5. A Defesa dos Valores Institucionais.
Tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 187/12, que objetiva alterar a Constituição Federal, permitindo, assim, de forma mais ampla, a livre eleição para os órgãos diretores de todos os Tribunais de 2º Grau existentes no País. A chamada "PEC da Democratização do Judiciário" estabelece que os integrantes dos cargos de direção das referidas Cortes deverão ser eleitos pelo voto da maioria absoluta dos magistrados, e não apenas pelos membros que compõem o respectivo Tribunal. A matéria versada na PEC, à toda evidência, suscita debates sob diversos enfoques, um dos quais guarda relação com o tema abordado no presente artigo, nomeadamente quanto à necessidade de se respeitar os valores institucionais próprios de cada órgão.
Como vimos, a forma de ingresso e o padrão de formação inerente a uma determinada instituição (por exemplo, o Senado Federal) não podem ser simplesmente atribuídos a um outra estrutura institucional com destinação e valores absolutamente diversos (por exemplo, o Poder Judiciário). Pretender que culturas organizacionais atinentes a uma instituição sejam percebidas da mesma maneira por outra como forma de supostamente melhorar seu funcionamento traduz-se numa verdadeira falácia. E mais, induz à ruptura institucional.
A respeito de tal problemática, TROVIZO aduz que:
Assim, cabe considerar a exceção que representam os militares no tocante às pressões para adaptações à ética relativa. Aqui se ressalta que ética relativa não representa falta de ética. Como fundamento da política, se coloca a arte de negociação entre iguais na defesa de interesses sociais legítimos.
O militar, por outro lado, como portador da ética tradicionalista e fazendo parte de uma instituição hierarquizada, defronta-se com circunstâncias bem diversas, não admitindo tergiversações. Sua formação deve prepará-lo para ações e reações imediatas. Imagina-se que no campo de batalha de tal postura dependerá sua vida ou a de seus pares. Em combate não há lugar para relativismos. Em combate não se permitem acomodações. (TROVIZO, 2007, p. 93).
De fato, não é crível (e aceitável) que instituições militares passem a cultivar valores estritamente políticos, sob pena de se permitir o mais completo desvirtuamento institucional, abalando, em última análise, os sólidos pilares que dão sustentação às Forças Armadas, quais sejam, os princípios da hierarquia e da disciplina (art. 142, caput, da Carta do Estado brasileiro).
Ainda no que concerne às instituições militares, importante consignar que no processo de formação e reconhecimento de seus valores, a hierarquia é percebida como verdadeiro instrumento de humanização dos conflitos. Assim compreendido, é por meio dela que se consegue, mesmo nas situações extremas dos conflitos, pautar a violência nos limites jurídicos impostos ao estado de beligerância, ou seja, submissão das ações bélicas às normas e leis, evitando-se, assim, práticas condenáveis, tal como a chamada guerra de aniquilamento, tão adotada por Hitler e Stálin.
As guerras civis, regra geral, são atrozes porque a familiaridade confere profundidade ao ódio e ao dogmatismo cego, levando a uma escalada dos extremos e gerando um caráter irreversível da espiral da violência. Por este cenário, a criminalização do inimigo leva à sua desqualificação moral e abre caminho para os massacres, exposição da população civil a perigos e tratamento degradante de prisioneiros. [...] a guerra centralizada, declarada, formal e organizada segundo uma estrutura hierarquizada e piramidal de comando busca impedir que a hostilidade convencional das partes em conflito se transforme em ódio cego. Neste contexto, a manutenção da reciprocidade e da igualdade entre os contendores, contribui para a manutenção de um canal de diálogo que torne possível a paz sem rancores.[15]
Felizmente, por conta da existência de instituições militares baseadas na hierarquia e na disciplina, e atuando de maneira convencional, temos hoje uma Europa unida, mesmo após ter sido devastada (em muitos casos pela estratégia da aniquilação) durante o maior conflito bélico convencional que o mundo já vivenciou (Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945), abarcando a totalidade daquele continente e colocando, em lados opostos, boa parte de sua população. Noutro extremo, vê-se a África, o Oriente Médio, a Ásia e, ainda, parte da Europa mergulhadas em infindáveis questões étnicas, religiosas e políticas, cujo aspecto comum é a ausência de uma dimensão institucional por parte de algum dos contendores. Por conseguinte, sem tal institucionalização, não há como estabelecer e difundir no seio da tropa a tão imprescindível noção de hierarquia, razão pela qual a completa transformação de uma instituição, sobretudo a militar, requer sempre muita cautela, particularmente quando tal processo é conduzido sem atentar para os valores institucionais que lhe são próprios, exatamente o que vem acontecendo através da PEC nº 51/13, que propõe, em linhas gerais, a desmilitarização das atuais polícias militares dos estados e do Distrito Federal.
