3. ATIVIDADE NORMATIVA PRIMÁRIA E SECUNDÁRIA DO EXECUTIVO
A função do governo se confunde cada vez mais com a legislação, o que levou R. Capitant a afirmar: "Governar não é mais agir dentro do quadro das leis existentes; governar é dirigir a própria legislação; governar é uma palavra, é legislar" [13].
3.1. Feitas estas considerações gerais, cumpre analisar os mecanismos de exercício de atividade normativa pelo Poder Executivo. Não serão observadas, como afirmado anteriormente, todas as possibilidades de participação do Executivo no exercício da função legislativa – a exemplo da iniciativa de lei ou o veto. A análise a ser desenvolvida restringe-se ao que a doutrina classifica como atividade normativa primária e secundária do Executivo. Vale dizer, o exercício de atividade normativa cujo fundamento está diretamente sediado na Constituição Federal (medidas provisórias e leis delegadas) e a atividade que, de modo geral, visa concretizar comandos normativos previstos na legislação infraconstitucional (os decretos regulamentares).
3.2. As medidas provisórias encontram-se previstas na Constituição brasileira no art. 59, V [14], quando indica quais espécies normativas são compreendidas pelo processo legislativo; no art. 62, principal dispositivo a tratar das medidas provisórias; e no art. 84, XXVI [15], que dispõe acerca das competências privativas do Presidente da República.
As medidas provisórias, inspiradas no art. 77 da Constituição italiana, foram criadas em substituição ao instituto dos decretos-leis previsto na Constituição anterior. Além da mudança terminológica que serviu, em grande medida, para afastar o estigma dos atos desta natureza editados pelo Poder Executivo durante o período ditatorial, as medidas provisórias possuem uma disciplina jurídica acentuadamente distinta da então existente para os decretos-leis.
Os decretos-leis foram criados pela Constituição de 1937, eliminados pela Constituição de 1946 e reintegrados ao ordenamento jurídico nacional por meio da Constituição de 1967, nos arts. 46 [16], 55 e 81 [17]:
Art. 55. O Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante, e desde que não haja aumento de despesa, poderá expedir decretos-leis sobre as seguintes matérias:
I – segurança nacional;
II – finanças públicas, inclusive normas tributárias; e
III – criação de cargos públicos e fixação de vencimentos.
§ 1º Publicado o texto, que terá vigência imediata, o decreto-lei será submetido pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, que o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias a contar do seu recebimento, não podendo emendá-lo; se, nesse prazo, não houver deliberação, aplicar-se-á o disposto no § 3º do art. 51 [18] [Após a Emenda Constitucional n.º 1 de 1969 a redação deste parágrafo foi modificada: § 1º − Publicado o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacional o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá-lo; se, nesse prazo, não houver deliberação, o texto será tido por aprovado].
§2º A rejeição do decreto-lei não implicará a nulidade dos atos praticados durante a sua vigência.
Significativas mudanças podem ser notadas no regime jurídico das medidas provisórias em confronto com o dos decretos-lei. Primeiramente, não há mais a aprovação tácita do texto pelo Congresso Nacional após o decurso de pré-determinado lapso cronológico. Em segundo lugar, um dos pressupostos a estar necessariamente presente não é mais o chamado interesse público relevante, mas tão somente a relevância. Além disso, o decreto-lei exigia a inexistência do aumento das despesas; o que não é previsto na hipótese das medidas provisórias. As vedações explícitas à edição das medidas provisórias, após a Emenda Constitucional n.º 32, são sensivelmente maiores do que as vedações então existentes para os decretos-lei. Outro aspecto de extrema relevância diz respeito à validade dos atos praticados sob a vigência de decreto-lei rejeitado. Esses atos continuavam válidos mesmo após a rejeição.
Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
§ 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria:
I – relativa a:
a) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral;
b) direito penal, processual penal e processual civil;
c) organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros;
d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, § 3º;
II – que vise a detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro;
III – reservada a lei complementar;
IV – já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República.
§ 2º Medida provisória que implique instituição ou majoração de impostos, exceto os previstos nos arts. 153, I, II, IV, V, e 154, II, só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se houver sido convertida em lei até o último dia daquele em que foi editada.
§ 3º As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes.
§ 4º O prazo a que se refere o § 3º contar-se-á da publicação da medida provisória, suspendendo-se durante os períodos de recesso do Congresso Nacional.
§ 5º A deliberação de cada uma das Casas do Congresso Nacional sobre o mérito das medidas provisórias dependerá de juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais.
§ 6º Se a medida provisória não for apreciada em até quarenta e cinco dias contados de sua publicação, entrará em regime de urgência, subseqüentemente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando.
§ 7º Prorrogar-se-á uma única vez por igual período a vigência de medida provisória que, no prazo de sessenta dias, contado de sua publicação, não tiver a sua votação encerrada nas duas Casas do Congresso Nacional.
§ 8º As medidas provisórias terão sua votação iniciada na Câmara dos Deputados.
§ 9º Caberá à comissão mista de Deputados e Senadores examinar as medidas provisórias e sobre elas emitir parecer, antes de serem apreciadas, em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congresso Nacional.
§ 10. É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo.
§ 11. Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas.
