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O não reconhecimento do roubo de cargas como causa legal excludente de responsabilidade do transportador rodoviário

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Este trabalho mistura aspectos práticos e acadêmicos do Direito. O tema é, sem dúvida, controvertido e reclama especial atenção de aspectos significativos da responsabilidade civil. Traduz, a um só tempo, a experiência vivida em disputas judiciais e o gosto pelo estudo, com inegável ênfase ao primeiro.

Em vários momentos é adotado o discurso repetitivo. A repetição, às vezes exaustiva, tem um só propósito: reforçar a idéia de que o roubo, nos dias correntes, não pode ser considerado como um evento capaz de ensejar caso fortuito e, portanto, causa excludente de responsabilidade do transportador rodoviário que não executa perfeitamente o contrato de transporte em virtude de ser vítima de um roubo.

Infelizmente, é farta a safra de espetáculos criminosos no Brasil de hoje. Pena que, salvo sádicos, masoquistas, criminosos e eventuais beneficiários, ninguém possa apreciar qualquer um dos shows em andamento, sendo estes freqüentes, comuns e constantes.

Assim, inexistindo mais os elementos imprevisibilidade e inesperabilidade quanto ao roubo de cargas, impossível a chancela da fortuidade. A repetição, ora justificada, portanto faz-se necessário para o reforço da idéia fundamental deste modesto trabalho que é, em verdade, ajudar a fomentar a mentalidade no mundo jurídico brasileiro, especialmente em termos práticos, de não se ter o roubo como caso fortuito.

A saber:

O transportador rodoviário de carga, a exemplo dos transportadores em geral, tem sua responsabilidade disciplinada por várias regras legais, a saber:

Código Comercial, artigos 101, 102 e 103;

Código Civil, artigos 730 a 756;

Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei Federal nº 8.078/90);

Decreto dos Transportes, Decreto nº 2.681/12.

Havendo inadimplemento do contrato de transporte, todas as regras acima mencionadas podem e devem ser aplicadas, sem se falar em conflito aparente de normas.

Grosso modo, pode-se dizer que a responsabilidade do transportador rodoviário, em termos contratuais, é objetiva, implicando as idéias de culpa presumida e inversão do ônus da prova.

Assim, sendo constatado o inadimplemento do contrato de transporte, vale dizer, faltas ou avarias em relação às cargas confiadas para o transporte, o transportador responderá pelos prejuízos decorrentes independentemente de culpa, salvo se conseguir provar, mediante inversão do ônus, a existência de alguma causa legal excludente, vale dizer, caso fortuito, força maior ou vício de origem.

Desde o século retrasado que o Direito brasileiro vem conferindo ao transportador de bens tratamento tão rigoroso.

E nem poderia ser diferente, na medida em que o transportador tem os mesmos deveres do depositário, quais sejam, guardar, conservar e restituir aquilo que entregue para o transporte.

Também é de se considerar a natureza jurídica do contrato de transporte, consubstanciada em uma obrigação de fim, vale dizer, obrigação em que o aperfeiçoamento só se dá com o resultado positivo do pacto.

Importante observar que o mosaico de regras disciplinadoras da responsabilidade dos transportadores de carga em geral já havia sido desenhado antes mesmo do texto constitucional de 1988, responsável pela introdução de uma nova maneira de se pensar o Direito no Brasil.

Maneira essa que alcançou seu apogeu com a entrada em vigor do vanguardista Código de Proteção e Defesa do Consumidor e sedimentou-se com o novo Código Civil, este último responsável por vestir o Direito Privado brasileiro com o manto do publicismo, de tal sorte que muitos defendem a existência de um só ramo do Direito, o Público.

Com efeito, a ordem civil antiga encontrava-se lastreada na maximização espartilhada do conceito de segurança jurídico, muito próprio a sociedade brasileira de 1916, mais uniforme e igualitária do que a atual.

Já o novo sistema legal civilista ocupa-se, sem desprezar a importância da segurança jurídica, com a busca constante da justiça, sendo o conceito de justo mais importante do que o conceito de legal.

Trata-se, pois, de uma ordem mais compatível com a sociedade atual, infelizmente caótica, desigual, carente e cheia de conflitos.

O Direito, mais do que nunca, homenageia a equidade, a isonomia e a leitura dinâmica da igualdade, permitindo o tratamento desigual com vistas ao equilíbrio das relações sociais e, por conseguinte, jurídicas.

