5. Conclusões
A Emenda Constitucional n° 45/2004 realizou reforma considerável na estrutura do Poder Judiciário, dispondo sobre diversas alterações de competência, dentre as quais avulta a ampliação dos casos submetidos a processo e julgamento pela Justiça Federal, a abranger atualmente as causas que versem sobre violação grave dos direitos humanos que tenham sido deslocadas da Justiça Estadual.
Como sói acontecer, às alterações constitucionais seguem-se inúmeros debates sobre a conformação dos novos dispositivos com a vontade imutável do Poder Constituinte, especialmente no que tange ao respeito aos princípios fundamentais e dos direitos e garantias individuais.
Na espécie, o incidente de deslocamento de competência, capaz de "federalizar" um crime, ou melhor, transferir a competência de processo e julgamento de determinado delito da Justiça Estadual para a Justiça Federal, tem a sua constitucionalidade contestada em face do postulado do juízo natural e do princípio federativo.
O princípio do juiz natural, originariamente previsto na Inglaterra como a vedação aos chamados tribunais de exceção ou ex post facto, teve seu conteúdo aprimorado por obra do federalismo norte-americano e atualmente apóia-se sobre três principais pilares: a previsão legal, pretérita à ocorrência do fato, do órgão jurisdicional competente para o processo e julgamento de determinada causa; a existência de poderes e garantias, atribuídos ao Juízo, capazes de preservar-lhe a independência e a imparcialidade, visando à promoção da justiça material e à correta aplicação do direito; e a definição da competência por meio de lei, observando critérios objetivos. O Juízo que não preencher tais requisitos será de exceção e, portanto, inidôneo para o julgamento do que quer que seja.
O princípio federativo, por seu turno, tem a mais expressiva manifestação na federação formada pelos Estados Unidos da América, cujo traço maior é a existência de uma ordem central, representativa dos interesses dos Estados-membros, que não retira a autonomia destes para cuidar dos próprios interesses.
A república brasileira, seguindo o modelo de estado norte-americano, constitui-se em Estado Federal formado pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, entes cujas prerrogativas e atribuições estão rigidamente fixadas no seio da Constituição Federal, sendo-lhes vedada, de regra, a intervenção recíproca.
A chamada federalização dos crimes contra os direitos humanos, consistente em um incidente de deslocamento da competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal que pode ser suscitado a qualquer momento pelo Procurador Geral da República, que juntamente com o Superior Tribunal de Justiça, realiza juízo subjetivo acerca da gravidade do crime, introduz a incerteza, o suspense, no processo penal e, dessarte, conspurca o conteúdo do princípio do juiz natural, motivo bastante para a afirmação de sua inconstitucionalidade, ante o teor do artigo 60, parágrafo 4°, inciso IV, da Constituição Federal.
Também, ao proporcionar a retirada de causa que originariamente estava no âmbito de atuação do Poder Judiciário dos Estados-membros, o referido incidente revela uma tendência centralizadora infensa à forma federativa de estado, importando em inadmissível mácula ao princípio federativo.
Assim, a aludida modificação no artigo 109 da Constituição Federal, levada a efeito pelo Poder Constituído Reformador, viola direitos e garantias fundamentais, máxime a garantia do juiz natural e a cláusula do due process of law, bem como deprecia o já combalido pacto federativo pátrio. É, portanto, inconstitucional, não devendo ser aplicada pelos órgãos jurisdicionais e merecendo ser extirpada do mundo jurídico pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n°s 3486-3 e 3493-6, o que se espera com ansiedade.
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NOTAS
01
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, cit., p. 40902
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Poder constituinte do Estado-membro, cit., p. 5403
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. cit., p.6704
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. cit., p.108.05
GRINOVER, Ada Pellegrini. O processo em sua unidade – II. cit., p. 39.06
STF, AI 177.313-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 17/05/96)07
HC 81.963, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 28/10/0408
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos internacionais e jurisdição supra-nacional: a exigência da federalização. Boletim dos Procuradores da República, n° 16, agosto de 1999.09
STJ, Terceira Seção, IDC 01/PA, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA. Julgado em 08/06/2005.