§ 12. Aprovado projeto de lei de conversão alterando o texto original da medida provisória, esta manter-se-á integralmente em vigor até que seja sancionado ou vetado o projeto."(NR)
A disciplina jurídica das medidas provisórias sofreu sensível alteração após a Emenda Constitucional n.º 32. Foi feita uma redução das possibilidades de edição de medidas provisórias que, até então, eram objeto de intenso debate doutrinário. Esta limitação ao exercício de poderes conferidos pela Constituição ao Executivo, contudo, não implicam na inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n.º 32: não há violação da separação de poderes tal como delineada pelo Constituinte. Tal conclusão se deve ao fato de serem passíveis de limitação o exercício de funções atípicas por um Poder. Segundo o mesmo raciocínio, compreende-se porque o controle externo do exercício da função administrativa pelo Poder Judiciário não é intrinsecamente inconstitucional.
3.3. Quanto aos pressupostos autorizadores da edição das medidas provisórias, devemos dedicar particular atenção, inicialmente, à análise da urgência. Para tanto, é de imensurável valor o estudo específico sobre o tema da Professora Cármen Lúcia Antunes Rocha [19].
Urgência jurídica é, pois, a situação que ultrapassa a definição normativa regular de desempenho ordinário das funções do Poder Público pela premência de que se reveste e pela imperiosidade de atendimento da hipótese abordada, a demandar, assim, uma conduta especial em relação àquela que se nutre da normalidade aprazada institucionalmente.
A urgência conta, portanto, com dois elementos: o primeiro relativo ao tempo para a prática legislativa, administrativa ou judicial em questão e a segunda a uma necessidade a ser neste prazo suprida [20] (negrito inexistente no original).
Posteriormente, a douta publicista mineira desenvolve ainda mais os requisitos para a caracterização da urgência justificadora da edição de uma medida provisória:
Tenho, pois, que além do elemento tempo, o qual se apressa quanto ao desempenho do Poder Público em relação ao decurso previsto para a normalidade dos provimentos públicos, e do elemento necessidade, que denota o conteúdo da situação concreta sobre a qual o prazo de desempenho da função pública em questão é acelerado, deve caracterizar esta, sempre, a objetiva manifestação no caso concreto, a gravidade nele obviada e a excepcionalidade da circunstância. Quero dizer, pois, que ao lado da situação regularmente prevista para o que se considera o desenvolvimento ordinário de funções estatais, a urgência impõe uma norma ou um comportamento público que subtrai, extraordinariamente, a aplicação daquela primeira, substituindo-a por outra de maior tensão e força impositiva. Esta substituição somente terá legitimidade quando se manifestar a necessidade que altera a dinâmica temporal para a adoção do comportamento estatal, acelerando-o. Conseqüência imediata desta constatação é que a urgência jurídica é sempre situação transitória, precária, passageira [21] (negrito inexistente no original).
Com precisão, afirma, ainda:
Não me parece, pois, que a alegação de urgência (...) possa ser apreciada apenas pelo fator tempo subjetiva e exclusivamente pensado por um agente político ou administrativo. (...).
No Direito Constitucional, bem como no Direito Administrativo, a necessidade que pode caracterizar situação de urgência (...), há de ser sempre pública, vale dizer, voltada ao interesse público concreto e demonstrável [22] (negrito inexistente no original).
A natureza da urgência jurídica tem sido objeto de controvérsia doutrinária, como salienta a Professora Cármen Lúcia Antunes Rocha [23]. Há os que afirmam ser a urgência um conceito político insuscetível de controle pelo Judiciário; outros afirmam que, a extrapolação de competências que importassem em lesão a direitos individuais seria passível de controle judicial. Por fim, analisa uma terceira corrente doutrinária a qual adere – com a qual estou particularmente de acordo – que defende a inexistência de competência que possa ficar alheia a um controle popular. Mais uma vez invocando as lições da festejada Professora:
Logo, parece-me não se poder mais cogitar do exercício de alguma competência que se exclua do espaço democrático de direitos do povo (de todos e de cada qual dos cidadãos) e de impugnação possível judicialmente em caso de contrariedade pela forma ou conteúdo da atuação do poder público.
(...).
Quando este comportamento ensejar um questionamento (ou uma "questão", na fórmula verbal utilizada doutrinária e jurisprudencialmente) será ele tido como político quando, nos termos da lei, gozar da condição constitucional ou legal de comportamento decisório primário de governo exercido nos limites normativos vinculados da competência definida. Além disto não me parece possível cogitar-se de questão política. Mas saliento que mesmo a questão política pode ser conhecida e julgada pelo Poder Judiciário quanto a seu aspecto de legalidade externa. Afinal, em Estado de Direito todas as condutas, quer dos governantes, quer dos governados, submetem-se à lei e esta subsunção é passível de cognição e julgamento pelo Poder Judiciário [24] (negrito inexistente no original).
Por fim, defende a Professora outro entendimento com o qual estou de acordo e cumpre ser enfatizado:
Realço, entretanto, a minha descrença em que se possa, ou mesmo se deva, banir da competência do Poder judiciário a cognição e julgamento de toda e qualquer matéria política. Nem acredito que dentre as funções dos tribunais, mormente os de nível superior no escalão da organização judiciária, fiquem absolutamente excluídas as questões políticas.
Devo revelar que quem decide o que é, ou não, questão política, no Brasil e nos países que adotam o mesmo modelo constitucional que o nosso, é o próprio Poder Judiciário.