É o que se extrai do texto constitucional e do novo texto civilista. Aliás, este além de obrigatoriamente respeitar aquele, copia-lhe os arquétipos, trabalhando com normas abertas, cláusulas gerais, exigindo maior comprometimento dos operadores do Direito, sobretudo no que tange a valoração da regra legal em razão do caso concreto.

Exemplo típico desta nova feição do Direito Civil é o parágrafo único do artigo 927, o qual também se aplica, ainda que subsidiariamente, ao tema em debate.

Art. 927

. Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

O juiz valorará o caso concreto como sendo ou não um caso em que o ofensor se encontra exercendo atividade gravada com riscos. Em caso positivo, passando-se pelo filtro valorativo, o juiz chancelará a responsabilidade do ofensor com o signo objetivo, substituindo a regra geral da responsabilidade subjetiva.

Tem-se, com isso, apoio legal a vítima do dano e, a reboque, o respeito máximo ao ideal de Justiça, diga-se, antes, de igualdade isonômica.

Essa é, pois, a ordem legal atual. Mas, como já se disse, a responsabilidade do transportador, qualquer que seja o modal, muito antes dessa nova ordem, já bebia na fonte inspiradora, evidenciando um tratamento diferenciado desde a época do Brasil-Império.

Isso, embora não surpreendente, enche de orgulho os estudiosos da matéria e os apaixonados pela logística do transporte, atestando a importância da atividade dentro da economia nacional e, principalmente, na construção do Direito pátrio.

Pois bem, mesmo se tratando de tema pacífico, ao menos até o presente ponto, convém tecer alguns comentários a mais, apenas para melhor situar o objetivo acadêmico deste modesto trabalho, abordando, em especial, o contrato de transporte em si.

O contrato de transporte é o instrumento que estabelece o vínculo jurídico entre o transportador e o consignatário das mercadorias transportadas, em regra, proprietário da carga. O embarcador, ou seja, aquele incumbido de embarcar as mercadorias (normalmente o produtor e/o vendedor das mesmas), embora expressamente citado no contrato de transporte, não é parte principal dele, uma vez que ele contrata em benefício do consignatário.

Essa mecânica procedimental é válida para qualquer modal de transporte, marítimo, aéreo, ferroviário e, em particular, rodoviário, também denominado terrestre, alvo da atenção no momento. Observam-se pequenas particularidades e diferenças, não muito significativas, de um instrumento para o outro, sendo certo que o mais flexível de todos é rodoviário.

É denominado Conhecimento de Embarque, Conhecimento de Frete, Conhecimento de Carga, Conhecimento de Transporte e, mais comumente, em se tratando de transporte terrestre, Conhecimento Rodoviário de Transporte de Cargas, comumente identificado pela sigla CRTC.

Nele constam informações básicas e imprescindíveis, tais como a perfeita identificação das partes contratantes e/ou o consignatário da carga, os bens entregues para transporte, condições qualitativas e quantitativas, o motorista do veículo transportador e as placas deste.

No que diz respeito aos bens entregues para transporte, salvo nos casos de vício oculto, a ausência de ressalva, por parte do preposto do transportador rodoviário, quando do recebimento dos mesmos, importa presunção de entrega em perfeito estado, assumindo o transportador, previamente, integral responsabilidade por qualquer anomalia constatada no ato de entrega, como, por exemplo, divergência de peso.

Daí a importância, para o transportador, do carregamento do veículo e do ato de embarque, pois se trata de momento crucial, na medida em que a existência de algum problema, não notado e formalmente identificado, diga-se, ressalvado, pesará em seu desfavor, mediante o dever jurídico de entregar a carga nos exatos moldes recebidos, sendo presumida sua culpa em caso de incompatibilidade de informações entre aquilo que foi carregado e aquilo que foi descarregado no local de destino (artigos 743/748 do Código Civil combinado com os artigos 566 e seguintes do Código Comercial).

Tudo, porque, repita-se por necessário, a obrigação de transporte, qualquer que seja o modal, é uma obrigação de fim, sendo imprescindível, para o aperfeiçoamento, o resultado final e positivo.

O contrato de transporte rodoviário é um típico contrato de adesão. O embarcador e o consignatário submetem-se às cláusulas e condições estabelecidas unilateralmente pelo transportador. Estas cláusulas e condições já vêm impressas no bojo do contrato, não cabendo aos aderentes qualquer disposição de vontade.

Por tal razão é que se diz que mesmo sendo um contrato, o contrato de transporte rodoviário não se ajusta, na sua plenitude, com o primado universal dos contratos que é o da livre manifestação de vontades entre as partes contratantes. Nele, somente prevalece a vontade de um, a do transportador rodoviário.