De igual maneira, a instituição Poder Judiciário, que tanto prima pela independência funcional de seus magistrados, e que se caracteriza por uma atuação técnico-hermenêutica, não pode, por absoluta definição essencial, envolver-se em ambientes atrelados a mecanismos políticos. Neste sentido, dignas de registro são as palavras do eminente Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, NELSON MISSIAS DE MORAIS:
O magistrado livre das amarras do poder político, econômico ou de criminosos, no qual o fraco e o forte se equivalem, foi uma conquista da cidadania e a ela se destina. O predicamento da vitaliciedade é dimensão necessária do juiz independente, sem assombros na carreira em razão das suas decisões. (MORAIS, 2013, p. 40).
No mesmo diapasão analítico, o novel Decreto Presidencial 8.243 de 23 de maio de 2014[16], que Institui a Política Nacional de Participação Social - PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social - SNPS, estabelece, "com o objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil" (Art. 1°), a criação de conselhos e demais "instâncias e mecanismos de participação da social" (Art. 6º). Neste cenário, há que se considerar que, nos termos deste comando, "o cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações" (Art. 2º, I) passariam a integrar, por representação, as instâncias de planejamento e decisão de diversas das instituições aqui tratadas; não obstante a falta do entendimento da destinação maior destas estruturas; com legítima presunção, neste contexto, de grave afetação dos valores institucionais.
O Executivo propõe que todos os órgãos da administração direta e indireta tenham em suas instâncias decisórias conselhos formados por representantes da sociedade civil. [...] o conceito de sociedade civil, amplo demais para ser definido com justeza, se transforma nos chamados "movimentos sociais"[...] Pelo decreto presidencial, esse pessoal colonizaria os ministérios, autarquias, agências reguladoras, empresas de economia mista, enfim, quase toda a máquina do governo.(VEJA, Nº 24, 11 DE JUNHO DE 2014, p.59).[17]
Assim, pode-se inferir que a preservação dos valores institucionais é vital para a sociedade, sendo oportuno ressaltar que, de maneira alguma, tal afirmação concorre para a imobilidade das instituições. Muito pelo contrário, é justamente o dinamismo institucional que permite a evolução organizacional em consonância com os anseios da população e, acima de tudo, livre dos indesejáveis e nefastos casuísmos.
6. Uma Questão de Padrão.
A sociedade, ao delegar às instituições militares o uso da força letal, exige delas, por absoluta coerência, uma padronização de valores e procedimentos de seus integrantes, vale dizer, daqueles que efetivarão o uso da força, de modo que a primeira possa fiscalizar a atuação das delegadas. Esta padronização opera-se durante o processo de formação. Justamente por isso a formação militar é tão característica, razão pela qual não se pode imaginar que aspectos inerentes a outras formações universitárias devam ser observados em seu contexto, pois, como ficou registrado, ações que alterem o coletivismo militar podem influir negativamente na coesão do corpo, gerando perigosos reflexos na capacidade de atuação da Força em situações específicas da atividade castrense.
Assim, cabe às instituições jurídicas cooperar com a preservação dos aspectos característicos das instituições militares, reforçando, em última análise, a própria mens constitucional retratada no art. 142, caput, da Lei Maior. Com efeito, decisões judiciais atinentes à formação acadêmica dos profissionais militares devem levar em consideração, necessariamente, a cultura institucional inerente à vida na Caserna, distinta que é, por definição, de outras formações laborais. Por exemplo, um estudante que concebe a progressão acadêmica como um simples "passar de ano" desconsidera, nitidamente, os aspectos da formação afetiva que, como vimos, é o que diferencia as instituições militares.