Não acredito em questão ou conceito inteira ou exclusivamente político, cuja investigação judicial seja absolutamente vedada. Bastaria para amparar esta ilação lembrar-se da matéria constitucional, cuja norma contém o que de mais político se pode cogitar no Estado, sem que o controle da constitucionalidade seja excluído do domínio enquestável pelo Poder judiciário [25] (negrito inexistente no original).
Por fim, arremata com precisão:
Urgência, no e para o Direito, não é, pois, conceito político, sequer elemento discricionário posto só ao alcance do agente público. Urgência, no Direito e para o Direito, é conceito jurídico, cujos componentes são positivados expressa ou implicitamente pelo constituinte ou pelo legislador infraconstitucional e diz respeito à interpretação da norma, de seus fins específicos e da constatação dos elementos que a formam e conforma em situação posta à mão do agente [26] (negrito inexistente no original).
Com efeito, na apreciação do pressuposto da urgência, deve-se aferir o tempo, o momento contemporâneo da edição do ato normativo (o que incompatibiliza a medida provisória, v.g., com um período de vacatio legis de um ano); a necessidade objetivamente comprovável de edição do ato normativo (situação concreta impondo um ato incontinenti); e a excepcionalidade da circunstância fática (o previsível plantio anual de um determinado produto agrícola não pode justificar a prática abusiva de se editar reiteradamente medidas provisórias).
3.4. A relevância que autoriza a emissão não se confunde com a importância ordinária de qualquer matéria digna de constituir o objeto de uma Lei. Caso contrário, muito provavelmente, o cidadão brasileiro estaria refém da subjetiva avaliação do Executivo. O art. 62 da Carta Política da República faz referência a uma invulgar relevância, importância excepcional. A relevância, assim como foi afirmado anteriormente acerca da urgência, deve ser objetivamente aferível; não a resultante da abusiva avaliação subjetiva do Executivo.
Salienta, neste sentido, o Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia, Josaphat Marinho, a impossibilidade de indeterminação do sentido dos pressupostos das medidas provisórias. Tal idéia conduziria a um poder inapreciável do Executivo, o que seria inadmissível.
A verificação, em cada caso, da legitimidade dos pressupostos de urgência e relevância é, no Judiciário como no Legislativo, exigência da ordem jurídica democrática, para que uma competência constitucional de exceção não se converta em fonte de abuso de poder [27] (negrito inexistente no original).
Esclarecendo a simultaneidade dos pressupostos deste modo:
Exigiu-os simultaneamente, e não alternativamente [relevância e urgência]. Logo, em todos os casos, em que couberem, as medidas só se legitimarão concorrendo os dois elementos. [28]
Ressalta este aspecto excepcional das medidas provisórias o STF na ADIn 1849-0, relatada pelo Ministro Marco Aurélio. Na ocasião, foi afirmado: "Em primeiro lugar, saliente-se que a edição de medidas provisórias faz-se no campo da excepcionalidade. Leitura eqüidistante do art. 62 da Carta Política da República revela a necessidade de concorrerem requisitos, a saber: a relevância e a urgência do trato da matéria de forma excepcional, ou seja, pelo próprio Presidente da República e em detrimento da atuação dos representantes do povo e dos Estados, ou seja, das câmaras legislativas".
3.5. Aspecto de enorme relevância no estudo das medidas provisórias é que relevante parcela da doutrina defende a necessidade de as mesmas serem motivadas. Nesse sentido, o douto magistrado do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Sérgio de Andréa Ferreira [29], assevera:
Ponto importante é que, para ser absolutamente hígida, a medida provisória deve ser motivada, para possibilitar a aferição do real preenchimento de seus pressupostos constitucionais e dos demais aspectos de sua validade.
(...).
Pela motivação expressa, pela explicitação dos chamados motivos determinantes, verificar-se-á se há licitude (legalidade e legitimidade) na sua expedição [30].
No mesmo sentido, a precisa e eloqüente Professora Cármen Lúcia Antunes Rocha defende a necessidade de motivação para que a situação tida por urgente possa ser comprovada e submetida ao "controle judicial, político-institucional e social" [31].
A exigência de motivação das medidas provisórias é perfeitamente compatível com a interpretação restritiva que deve reger um poder excepcional. Este entendimento poderá contribuir para uma moralização na prática do instituto e ser parâmetro de higidez do sistema jurídico pátrio ao conferir, aos seus destinatários, parâmetros objetivos de controle da edição das medidas provisórias.
3.6. A doutrina pátria não deixa de registrar controvérsia acerca da natureza jurídica das medidas provisórias. Em estudo específico sobre o assunto, o Professor Sérgio de Andréa Ferreira defende que a medida provisória é um ato político executivo, isto é, "aquele que, não sendo nem jurisdicional, nem legal, é um ato vinculado à execução do Direito pelo Poder próprio, que é o Executivo" [32]. No mesmo trabalho supracitado, o Professor Sérgio Ferreira acentua a existência de correntes doutrinárias defensoras do entendimento de que a medida provisória seria um ato administrativo em sentido estrito; ou um projeto de lei de eficácia antecipada; ou mesmo o caráter cautelar [33]. Para uma análise mais detalhada da questão, recomenda-se a leitura do citado trabalho.