Relevante importância tem, em termos de nova sistemática civilista, as regras dos artigos 421 e 422 do Código Civil, que tratam, respectivamente, da função social e da boa-fé objetiva no âmago do Direito das Obrigações, dos quais se deflui a idéia de relativização de outro princípio informador, qual seja, o "pacta sunt servanda".

Mas, dentro da já afirmada visão diferenciada, vanguardista, que o Direito brasileiro sempre conferiu a questão da responsabilidade do transportador, há de ser registrado que a inteligência acima mencionada já era sistematicamente observada, mesmo antes das aludidas figuras legais, por conta e ordem da jusfilosofia e, mesmo, da interpretação valorativa do Direito, evitando-se o formalismo pelo formalismo e o detrimento inaceitável da substância.

Por isso é que se afirma, com o sem o influxo de regras legais mais recentes, como a consumerista e o Código Civil, que em termos de contrato de adesão, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que as chamadas cláusulas impressas devem ser interpretadas, preferencialmente, com base na eqüidade, sendo certo que, havendo dúvida, a interpretação deve favorecer a parte que foi obrigada a aderir, minimizando, assim, os efeitos negativos da imposição ditada pelo transportador.

Atualmente, pois e como já referido, a interpretação dos contratos de transportes deve estar imantada da legislação consumerista, haja vista o fato de o transportador rodoviário ser um essencialmente prestador de serviços e o consignatário da carga, ou de quem legalmente lhe fizer às vezes (normalmente em razão de sub-rogação de Direitos), o destinatário (consumidor) final destes serviços. Logo, conforme dispõe o Código de Defesa do Consumidor, eventuais cláusulas abusivas, como as que limitam a responsabilidade do transportador, são tidas como não válidas, juridicamente ineficazes (nulas, em verdade).

O Conhecimento de Transporte Rodoviário serve para registrar as condições pactuadas (ainda que unilateralmente) para determinado transporte, sendo consignada em suas letras, como afirmado acima, entre outros importantes itens, a descrição completa das mercadorias confiadas para o transporte. A lei também confere ao dito instrumento a qualidade de representar a mercadoria nele estampada, sendo, portanto, verdadeiro título de crédito.

Já há quem se insurja contra tal qualidade, nem tanto pela dogmática jurídica, mas por questões de ordem prática, notadamente segurança. Identificar a figura do recebedor com a do efetivo destinatário da carga e resguardar-se contra extravios, furtos e roubos de cargas, vinculando-se bem e especificadamente quem vai receber a carga entregue para o transporte.

Grosso modo, pode-se dizer que a coisa e/ou o bem entregue ao transportador deve estar bem caracterizado pela natureza, valor, peso e quantidade, e tudo o mais o que for necessário para sua perfeita identificação e para que não haja qualquer confusão com outros bens, em logística de transporte, denominados cargas. O destinatário do bem, isto é, seu consignatário deve ser também identificado de forma precisa ou, ao menos, pelo nome e endereço.

Com o recebimento da carga, o transportador emitirá, na melhor forma de Direito, o competente conhecimento, observando-se os dados acima descritos e, ainda, as disposições da legislação específica e aplicável à espécie.

Além de provar a existência do contrato de transporte, o conhecimento é mecanismo de proteção ao próprio transportador, uma vez que ressalvas pelo recebimento de cargas com anomalias devem ser registradas no conhecimento, resguardando direitos e interesses do transportador. Tanto assim que poderá exigir, na forma do parágrafo único do artigo 744, que o remetente lhe entregue, devidamente assinada, a relação discriminada das coisas a serem transportadas, em duas vias, uma das quais por ele devidamente autenticada, integrando o próprio conhecimento.

No mesmo diapasão, poderá o transportador recusar a coisa cuja embalagem seja inadequada, bem como a que possa pôr em risco a saúde das pessoas, ou danificar o veículo e outros bens (artigo 746).

Tanto poder tem o seu revés e mais uma vez se defende que a proteção legal tem que ser exercida no momento oportuno, qual seja, o do recebimento da carga para transporte, pois em não sendo feito isso, o quanto disposto no artigo 746, por exemplo, vai de encontro a defesa do transportador, pois será prova, às avessas, da sua incúria operacional, aceitando transportador um bem, com embalagem imprópria, ou porque desidioso em suas funções de transportador ou porque, ávido pelo lucro, não se quedou a concorrer com o risco.