Nesse contexto analítico, vale trazer à colação recente Decisão Liminar proferida por este Autor no bojo de uma ação judicial (Processo nº 0101009-21.2014.4.02.5109) movida por cadete da AMAN contra a União, objetivando garantir sua promoção (em regime de dependência) para o ano seguinte, mesmo diante do que preconiza a legislação pertinente, que inadmite tal figura jurídica:
É importante registrar, - com necessária ênfase-, que o cadete da Academia Militar das Agulhas Negras - AMAN, a exemplo de outras instituições militares de ensino e treinamento no Brasil e no Mundo, possui situação jurídica absolutamente diversa do aluno universitário regularmente matriculado em estabelecimento de ensino superior, pelo que ostenta, - por força de imperativo legal -, a condição de membro do efetivo ativo das Forças Armadas (no caso do Exército Brasileiro), na graduação de praça especial, com todas as consequentes prerrogativas e direitos, mas, igualmente, com os inerentes deveres.
Portanto, não há como se estabelecer, na hipótese vertente, uma pretensa simetria entre situações jurídicas completamente distintas, sendo certo que o que se está aqui a discutir não é, como possa parecer em um exame superficial, a simples possibilidade de um pretenso aluno de curso superior poder, por força de decisão judicial provisória (eis que sujeita a recurso e mesmo ao duplo grau de jurisdição como condição de eficácia jurídica), ser aprovado (ainda que por dependência) ao ano subsequente de um curso de ensino superior.
[...]
Vale dizer, o cadete não é um mero estudante, mas um “praça especial” do serviço ativo, razão pela qual ele encontra-se inserido na estrutura hierárquica das Forças Armadas. Essa hierarquia já se apresenta dentro da escola. O cadete do ano antecedente necessariamente ocupa uma posição hierarquicamente inferior àquele do ano subsequente e assim por diante. A noção de hierarquia se materializa em diversos detalhes do dia-a-dia desses alunos - militares, tais como: os serviços e funções a serem desempenhados na rotina militar da academia, a precedência para realizar diversas atividades, a possibilidade de escolha para intercâmbio com outras escolas militares de países aliados, comando em treinamentos militares e tantas outras implicações que não caberia neste momento detalhar.
Logo, ao se permitir que um cadete seja matriculado, ainda que a título precário, no 3º ano do Curso de Formação de Oficiais Combatentes do Exército Brasileiro (2º ano da AMAN), isto significa dizer que este cadete figura em posição hierárquica superior aos alunos do 2º ano e dos demais anos antecedentes, quando deveria, no contexto da normalidade institucional, encontrar-se abaixo de todos os cadetes do 3º ano e no mesmo grau hierárquico dos estudantes-militares do 2º ano. Trata-se, portanto, de grave subversão da hierarquia militar, ferindo frontalmente um dos princípios mais fundamentais e basilares da estrutura castrense.
Diversa seria a hipótese em que tal fato ocorresse numa instituição de ensino civil, posto que a matrícula de um aluno, ainda que de forma irregular, em ano posterior, em nada afeta a vida acadêmica e profissional dos demais integrantes do corpo discente, ainda que represente, a toda evidência, uma afronta ao princípio da isonomia.
Conforme se constata, a fundamentação da decisão acima transcrita considerou a dimensão ética das instituições militares, interpretando-a à luz da legislação federal aplicável e dos valores institucionais castrenses. Tal dimensão, insta frisar, em nada prejudica a integral observância dos direitos dos profissionais militares em geral, bem como do cadete, em particular. Muito pelo contrário, é a total observância das atividades institucionais dentro da ética e, no caso dos militares, em nome dela, que deve prover a segurança jurídica para as incumbências profissionais em todas as respectivas áreas de atuação.
No caso em destaque, entendemos que às instituições jurídicas cumpre garantir que as demais estruturas da sociedade possam proceder de acordo com os valores que lhe são próprios, tudo, obviamente, respaldado pelo ordenamento jurídico nacional, a ser interpretado de modo a não interferir na cultura organizacional das diversas instituições.