O Professor Clèmerson Merlin Clève, em um de seus importantes trabalhos doutrinários [34], igualmente enfatiza a controvérsia existente. Segundo o minucioso estudo desenvolvido pelo ilustre Professor, há quem entenda ser a medida provisória um ato adminsitrativo dotado de força de lei; outros incluem-na entre os atos de governo (ato político, executivo ou de governo); há quem entenda as medidas provisórias como um projeto de lei com força cautela de lei; outros entendem-nas como leis especiais dotadas de vigência provisória imediata; bem como há quem entenda as medidas provisórias como leis sob condição resolutiva entre outros entendimentos [35]. Para um estudo minucioso do assunto, os estudos do Professor Clèmerson Merlin Clève são de imensurável importância e a estes reportamos o leitor.
O referido Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, com base em interpretação sistemática do vocábulo lei, preleciona:
Atualmente, o direito constitucional admite, em determidas circunstância rigidamente disciplinadas, o exercício da função legislativa pelo Executivo. Por conseguinte, a lei não é apenas aquela editada pelo Poder Legislativo. É possível afirmar que, no atual contexto da experiência jurídica, todo ato emanado das entidades às quais a Constituição atribua função legislativa, quando praticado no uso da competência constitucionalmente outorgada, será lei, desde uma perspectiva genérica.
(...).
Como já salientado anteriormente, as medidas provisórias integram o processo legislativo em face de expressa disposição constitucional. Configuram uma das espécies normativas primárias elencadas no art. 59 da Constituição Federal. Todas as espécies ali elencadas são lei. Há a Emenda, que consiste em lei constitucional; (...). Mas todas são lei, embora apenas a ordinária e a complementar possam ser tidas como lei formal (ato legislativo complexo). Logo, não é certo que a medida provisória, no sistema brasileiro, não seja lei no sentido técnico, como sustenta certa doutrina. Não é lei no sentido orgânico-formal, mas é lei no sentido de que produz força de lei, tratando-se de ato legislativo dotado de aptidão para inovar originariamente a ordem jurídica, como igualmente o são as leis delegadas e as demais espécies legislativas contempladas no art. 59 da Constituição. (...).
Logo, à exceção da Emenda à Constituição, todas as espécies normativas consagradas no art. 59 da Lei Fundamental são atos legislativos. Todas são lei (ato legislativo), dispondo de força de lei, embora nem todas sejam leis formal. Explicando melhor: no campo do direito interno, excetuados o direito internacional incorporado e os atos normativos anteriores recepcionados pela nova ordem constitucional (decreto-lei não revogado, por exemplo), apenas as emanações normativas em forma de lei complementar, lei ordinária, lei delegada, medida provisória, decreto legislativo e resolução (de uma das Casas ou do próprio Congresso), podem, originariamente, inovar a ordem jurídica (princípio da tipicidade dosa atos normativos primários: leis ou atos legislativos). Estes atos ostentam a qualidade de lei [36] (negrito inexistente no original).
Ainda na mesma obra, assevera o insigne constitucionalista:
No Direito brasileiro, não há motivo para distinguir, como pretende a doutrina italiana, força de lei de valor de lei. Pode-se dizer que por força de lei alude-se à idéia de força ativa (capacidade de inovação ativa) e força passiva (resistência passiva à inovação) [37] (negrito inexistente no original).
Seguindo as lições supracitadas, entendemos que a medida provisória tem natureza jurídica de lei (não de lei formal [38]).
3.7. Impende salientar que a medida provisória não revoga a norma que anteriormente disciplinava a matéria. A medida provisória suspende a eficácia da norma predecessora. Sendo assim, não convertida em lei no prazo de sessenta dias contados da sua publicação, prorrogável, uma vez, por igual período, a medida provisória perderá a eficácia desde a edição. Por conseqüência disto, voltará a ter eficácia a lei que anteriormente disciplinava a matéria.
Se a medida provisória revogasse a lei anterior, uma vez não convertida, a lei revogada não voltaria a ser aplicada. No direito brasileiro, não há o efeito repristinatório. Ou seja, a lei revogada não voltará automaticamente a valer pela revogação da lei revogadora (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 2º, § 3º).
Por força disto, não manifestamos nossa adesão ao entendimento dos que defendem a revogação da norma anterior pela medida provisória [39]. Diversamente, é preferível o entendimento defendido, ainda sob a vigência da Constituição anterior, pelo douto Professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior [40]. Assim, seja na hipótese do decreto-lei analisado pelo eminente Professor da Universidade de São Paulo, seja na hipótese das medidas provisórias, ocorre, apenas, a suspensão da eficácia da norma anterior.
3.8. Controvérsia intensa existia acerca da reedição. Para o Professor Ary Guimarães, da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, descabia a reedição de medida provisória mesmo no regime jurídico anterior à EC. N.º 32. Pois esta é "espécie jurídica que não pode ter vigência maior do que trinta dias" (cumpre frisar que este trabalho foi publicado antes da Emenda Constitucional n.º 32. Atualmente, são 60 dias) [41].
Clémerson Merlin Clève, contrariamente, defendia a possibilidade de reedição. Para ele, se o Congresso não se manifestasse a tempo e os pressupostos habilitadores da edição continuassem presentes, nada obstava outra edição.