Vê-se aí, doravante, um forte obstáculo para as costumeiras alegações de vício de embalagem em casos de avarias de bens transportados, pois salvo se o vício não for estritamente oculto e fartamente provado como tal, o transportador não mais poderá se valer dessa causa excludente, porquanto teve a oportunidade concreta e efetiva de evitar o sinistro com amparo taxativo da lei.

Definitivamente, os ventos têm múltiplas direções!

E, vale a pena lembrar, com o perdão pela repetição exaustiva, que o contrato de transporte rodoviário, como todo contrato de transporte, é um contrato de fim, ou seja, aquele em que o resultado positivo da obrigação pactuada é imprescindível para o seu regular aperfeiçoamento enquanto negócio jurídico. Nele, o devedor da obrigação, vincula-se ao resultado propriamente dito e não apenas aos meios para se obtê-lo. Por isso é que também se disse e ora se repete que a ausência de ressalva no conhecimento rodoviário quando do recebimento induz a presunção legítima de que a carga foi entregue em perfeito estado, devendo da mesma forma ser descarregada do veículo transportador, sob pena de culpa ficta do devedor da obrigação de transporte.

Assim, tem nascedouro a idéia de responsabilidade civil do transportador rodoviário, já discutido em parte neste trabalho.

A responsabilidade civil do transportador rodoviário, a exemplo dos transportadores em geral, em seu aspecto contratual e é regida pela teoria objetiva imprópria. A teoria objetiva imprópria é aquela em que a culpa do transportador, como antes afirmado, havendo inadimplemento do contrato de transporte, é sempre presumida.

O transportador, lembrando, só conseguirá eximir-se dessa presunção legal de culpa provando a existência, no caso concreto, de alguma das causas excludentes de responsabilidade previstas pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Iniciando o trabalho, houve-se por bem dispor o arsenal legislativo que disciplina a matéria, comentando-se, com destaque, as novas regras civilistas.

Na oportunidade inaugural, também se houve por bem identificar que a lei brasileira sempre foi inovadora no trato das questões de transporte.

Assim, para melhor compreensão sobre o assunto, há de se discorrer, ainda que sumariamente, sobre a aplicação das regras que efetivamente operam a responsabilidade do transportador rodoviário, apontando a incidência das mesmas, a projeção no tempo e na história e sua utilização nos dias correntes, evidenciando o colorido diferente que a matéria tem em relação ao tema responsabilidade civil como um todo.

A adoção da teoria objetiva imprópria encontra fundamento jurídico no Decreto legislativo (Lei Federal) nº 2.681/12, mais conhecido como "Decreto das Estradas de Ferro" (também "Decreto dos Transportes") e, antes, no Código Comercial, especificamente artigos 101/104. O Decreto legislativo (Lei Federal) nº 2.681/12, aplicável aos transportadores em geral, elaborado no início do século passado, e o Código Comercial, datado da época do Império, foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988, razão pela qual estão em pleno vigor, produzindo todos os efeitos jurídicos a que se destinam, em especial o de regular a responsabilidade civil dos transportadores de bens.

Mais, ainda que não se possa falar num escalonamento de valores e de hierarquia das normas legais, salvo a do texto constitucional em relação ao resto do ordenamento jurídico, pode-se defender, com segurança acadêmica e inegável aplicação prática, que as sobreditas regras foram recepcionadas e abraçadas pela nova ordem civil, publicista por excelência, conforme se vê nas redações dos artigos 730 e seguintes e, ainda, o já mencionado artigo 927, parágrafo único.

Diz o art. 1º do Decreto legislativo (Lei Federal) nº 2.681/12 que: "Art. 1º — será sempre presumida a culpa do transportador". Vê-se nas suas letras inaugurais que o dito dispositivo legal adotou a idéia de responsabilidade objetiva para regrar a situação jurídica dos transportadores — posição vanguardista à época.

A idéia de recepção pelo Código Civil evidencia-se bem no comando extraído do seu artigo 732, que dispõe que aos "contratos de transporte em geral, são aplicáveis, quando couber, desde que não contrariem as disposições deste Código Civil, os preceitos constantes da legislação especial e de tratados e convenções internacionais".

Por isso se defende, com a razão, a plena vigência do decreto dos transportes, como sendo o instrumento legal hábil, sem prejuízo para a aplicação concomitante de outros dispositivos, especialmente o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, perfazendo um complexo sistema de regras para incidirem em uma só situação, sendo a locomotiva do trem jurídico, o Decreto nº 2.681/12.

