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A federalização dos crimes contra os direitos humanos à luz dos princípios federativo e do juízo natural

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Agenda 04/10/2005 às 00:00

4. A federalização dos crimes contra os direitos humanos — análise do dispositivo constitucional

            Conforme já dito alhures, a Emenda Constitucional n° 45, de 08 de dezembro de 2004, ampliou a competência da Justiça Federal, que passou a abranger as causas em que haja grave violação dos direitos humanos. Conquanto já se tenha transcrito o dispositivo, de bom tom a sua repetição, in verbis:

            "Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

            (...)

            V-A as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo;

            (...)

            § 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal".

            Trata-se, também como já abordado, de incidente de deslocamento de competência, suscitado pelo Procurador-Geral da República e julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, apto a transferir a competência para julgamento de determinada causa da Justiça Estadual para a Justiça Federal.

            Seus requisitos são vários. De início, a violação dos direitos humanos há de ser grave. O juízo primeiro de tal gravidade é feito pelo Procurador-Geral da República, que decide, a seu alvedrio, acerca da deflagração ou não do incidente. Posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça profere outro juízo de valor, este definitivo, sobre a dita violação grave ensejadora da modificação de competência.

            Neste ponto reside a primeira — e gravíssima — inconstitucionalidade do dispositivo. Com efeito, ao introduzir um instrumento capaz de modificar a competência para o julgamento de determinada causa e, portanto, de subtrair a competência do órgão jurisdicional originariamente competente com base em juízos subjetivos acerca da gravidade de um crime, a aludida regra constitucional vilipendia a garantia do juízo natural, porquanto lhe retire a objetividade e a determinabilidade que lhe são peculiares.

            Em outras palavras, a sociedade e o acusado, já conhecedores do juízo natural, este definido por regras objetivas prévias ao fato, quedar-se-ão submetidos à discricionariedade dos órgãos estatais persecutórios, o que evidentemente não se admite em um Estado Democrático de Direito.

            Nem se diga que a decisão judicial, na espécie proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, seria capaz de purgar a inconstitucionalidade. A referida Corte não teria dados objetivos para bem fundamentar a sua decisão, tendo em vista a inexistência de critérios minimamente objetivos autorizadores da modificação.

            Afinal, o que qualificaria determinada conduta como gravemente atentatória aos direitos humanos?

            A matéria não é de simples deslinde. Primeiro, pelo fato de que a própria concepção de direitos humanos é fluida, não chegando os autores especializados a um consenso mínimo acerca de qual seria o parâmetro para estremar quais os bens jurídicos que lhes seriam ou não representativos.

            Segundo, a valoração sobre a gravidade do crime, à míngua de critérios objetivos, só poderá ser feita com a análise dos elementos que circundam o crime, importando, nessa medida, em inadmissível antecipação do mérito da ação penal. Em síntese, o Superior Tribunal de Justiça, ao decidir o incidente, terá de avaliar as circunstâncias da prática delituosa, tais como: modo de execução, repercussão social, grau de reprovação, suas conseqüências, etc., atividade que, de regra, o órgão jurisdicional só faz quando da prolação da sentença. Haveria, como se vê, malferimento de um dos pilares do princípio do juiz natural, a imparcialidade.

            Outro aspecto crucial a tal respeito é a possibilidade de o mesmo Superior Tribunal de Justiça ser provocado, no curso do processo, a resolver questão relativa ao desrespeito das leis federais ou mesmo de violação à liberdade de locomoção. Em que posição ficaria o órgão jurisdicional que já afirmou a gravidade do delito ao julgar, v.g., um habeas corpus em que se pedisse o trancamento da ação penal por vício de incompetência absoluta da Justiça Federal? A situação seria, no mínimo, incômoda.

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            Outra característica tradutora da incerteza é a possibilidade de a competência ser modificada em qualquer fase do inquérito ou processo, o que além de flagrantemente incompatível com a certeza e objetividade peculiares ao postulado do juiz natural, coloca uma espada de Dâmocles sobre o acusado.

            Apenas para ilustrar o absurdo que o dispositivo pode causar, imagine-se a seguinte situação: o Ministério Público Estadual, após a instrução processual, verifica a inexistência de elementos probatórios sólidos para afirmar a culpabilidade de denunciados pela suposta prática de latrocínio e requer, em sede de alegações finais, a absolvição com fundamento no artigo 386, inciso VI, do Código de Processo Penal. O Procurador Geral da República ajuíza imediatamente o incidente de deslocamento de competência perante o Superior Tribunal de Justiça, que, por sua vez, reconhece a gravidade do delito e transfere a competência para julgamento à Justiça Federal. O Ministério Público Federal, não tendo participado do contraditório, é chamado a se manifestar, ocasião em que requer a condenação dos inculpados. O Juiz Federal, por seu turno, profere sentença condenatória.

            A hipótese, embora pareça de difícil configuração, traz em seu bojo máculas à certeza do direito e à segurança jurídica, na medida em que impõe ao acusado duas respostas estatais diametralmente opostas, o que é impensável em qualquer sistema penal moderno.