Na Itália, desde um famoso decretone, do governo Colombo, de julho de 1970 (...), tornou-se prática costumeira a reedição. O que, apesar de ser parlamentarista o governo, causou amplo repúdio. Hoje, segundo Carlo Stopino (...), há um prazo de carência de seis meses para reedição (grifo do autor). [42]
A EC n.º 32, explicitamente, tratou da matéria. De acordo com o § 10 do art. 62 da Constituição Federal:
É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo.
Ou seja, é possível a reedição das medidas provisórias, desde que não se opere na mesma sessão legislativa. É preciso enfatizar que deve ser considerada a medida provisória reeditada quando o conteúdo da medida rejeitada, ou que perdeu a eficácia, é repedido em uma posterior. Não basta a modificação de algumas palavras, pontuação, ou mesmo com a simples disciplina em linhas gerais do objeto cuja normatização anterior foi rejeitada pelo Congresso.
O STF, sob o regime anterior, acolhia o entendimento, também adotado pelo Congresso Nacional, no sentido de a vedação da reedição só incidir sobre as medidas expressamente rejeitadas. Atualmente, em face da parte final do §10 do art. 62, não é mais possível esta linha de interpretação.
3.9. Outro aspecto que enseja intensa controvérsia diz respeito à possibilidade de medidas provisórias no âmbito local. Concordamos com os que, a exemplo do Professor Clèmerson Merlin Clève [43] e Sérgio de Andréa Ferreira [44], aceitam a possibilidade de adoção das medidas provisórias pelos Estados-membros, Municípios e Distrito Federal, desde que previstas nas suas respectivas constituições ou leis orgânicas. Em primeiro lugar, não há vedação nesse sentido na Constituição Federal. Em segundo lugar, essas medidas seriam adotadas nos moldes da previsão existente no âmbito federal no exercício da autonomia dos entes federativos na disciplina de situações de relevância e urgência também verificáveis em nível local.
Cumpre salientar que algumas constituições estaduais já adotaram o instituto: Constituição do Estado do Acre, arts. 52 e 79; Constituição do Estado do Piauí, arts. 73 e 75; Constituição do Estado de Santa Catarina, arts. 48 e 51; Constituição do Estado do Tocantins, arts. 25 e 27. Além disso, o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de se manifestar sobre o assunto e não declarou a inconstitucionalidade das previsões de medidas provisórias pelos Estados-membros.
3.10. Feitas estas considerações acerca das medidas provisórias, cumpre tecer algumas observações sobre as leis delegadas. Estas também se incluem no campo das atividades normativas primárias do Executivo. Difere das medidas provisórias por decorrer de delegação.
Nessa linha, Pinto Ferreira preleciona que a lei delegada "é um ato normativo primário, porque está no primeiro nível de eficácia, logo depois das leis constitucionais. A lei delegada é um ato primário condicionado, porém derivado de imediato da própria Constituição" [45].
A Emenda Constitucional n.º 4, à Constituição de 1946, introduziu a lei delegada em nosso ordenamento jurídico. Com isto, foi afastado o princípio então vigente de indelegabilidade das atribuições. Posteriormente, a Emenda Constitucional n.º 6, restabeleceu o presidencialismo bem como o princípio da indelegabilidade das funções legislativas. Em 1965, a Emenda Constitucional n.º 17 passou a admitir a delegação interna corporis, assegurando a possibilidade de uma comissão especial legislar. A alternância do regime jurídico referente ao exercício da função legislativa continuou na Constituição de 1967 – que manteve o princípio permitindo, contudo, a delegação interna corporis. A Emenda Constitucional nº 1, de 1969, passou a admitir, ao lado da delegação intra-órgão, a delegação externa, ao Presidente da República.
Como salientado pelo douto Professor Clèmerson Merlin Clève, a "Constituição de 1988 não dispõe, expressamente, sobre o princípio da indelegabilidade de atribuições. Tal norma principiológica, entretanto, encontra-se implícita, decorrendo da organização separada das funções do Estado" [46].
3.11. As leis delegadas encontram-se previstas no art. 69 da Constituição Federal:
Art. 68. As leis delegadas serão elaboradas pelo Presidente da República, que deverá solicitar a delegação ao Congresso Nacional.
§ 1º - Não serão objeto de delegação os atos de competência exclusiva do Congresso Nacional, os de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, a matéria reservada à lei complementar, nem a legislação sobre:
I - organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros;
II - nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais;
III - planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos.
§ 2º - A delegação ao Presidente da República terá a forma de resolução do Congresso Nacional, que especificará seu conteúdo e os termos de seu exercício.
§ 3º - Se a resolução determinar a apreciação do projeto pelo Congresso Nacional, este a fará em votação única, vedada qualquer emenda.
Enfatiza, também, o citado Professor Clèmerson Clève, no trabalho por meio do qual obteve o título de doutor em direito constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que a denominada delegação intra-órgão não constitui verdadeira delegação. A delegação interna consistiria, apenas, numa especialização de parcela do Poder Legislativo. Para ficar caracterizada a delegação legislativa é indispensável a existência de dois centros de poder distintos. Isto se torna ainda mais evidente pelo fato de uma lei elaborada por fração do Legislativo ter o mesmo status dentro do ordenamento jurídico que outra aprovada pelo Plenário [47].