Referida norma jurídica, pois, foi elaborada, como já se disse, para disciplinar a responsabilidade civil dos transportadores ferroviários, tanto assim que é mais conhecido pela expressão "Decreto das Estradas de Ferro". Há muito tempo, porém, é pacífico o entendimento de ele ser aplicável aos transportadores em geral, entre eles o transportador rodoviário.

A propósito, diz Carlos Roberto Gonçalves[1]: "No direito brasileiro a fonte dessa responsabilidade encontra-se na Lei n. 2.681, de 7 de dezembro de 1912, que regula a responsabilidade civil das estradas de ferro. Tal lei, considerada avançada para a época em que foi promulgada, destinava-se a regular, tão-somente a responsabilidade civil das estradas de ferro.

Inicialmente, referida lei teve a sua aplicação estendida aos bondes elétricos, dada a sua semelhança com os trens. Posteriormente, a idéia foi transferida para os ônibus, automóveis e todas as espécies de transportes, até mesmo os elevadores."

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Antes do advento do mencionado Decreto legislativo, o Código Comercial já regulava a matéria nos seus artigos. 101, 102 e 103, a saber:

Art. 101. A responsabilidade do condutor ou comissário de transportes ou comissário de avarias começa a correr desde o momento em que recebe as fazendas, e só expira depois de efetuada a entrega.

Art. 102. Durante o transporte, corre por conta do dono o risco que as fazendas sofrerem, proveniente de vício próprio, força maior ou caso fortuito. A prova de qualquer dos referidos sinistros incumbe ao condutor ou comissário de transportes.

Art. 103. As perdas ou avarias acontecidas às fazendas durante o transporte, não provindo de alguma das causas designadas no artigo precedente, correm por conta do condutor ou comissário de transportes.

Apenas para melhor situar a compreensão do texto, o novo Código Civil não revogou esta parte do Código Comercial, que continua vigendo e produzindo os efeitos jurídicos estampados em seus enunciados.

Deflui-se dos sobreditos artigos, tão claro como o sol que reluz, que obrigação do transportador rodoviário é, sem dúvida, a de resultado, devendo ele entregar os bens confiados para o transporte em idênticas condições às recebidas, sob pena de se configurar, a rigor, o inadimplemento da obrigação assumida e, com ela, a respectiva responsabilidade. É o que se extrai, também e principalmente, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, ao regrar a prestação de serviços, vícios e defeitos, e, mais recentemente, do Código Civil, que de forma enxuta, precisa e incontroversa prescreve: "Pelo contrato de transporte alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar de um lugar para outro, pessoas ou coisas." (artigo 730)

Vaticinando o entendimento acima esposado e ainda tendo como fundamento legal o Código Civil, invocam-se, em conjunto, dois dispositivos que dispensam maiores comentários a respeito, porque auto-explicativos são os seus conteúdos: O primeiro é o artigo 749 que diz: "O transportador conduzirá a coisa ao seu destino, tomando todas as cautelas necessárias para mantê-la em bom estado e entregá-la no prazo ajustado ou previsto"; e, o segundo artigo é o 750, que versa expressamente sobre a responsabilidade do transportador dispondo: "A responsabilidade do transportador, limitada ao conhecimento, começa no momento em que ele, ou seus prepostos, recebem a coisa; termina quando é entregue ao destinatário, ou depositada em juízo, se aquele não for encontrada".

Ambos dispositivos não possuíam correspondentes no Código Civil de 1916, mais uma razão em que acertou o legislador ao dar a questão dos transportes regramento subsidiário, na forma do já citado artigo 732, evitando possíveis imbróglios jurídicos em face das regras que tratam dos conflitos aparentes de normas.

Como é sabido, a despeito das questões formais ora lançadas, a obrigação nasce de diversas fontes e deve ser cumprida livre e espontaneamente pelo credor. O contrato de transporte rodoviário, por exemplo, é fonte de obrigação específica. Incorrendo o inadimplemento da obrigação pactuada, surge a responsabilidade. Obrigação e responsabilidade são figuras jurídicas afins, porém inconfundíveis. Esta decorre do inadimplemento daquela, sendo considerada a consequência jurídica e patrimonial do descumprimento da relação obrigacional, ato ilícito por essência, conforme prescreve o artigo 186 do Código Civil, o qual, aliás, praticamente bisou o antigo artigo 159.

