A proposta deste breve artigo não é tecer um estudo aprofundado do tema, mas lançar à discussão alguns pontos acerca da proposta do Governo Federal que pretende reduzir a burocracia estatal para a iniciativa privada, especialmente no que tange aos reflexos que esta medida atinge na seara tributária das empresas. Inclusive nos reservamos a não explorar a integralidade do texto, até mesmo porque – dada sua brevidade de tramitação - ainda não foi apreciado pelas Casas Legislativas competentes, nos termos do art. 62, da Constituição Federal.
Em 30 de abril de 2019, o Governo Federal enviou ao Congresso Nacional a Medida Provisória da Liberdade Econômica (MP) n. 881/2019, que cria a Declaração de Direito de Liberdade Econômica e estabelece garantias para o livre mercado e o amplo exercício de atividades econômicas, visando, em especial, os pequenos empreendedores.
A MP em questão prevê diversos dispositivos de redução da intervenção estatal nas atividades privadas, nas esferas administrativa e regulamentar. No texto do diploma normativo, consta que a intervenção do Estado sobre o exercício das atividades econômicas de ser subsidiária, mínima e excepcional, sobrelevando o respeito ao investidor, às relações negociais e destacando o princípio da presunção da boa-fé nas relações privadas.
O §1º, do art. 1º, expressa que seu conteúdo deve observado na aplicação e na interpretação de direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação, e na ordenação pública sobre o exercício das profissões, juntas comerciais, produção e consumo e proteção ao meio ambiente. Sobre tal tópico, é importante destacar que este enunciado excluiu sua aplicação em relação à esfera tributária, mas o texto da MP contempla reflexos na esfera tributária.
O art. 3º da MP em questão expressa que, dentre os direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais e necessários para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal, “não ter restringida, por qualquer autoridade, sua liberdade de definir o preço de produtos e de serviços como consequência de alterações da oferta e da demanda no mercado não regulado, ressalvadas as situações de emergência ou de calamidade pública, quando assim declarada pela autoridade competente” (inc. III).
Veja-se que o Poder Público, expressamente determinou que, em respeito à liberdade econômica, não é possível a restrição, pela autoridade pública, quanto à precificação de bens e serviços como consequência de alterações da oferta e da demanda, ressalvadas eventuais situações de emergência, quando assim reconhecido e declarado pela autoridade competente. Este dispositivo é expresso ao vedar a atividade estatal no sentido de interferir na valoração das atividades privadas, no que tange aos bens e serviços disponibilizados no mercado econômico, garantindo que o livre comércio e a negociação atuem para o estabelecimento da competitividade econômica.
No entanto, na sequência, o texto da Medida propõe uma ressalva, dentre tantas, à regra geral de liberdade econômica: no §4º do mesmo dispositivo, destaca-se a não aplicação da regra (inciso I), às situações em que o preço de produtos e de serviços seja utilizado com “a finalidade de reduzir o valor do tributo”, “de postergar a sua arrecadação”, ou ainda para remeter lucros em forma de custos ao exterior.
Importa que o inciso I em questão acaba legislando sobre a matéria tributária, pois cria uma clara limitação ao planejamento tributário lícito, já que impede que o empresário possa adequar o preço de seus produtos ou serviços quando há finalidade de redução da carga tributária, postergação de arrecadação ou remessa de lucros em forma de custo ao exterior.
Veja-se que o texto desta normativa não distingue a conduta privada que reflita no aspecto tributário em lícita (elisão) ou ilícita (sonegação), apontando mera previsão de vedação a toda conduta (legítima ou não) de precificação que tenha por único objetivo a redução da carga tributária ou a modulação do seu aspecto fiscal que acabe reduzindo ou postergando a arrecadação. E tal indistinção acaba contrariando o texto da sua própria normatividade, já que um de seus postulados, como antes firmado, é o da presunção da boa-fé.
Ao deixar de distinguir atos legítimos e lícitos de precificação de bens e serviços, daqueles que seriam ilegítimos e ilícitos, ignorando o primado da presunção da boa-fé, a normativa já demonstra séria contradição. O ponto de relevo, no caso, é o aspecto arrecadatório fiscal, pois excepciona, de forma velada, a licitude do ato privado do contribuinte que projete uma redução de carga tributária mediante aplicação de reduções dos preços de seus bens de consumo ou serviço.
Importa que não é vedado ao contribuinte estabelecer qualquer tipo de planejamento tributário, inclusive mediante estabelecimento de preços, ainda que isso acabe tendo influência na esfera fiscal, muito embora seja o (questionável) entendimento da autoridade fiscal de que todo planejamento tributário deva ser fundamentado por um propósito negocial (CARF, acórdão 2301005.933). Com a adoção pelo Fisco da "teoria do propósito negocial", há um motivo para impedir o planejamento fiscal. De acordo com a tese, que já foi reiteradas vezes rejeitada pelo Judiciário, não basta que a legislação tributária autorize o planejamento: é preciso demonstrar à autoridade fiscal que a decisão foi tomada com objetivos ligados aos negócios da empresa, e não apenas para pagar menos impostos.
E nem se cogitaria a aplicação do parágrafo único do art. 116, do Código Tributário Nacional, que firma a desconsideração dos atos privados pela autoridade tributária no caso de planejamento tributário que tenha viés de reduzir a carga tributária por constatação de dissimulação da ocorrência do fato gerador do tributo ou alteração da natureza dos elementos constitutivos da hipótese tributável. Isso porque, além de tal dispositivo não estar regulamentado em nosso sistema, o que o torna inaplicável até que ocorra a sua regulamentação, por força do próprio dispositivo, a questão da precificação não altera o elemento constitutivo da hipótese tributável, não interfere no “fato gerador”, possuindo, no máximo, reflexos no aspecto quantitativo (alíquota e base de cálculo) da obrigação tributária. No caso da precificação de produtos e serviços, não há alteração dos elementos materiais do tipo tributário, muito menos da “natureza” jurídica da sua constituição.
De qualquer sorte, o ponto nevrálgico da questão é que o texto da MP objeto deste estudo estabelece uma regra de perfil tributário, lançando uma limitação tributária ao contribuinte. Ocorre que a limitação ao poder de tributar, ou ao poder constitucionalmente estabelecido de realizar a tributação, por força do art. 146, inc. II, da Constituição Federal, é reservado à edição de Lei Complementar. E o art. 62, inc. III, da mesma Constituição Federal, veda a edição de Medidas Provisórias sobre matérias reservadas à Lei Complementar.
Portanto, no atual estágio de sua exigibilidade legislativa, mostra-se inconstitucional a limitação tributária realizada na Medida Provisória, já que a Carta Magna exige expressamente, para tal mister, a edição de Lei Complementar, vendo vedado, por isso, que a matéria conste e seja regrada por meio de Medida Provisória.
Então, em conclusão, pode-se afirmar que o veículo legislativo eleito para a produção da norma em questão não é compatível com o ordenamento jurídico constitucional. Verifica-se uma inconstitucionalidade de forma, pois o conteúdo em destaque possui reserva de produção para lei complementar.