3.12. A delegação legislativa, como leciona o Professor Clèmerson Clève, envolverá a produção de uma lei de autorização, votada pelo Legislativo, e de uma (ou mais de uma) lei autorizada, elaborada pelo Executivo. "A lei de autorização (resolução do Congresso Nacional) e lei autorizada (lei delegada) operacionalizam a técnica da delegação legislativa" [48].
É importante notar que a competência é conferida pela Constituição – no que a delegação legislativa se diferencia da delegação administrativa. A autorização do Legislativo é um ato de controle preventivo:
A autorização pode ser compreendida como "ato de controle preventivo condicionante da eficácia de um outro ato, porquanto diz respeito à possibilidade de exercitar alguns poderes particulares dele derivantes", ou, ainda, como "ato que remove os obstáculos ao exercício de um direito já preexistente no patrimônio do solicitante" [49].
3.13. Atualmente, a delegação legislativa se dá por meio de resolução do Congresso Nacional. As resoluções, como salienta o Professor Clèmerson Clève, "nos termos do art. 59 da Constituição, figuram entre as espécies normativas integrantes do processo legislativo. Ostenta, portanto, grau hierárquico equivalente ao da lei ordinária" [50] (negrito inexistente no original). A lei autorizada (produzida pelo Executivo) terá o grau hierárquico equivalente ao da lei ordinária.
3.14. O ato de delegação autorizará o "Presidente da República a exercer temporária e limitadamente (em face das condições estabelecidas pelo Legislativo), a função legiferante" [51].
A promulgação da resolução autorizadora é competência do Presidente do Senado (art. 57, § 5º, da Constituição). A edição da lei delegada, por seu turno, se subordinará ao quanto estabelecido no ato de autorização.
3.15. O ato de delegação pode exigir ou não a apreciação da lei delegada pelo Congresso Nacional. Se não for exigida, o Presidente promulgará o ato e determinará a sua publicação. Se for exigida a apreciação pelo Congresso, este irá aprovar ou não o projeto, sem possibilidade de emendá-lo, em votação única. Sendo dispensada a sanção e o veto, precisamente pela impossibilidade de emenda ao projeto presidencial (registre-se o fato de haver divergência doutrinária nesse particular) [52].
Uma vez rejeitado o projeto presidencial, o mesmo será arquivado. Como assevera o autorizado Professor Clèmerson Clève, em um dos trabalhos mais importantes sobre o assunto na doutrina nacional, estando ainda dentro do prazo da delegação expressa na resolução do Congresso, o Presidente poderá apresentar outro projeto bem como, com base em um mesmo ato delegante, apresentar mais de um projeto [53].
Durante o período de delegação, o Congresso poderá revogar a lei delegante bem como legislar sobre a matéria objeto de delegação, independentemente de qualquer ato presidencial.
Competindo exclusivamente ao Presidente da República, a lei delegada não admite subdelegação: apenas o titular do cargo presidencial (ou o substituto constitucionalmente previsto) poderá elaborá-la.
3.16. Discussão relevante no estudo da matéria diz respeito às matérias insuscetíveis de delegação. O § 1º do art. 68 da Carta Magna nos apresenta uma série de limitações à atividade delegante. O referido dispositivo explicita a impossibilidade jurídica de uma lei delegada ter como objeto: os atos de competência exclusiva do Congresso Nacional; os de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; a matéria reservada à lei complementar; a legislação sobre a organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros, nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais, planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos.
Além dessas vedações explícitas, discute-se a existência de impedimentos implícitos certamente existente. Com efeito, o rol do art. 68 não é exaustivo. Outras limitações são indiscutivelmente insertas no ordenamento jurídico. Sendo assim, ainda segunda as lições do supracitado doutor em Direito Constitucional pela PUC de São Paulo, outras sete limitações podem ser indicadas: o poder de reformar a constituição, a abertura de créditos suplementares ou especiais (art. 49, X, da CF); "a transposição, o remanejamento ou a transferência de recursos de uma categoria de programação para outra ou de um órgão para outro, sem prévia autorização legislativa" (art. 167, VI, da CF); "a utilização de recursos dos orçamentos fiscal e da seguridade social para suprir necessidade ou cobrir déficit de empresas, fundações e fundos, inclusive dos mencionados no art. 165, § 5º" (art. 167, VIII, da CF); "a instituição de fundos de qualquer natureza (art. 167, IX, da CF); matéria penal; e matéria tributária [54].
3.17. Por fim, cumpre fazer algumas considerações sobre o exercício da competência normativa secundária do Executivo. Nesta seara nós encontramos os regulamentos.
Regulamentar é edictar regras que se limitem a adaptar a atividade humana ao texto, e não o texto á atividade humana.
(...).
Onde se estabelecem, alteram, ou extinguem direitos, não há regulamentos – há abuso de poder regulamentar, invasão da competência do Poder Legislativo. O regulamento não é mais do que auxiliar das leis,.. . [55].
O poder regulamentar, como registrado em autorizada doutrina de escol, consiste no mais importante meio pelo qual a Administração Pública exerce atividade normativa secundária. Existe, com efeito, uma imensa série de atos normativos editados pela Administração, a exemplo de instruções ministeriais, circulares, regimentos, estatutos, ordens de serviço, entre outros [56].