            Poder-se-ia argumentar que eventual lei especificadora de quais delitos seriam considerados como gravemente atentatórios aos direitos humanos acabaria com a inconstitucionalidade ora aventada. A idéia, conquanto sedutora, não se sustenta, máxime diante do fato de que chamada "federalização" dos crimes contra os direitos humanos constitui um dos mais graves ataques ao pacto federativo brasileiro, conforme se verá adiante.

            Como já se disse, a Constituição Federal estabelece um minudente sistema de distribuição de competência, fixando as atribuições de cada pessoa política. Dentro desse campo de atuação, o ente político age com autonomia em relação aos demais integrantes da Federação.

            Nessa senda, o Texto Maior, ao delimitar taxativamente a competência da Justiça Federal e definir a competência dos órgãos do Poder Judiciário estadual como residual, aponta para a excepcionalidade das causas que devem ser julgadas pelo Poder Judiciário da União. Em outros termos, afora os casos em que a Constituição especifica, cabe aos órgãos judiciários estaduais a atuação com independência e autonomia.

            O novel dispositivo constitucional ora debatido, ao introduzir no âmbito da competência da Justiça Federal um amplo rol de crimes, os causadores de grave lesão aos direitos humanos, vai de encontro à cláusula constitucional que informa a distribuição de competências entre os órgãos do Poder Judiciário dos Estados e o da União, tornando ampliando demasiadamente o que deve ser exceção.

            Estariam, em tese, submetidos à competência da Justiça Federal todos os latrocínios, crimes de tortura e outros delitos deste jaez. Haveria, destarte, uma subtração enorme da competência do Poder Judiciário estadual a infirmar a relevância do pacto federativo.

            Em verdade, o dispositivo estabelece uma cláusula geral de desconfiança acerca da competência (em sentido literal) dos Estados-membros em apurar e punir as condutas atentatórias aos direitos humanos e, dessa forma, garantir a observância dos tratados internacionais de que o Brasil faça parte. Há, em outras palavras, a presunção de que os órgãos persecutórios e o Poder Judiciário federais melhor tratariam da matéria, o que é imponderável em uma república dita federativa. Afinal, se as pessoas políticas são juridicamente iguais, inadmissível que a lei atribua aos órgãos da União preeminência em relação aos dos Estados-membros.

            É de se registrar que abalizados setores doutrinários defendem que a modificação da competência seria admissível, porquanto deva haver coincidência entre a pessoa política responsável pela tutela dos direitos humanos no plano internacional e no plano interno. Nesse sentido manifesta-se PIOVESAN, in verbis:

            "A justificativa é simples: considerando que estas hipóteses estão tuteladas em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, é a União que tem a responsabilidade internacional em caso de sua violação. Vale dizer, é sob a pessoa da União que recairá a responsabilidade internacional decorrente da violação de dispositivos internacionais que se comprometeu juridicamente a cumprir. Todavia, paradoxalmente, em face da sistemática vigente, a União, ao mesmo tempo em que detém a responsabilidade internacional, não detém a responsabilidade nacional, já que não dispõe da competência de investigar, processar e punir a violação, pela qual internacionalmente estará convocada a responder" [08].

            Com a devida vênia, o entendimento não se conforma com o princípio federativo. Se é verdade que à União cabe a representação internacional da República, também é igualmente verdadeiro que não há distinção entre esta e os demais entes políticos no plano interno. Os Estados-membros, por integrarem a Federação, são tão responsáveis pela violação dos direitos humanos quanto a União e, portanto, não podem ser alijados do mister de apurar, processar e julgar crimes insertos no bojo de sua competência, por mais graves que estes sejam.

            Não se trata, ao demonstrar a inconstitucionalidade do incidente de modificação de competência, de constituir estorvo à apuração dos crimes ou de incentivar a impunidade, pois que há uma gama de outros instrumentos capazes de garantir a tutela dos direitos humanos e conformes com o pacto federativo. Fala-se, por exemplo, da colaboração nas investigações, depurada pela Lei n° 10.446, de 8 de maio de 2002, e do tão conhecido instituto do desaforamento no Tribunal do Júri.

            Não se pode olvidar, outrossim, que eventual vício no julgamento por parte da Justiça estadual poderá ser discutido em instâncias superiores, inclusive no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal, o que dificulta sobremaneira o erro judiciário e a promoção da impunidade.

            De toda sorte, acaso o contexto estadual seja grave a ponto de indicar a falência total ou o mal-funcionamento crônico das instituições locais e, por conseguinte, a apuração deficitária das condutas que violem gravemente os direitos humanos, pode a União intervir no respectivo Estado-membro, retirando-lhe temporariamente a autonomia. A intervenção federal, na espécie, poderia ter arrimo em muitos dos fundamentos arrolados no artigo 36 da Lex Legum, a saber: pôr termo a grave comprometimento da ordem pública (inciso III), garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da federação (inciso IV), prover a execução de lei federal (inciso VI) e, especialmente, garantir a observância dos direitos da pessoa (inciso VII, alínea "b").

