado, uma vez que por mais que se tente sopesar o poderio americano através de acordos com outros blocos econômicos, a União Européia, v.g., têm-se mostrado ainda mais intransigentes que os EUA no que tange a temas de como a redução dos subsídios agrícolas, atualmente perfazendo o montante de cem bilhões de dólares anuais (o dobro dos subsídios norte-americanos).
Enfim, a suspensão das negociações da ALCA desde a reunião de Puebla em fevereiro de 2004 e o fracasso na implementação da sua terceira minuta em janeiro de 2005 parecem ter sido demonstrações suficientes de que os impasses experimentados pelos EUA nas negociações nas Rodada de Doha do GATT/OMC repetiram-se e repetir-se-ão nas negociações hemisféricas. Resta saber até que ponto a estratégia de difusão dos acordos bilaterais com países americanos serão eficientes para limitar a resistência de determinados países e blocos regionais como o MERCOSUL, sem que isso implique a adoção de uma ALCA incompleta, na qual figurem ausentes mercados almejados pelas empresas norte-americanas como o brasileiro e o argentino.