Segundo o Professor Clèmerson Clève [57], o conceito estrito de regulamento, em nosso país, refere-se apenas ao ato normativo secundário editado pelo Chefe do Executivo. Sendo proveniente de qualquer outra autoridade, não mais corresponderá à idéia constitucional de regulamento. Nesse sentido, de acordo com o preclaro jurista Geraldo Ataliba, ainda sob a vigência da Constituição anterior:
Consiste o chamado poder regulamentar na faculdade que ao Presidente da República – ou Chefe do Executivo, em geral, Governador e Prefeito – a Constituição confere para dispor sobre medidas necessárias ao fiel cumprimento da vontade legal, dando providências que estabeleçam condições para tanto. Sua função é facilitar a execução da lei, especificá-la de modo praticável e, sobretudo, acomodar o aparelho administrativo, para bem observa-la [58].
Com efeito, a tarefa de dar exeqüibilidade às leis exercida por autoridade distinta do Chefe do Poder Executivo foge do campo eminentemente constitucional de apreciação do tema.
3.18. O poder regulamentar é justificado materialmente pelas necessidades concretas do contexto moderno que impõe a existência de uma disciplina jurídica sobre assuntos subordinados a uma dinâmica maior que a ordinária. A separação dos poderes, como afirmado anteriormente, encontra-se atenuada por necessidades sociais diversas.
O poder regulamentar é um imperativo da concretização de comandos legais. Como leciona Pontes de Miranda [59], seu exercício é tarefa das mais difíceis. Ele requer o domínio doutrinário do assunto, do conjunto da disciplina jurídica do mesmo, bem como de suas reais necessidades.
É certo que detalhes para a concretização de normas são melhor disciplinados por meio de decretos. A dinâmica social encontra dificuldades de regulação por meio de pormenores contidos em lei. A lei, disciplinando minúcias, corre o risco de perder sua estabilidade e, por conseguinte, ser objeto permanente de modificações. Todavia, os regulamentos sempre estarão subordinados à devida harmonia com a lei que pretendem regulamentar [60]. Lecionava o grande Geraldo Ataliba que o poder de fazer regulamentos, por exigência constitucional, era deflagrado pela existência da lei [61]. Em outros termos, mas no mesmo sentido:
A lei, ao instituir de modo sintético normas de caráter geral e abstrato, exige para sua exigibilidade, outras normas igualmente gerais, obrigatórias e permanentes, mas de caráter analítico, como são as do regulamento. Em princípio tem-se como certo, presente a natureza das atribuições e a própria estrutura dos órgãos dos quais emana, que à lei é defeso descer a minúcias e pormenores que ao regulamento se reservam, como mais adiante se exporá [62].
Como se percebe, o exercício de atividade regulamentar encontra uma série de limitações no nosso ordenamento jurídico. Ainda discorrendo acerca das limitações à atividade regulamentar, valemo-nos das lições do douto jurista Francisco Campos:
É consubstancial aos regimes constitucionais, particularmente ao nosso – de Constituição escrita e rígida, um domínio indubitavelmente reservado à legislação no sentido estrito ou formal, ou à competência do Poder Legislativo. Em tais regimes, por maior a amplitude que se queira atribuir ao poder regulamentar da Administração, esse poder não está apenas adstrito a operar intra legem e secundum legem, mas não poderá em caso algum e sob qualquer pretexto, ainda que lhe pareça adequado à realização da finalidade visada pela lei, editar preceitos que envolvam limitações aos direitos individuais. Este domínio é de modo absoluto, reservado à legislação formal, ou aos preceitos jurídicos editados pelo Poder Legislativo. Em relação a eles a Administração não poderá dispor, seja por via individual, ou mediante o ato administrativo, seja por via geral, ou mediante decreto de caráter regulamentar. Garantidos na Constituição os direitos individuais, a sua declaração constitui, por si mesma, um limite oposto de modo absoluto ao poder regulamentar da Administração [63].
Os direitos fundamentais são, pois, limitações ao poder regulamentar. A máxima efetividade que lhes deve ser conferida impõe um modo de proteção. A exigência, em hipóteses restritivas, de leis em conformidade com os postulados normativos aplicativos da proporcionalidade e da razoabilidade constitui uma proteção indissociável da efetividade dos direitos fundamentais.
3.19. Formalmente, o poder regulamentar está fundamentado na Constituição e nas leis. A competência regulamentar é deferida ao Executivo, dentro de nítidos limites, pela Constituição [64].
O regulamento fornecerá um critério material para a tomada de decisões em casos concretos. Daí a diferenciação do regulamento enquanto ato normativo e um ato administrativo executivo. O regulamento é dotado de generalidade e abstração. Os regulamentos expressam verdadeira atividade administrativa de caráter normativo [65].
Formalmente, os regulamentos encontram limites na competência, no veículo de edição e na publicação do decreto regulamentar. Consoante a Constituição Federal, a atividade regulamentar insere-se entre as competências privativas do Presidente da República. No que diz respeito às demais unidades federativas, será, simetricamente, competência dos seus respectivos chefes do Poder Executivo.
No direito brasileiro, o regulamento, em sentido lato, pode ser definido como qualquer ato normativo (geral e abstrato) emanado dos órgãos da Administração Pública. Em sentido estrito (que importa para o direito constitucional), regulamento será o ato normativo editado, privativamente, pelo Chefe do Poder Executivo [66] (negrito inexistente no original).