            A intervenção federal é sempre ultima ratio, mas é o único meio constitucional para o afastamento da autonomia de um Estado-membro, sendo que outros expedientes com o mesmo desiderato, ainda que introduzidos por Emenda Constitucional, não se conformam com o pacto federativo e, por tal motivo, devem ser expurgados do mundo jurídico. O incidente de deslocamento de competência, na medida em que subtrai a competência do Poder Judiciário dos Estados-membros, afigura-se inconstitucional, por instituir uma intervenção federal subliminar ou de "forma branca".

            No único caso até agora julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, o Incidente de Deslocamento de Competência n° 01/PA, entendeu-se pela improcedência do pedido, consoante a ementa aposta no voto do Ministro-Relator, que ora se transcreve:

            "CONSTITUCIONAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO DOLOSO QUALIFICADO. (VÍTIMA IRMÃ DOROTHY STANG). CRIME PRATICADO COM GRAVE VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS. INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA – IDC. INÉPCIA DA PEÇA INAUGURAL. NORMA CONSTITUCIONAL DE EFICÁCIA CONTIDA. PRELIMINARES REJEITADAS. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL E À AUTONOMIA DA UNIDADE DA FEDERAÇÃO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. RISCO DE DESCUMPRIMENTO DE TRATADO INTERNACIONAL FIRMADO PELO BRASIL SOBRE A MATÉRIA NÃO CONFIGURADO NA HIPÓTESE. INDEFERIMENTO DO PEDIDO.

            1. Todo homicídio doloso, independentemente da condição pessoal da vítima e/ou da repercussão do fato no cenário nacional ou internacional, representa grave violação ao maior e mais importante de todos os direitos do ser humano, que é o direito à vida, previsto no art. 4º, nº 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário por força do Decreto nº 678, de 6/11/1992, razão por que não há falar em inépcia da peça inaugural.

            2. Dada a amplitude e a magnitude da expressão "direitos humanos", é verossímil que o constituinte derivado tenha optado por não definir o rol dos crimes que passariam para a competência da Justiça Federal, sob pena de restringir os casos de incidência do dispositivo (CF, art. 109, § 5º), afastando-o de sua finalidade precípua, que é assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil sobre a matéria, examinando-se cada situação de fato, suas circunstâncias e peculiaridades detidamente, motivo pelo qual não há falar em norma de eficácia limitada. Ademais, não é próprio de texto constitucional tais definições.

            3. Aparente incompatibilidade do IDC, criado pela Emenda Constitucional nº 45/2004, com qualquer outro princípio constitucional ou com a sistemática processual em vigor deve ser resolvida aplicando-se os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

            4. Na espécie, as autoridades estaduais encontram-se empenhadas na apuração dos fatos que resultaram na morte da missionária norte-americana Dorothy Stang, com o objetivo de punir os responsáveis, refletindo a intenção de o Estado do Pará dar resposta eficiente à violação do maior e mais importante dos direitos humanos, o que afasta a necessidade de deslocamento da competência originária para a Justiça Federal, de forma subsidiária, sob pena, inclusive, de dificultar o andamento do processo criminal e atrasar o seu desfecho, utilizando-se o instrumento criado pela aludida norma em desfavor de seu fim, que é combater a impunidade dos crimes praticados com grave violação de

            direitos humanos.

            5. O deslocamento de competência – em que a existência de crime praticado com grave violação aos direitos humanos é pressuposto de admissibilidade do pedido – deve atender ao princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), compreendido na demonstração concreta de risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil, resultante da inércia, negligência, falta de vontade política ou de condições reais do Estado-membro, por suas instituições, em proceder à devida persecução penal. No caso, não há a cumulatividade de tais requisitos, a justificar que se acolha o incidente.

            6. Pedido indeferido, sem prejuízo do disposto no art. 1º, inc. III, da Lei nº 10.446, de 8/5/2002" [09].

            O acórdão, embora preservando a competência da Justiça Estadual, revela um traço muito forte do incidente comentado, o de funcionar como um sucedâneo da intervenção federal dentro do processo, a ser adotado quando houver inépcia dos órgãos locais. Isto é, a desídia ou incompetência do Estado-membro, que deveria autorizar a decretação de intervenção federal, acaba legitimando a adoção de expediente que agride o pacto federativo e menoscaba o Poder Judiciário e os órgãos persecutórios estaduais, sendo, por tal motivo, inconstitucional.

            Por fim, é de se dizer que, como já ocorreu no caso supracitado, o Poder Judiciário ficará sob forte pressão das forças sociais, notadamente da imprensa, a fim de que desloque a competência para a Justiça Federal, sendo que eventual julgamento improcedente por parte do Superior Tribunal de Justiça pode ser alardeado como incentivo à impunidade. Enfim, corre-se o risco de o princípio do juiz natural e o pacto federativo ficarem ao sabor de fatores e interesses extra-jurídicos, sem as necessárias objetividade e certeza.

Sobre o autor
Edmilson Rufino de Lima Junior's

bacharelando em Direito pela Universidade Federal do Acre, técnico judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região, em Rio Branco (AC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA JUNIOR'S, Edmilson Rufino. A federalização dos crimes contra os direitos humanos à luz dos princípios federativo e do juízo natural. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 823, 4 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7383. Acesso em: 22 dez. 2024.

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