No que concerne ao veículo de edição, o regulamento é veiculado por meio de decreto. A publicação sempre será obrigatória quando o regulamento produzir efeitos perante terceiros; não sendo o caso, quando for apenas interno, bastará a ciência do destinatário por qualquer meio [67].
3.20. Materialmente, no Brasil, até pouco tempo, não havia matéria reservada ao decreto. Após a Emenda Constitucional n.º 32, com a nova redação dada ao art. 84, VI, da Carta Magna, existem matérias cuja disciplina está reservada aos decretos. O regulamento inova a ordem jurídica de modo derivado, limitado, subordinado. Nesse particular, diferencia-se da lei que inova de modo originário o ordenamento [68].
Consoante o escólio de Pontes de Miranda:
O poder que tem o regulamento não é mais, intrinsecamente, do que o do intérprete doutrinário, e às vezes é menos; extrinsecamente, é ele estatalmente mais autorizado, muito embora, socialmente, nem sempre o seja, (Pense-se na diferença entre Estado e sociedade, entre autoridade pública e autoridade social).
(...).
O regulamento é proposta de interpretação ou conjunto de normas de direito formal administrativo. Nenhum princípio novo, ou diferente, de direito material se lhe pode introduzir.
(...).
A pretexto de regulamentar a lei a, não pode o regulamento, sequer, ofender o que, a propósito da lei b, outro regulamento estabelecera. O regulamento somente pode contradizer o que concernia, em regulamento, à lei ab-rogada ou derrogada pela lei a cuja aplicação ele serve [69].
3.21. Em conformidade com Professor Clèmerson Merlin Clève, a opinião majoritária na doutrina brasileira "manifesta-se no sentido de que apenas as leis que devam sofrer aplicação pelo Executivo desafiam regulamentação" [70] (negrito inexistente no original). Neste sentido, Geraldo Ataliba:
O Presidente da República não pode regulamentar lei que não lhe caiba executar; o mesmo se diga do Governador e do Prefeito;
(...);
O regulamento não pode dispor sobre relações entre particulares (direito privado) ou entre o Judiciário e terceiros; só entre as relações entre o Executivo e os administrados;
(...);
Só cabe regulamento, pois, em matéria que vai ser objeto de ação administrativa, com esta relacionada, ou desta dependente [71] (negrito inexistente no original).
No mesmo diapasão, Pontes de Miranda leciona:
Não pode o Presidente da República regulamentar as leis, decretos e resoluções, que não lhe cabe executar [72].
3.22. Não podemos olvidar fato importante relacionado com o controle de constitucionalidade. De acordo com entendimento consagrado pelo Supremo Tribunal Federal, a desconformidade entre o regulamento e a lei é matéria de ilegalidade, não de inconstitucionalidade. Nesse sentido:
1. Os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas fiscais têm por finalidade interpretar a lei ou o regulamento no âmbito das repartições fiscais, CTN, art. 100, I. Destarte, se essa interpretação discrepa da lei ou do regulamento, a questão é de ilegalidade, e não de inconstitucionalidade. Esse ato normativo não está sujeito ao controle de constitucionalidade em abstrato.
2. Ação direita de inconstitucionalidade não conhecida.
ADInconst 311-9 (Medida liminar) – DF – TP – j. 8.8.90 – rel. Min. Carlos Velloso – DJU 14.9.90 [73].
No mesmo sentido, noticia recentemente o Informativo do STF n.º 356:
Com base no entendimento supracitado, quanto à legitimidade ativa para a ADI, o Tribunal, por maioria, deu provimento a agravo regimental interposto contra decisão do Min. Carlos Velloso, relator, que, também por ilegitimidade ativa ad causam, negara seguimento a agravo regimental em ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Partido Social Liberal – PSL contra o Provimento nº 34, de 28 de dezembro de 2000, da Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, que regulamenta a Lei dos Juizados Especiais ("Provimento nº 34, de 28.12.2000. Capítulo 18, Juizado Especial Criminal. Seção, 2, Inquérito Policial e Termo Circunstanciado: ‘18.2.1 – A autoridade policial, civil ou militar, que tomar conhecimento da ocorrência, lavrará termo circunstanciado, comunicando--se com a secretaria do juizado especial para agendamento da audiência preliminar com intimação imediata dos envolvidos’"). Vencidos, no ponto, os Ministros Carlos Velloso e Celso de Mello, pelas mesmas razões acima mencionadas. Em seguida, negou-se provimento ao agravo regimental interposto contra a decisão do Min. Carlos Velloso, relator, que negara seguimento à mencionada ação direta de inconstitucionalidade. Entendeu-se que o ato normativo impugnado não é ato normativo primário, mas secundário, interpretativo de lei ordinária (Lei 9.099/95), tratando a questão, não de inconstitucionalidade, mas de ilegalidade se o ato regulamentar vai além do conteúdo da lei.
ADI 2618 AgRAgR/PR, rel. Min. Carlos Velloso, 12.8.2004. (ADI-2618) (negrito inexistente no original)
Por todo o exposto, ainda seguindo as lições do Professor Clèmerson Clève, "o regulamento é o ato normativo editado, privativamente, pelo Presidente da República, no exercício de função administrativa, por meio de decreto referendado por Ministro de Estado, para disciplinar a aplicação das leis que regem relações jurídicas qualificadas pela presença do Estado-poder" [74].