No instante em que recebe os bens, o transportador rodoviário, como já se afirmou neste trabalho, assume a mesma natureza de um depositário. A natureza de depositário implica dever objetivo de cuidado, nas modalidades guardar, conservar e restituir. Somente com a efetiva e boa entrega dos bens a quem de direito, é que o negócio jurídico a que o transportador estava vinculado se aperfeiçoa, extinguindo-se, pois, a sua responsabilidade. Não sem razão, aliás, que o novel Código Civil, em questão um pouco mais específica, tratou de equiparar expressamente ambos personagens, dispondo, no corpo do artigo 751, que a "coisa, depositada ou guardada nos armazéns do transportador, em virtude do contrato de transporte, rege-se, no que couber, pelas disposições relativas a depósito.".

Havendo qualquer dano nos bens, falta e/ou extravio, é imputada ao transportador a presunção de culpa independentemente de prova (a responsabilidade pelo descumprimento da relação obrigacional), de sublinhar mais uma vez, até mesmo em razão do objetivo deste trabalho que é, sem dúvida, desprestigiar o abuso, verificado no mundo do Direito prático, das alegações de fortuidade, no sentido de que o roubo exclui a responsabilidade objetiva do transportador rodoviário.

Foi dito antes, com outras palavras, que a presunção legal de culpa só poderá ser afastada mediante prova da existência de alguma causa excludente de responsabilidade prevista no rol taxativo do art. 102 do Código Comercial, ou seja: vício de origem, caso fortuito ou força maior. Há, então, inversão do ônus da prova. É a regra esculpida na segunda parte do referido artigo legal e que também se extrai, com tons diferentes, dos demais dispositivos que operam a matéria.

Inverter o ônus da prova, independentemente da controvérsia de se tratar ou não de um mecanismo de operação exclusivo do Juiz, é dizer que o credor do contrato de transporte inadimplido não está obrigado a provar a culpa do devedor, porque legalmente presumida, mas o devedor, entenda-se: transportador, querendo afastar a sua responsabilidade pelo dano, está obrigado a provar a existência de alguma das causas excludentes já mencionadas.

É o que diz a lei e o que entende a doutrina brasileira.

Agostinho Alvim, por exemplo, discorre: "Realmente, a obrigação do transportador é de fim e não de meio. Não se obriga ele a tomar providências e cautelas necessárias para o bom sucesso do transporte; obriga-se pelo fim, isto é, garante o bom êxito. Daí a apreciação rigorosa da sua responsabilidade"[2]

O entendimento do citado autor está consagrado na Jurisprudência brasileira, que há muito pacificou o tema. Rodrigues Alchimin[3], Ilustre magistrado paulista, ao enfrentar um caso concreto dessa natureza, fez da sua Decisão uma preciosa lição que, emblemática, serve para traduzir o pensamento dominante nos Tribunais de todo o Brasil: "Em se tratando de contrato de transporte, é obrigação do transportador conduzir a mercadoria, sem qualquer dano, ao destino. Se a mercadoria, ao término da viagem, apresenta danos, é evidente que o transportador não deu cabal desempenho ao contrato e responde por falta contratual. Daí a conclusão de que a responsabilidade do condutor e do comissário de transporte começa desde o momento em que receberam as mercadorias e só se expira depois que as entregam ("LYON CAEN ET RENAULT", Traité de Droit Commercial, III, 593, SABRUT, Transport des merchandises, nºs. 653 e seguintes), sendo que as perdas ou avarias acontecidas às ditas fazendas correm por sua conta, salvo se provenientes de vício próprio, força maior ou caso fortuito (Código Comercial, arts. 102 e 103)"

Nesse sentido e orientando o seu entendimento especificamente aos transportadores marítimos, mas perfeitamente cabível ao tema objeto em destaque, Luís Felipe Galante[4], advogado fluminense especializado em Direito Marítimo, diz: "O transportador marítimo é responsável pelas avarias ou extravios de mercadorias confiadas ao seu transporte de forma objetiva, isto é independentemente de culpa. Em outras palavras, ocorrendo problemas, ocorrendo problemas com a carga embarcada, ele está a priori obrigado a ressarcir o dono das mercadorias dos prejuízos sofridos, tenha agido ou não com culpa no episódio. Essa obrigação decorre da sua condição de depositário da carga a bordo, pois todo o depositário, como guardião que é da coisa alheia, está obrigado a restituir a coisa depositada tal como ela lhe foi entregue. (Guia Marítimo, 1ª quinzena de abril/97, ano 06, nº 117, São Paulo: 1997)

Na mesma linha de argumentação, com destaque especial, dado o elo emocional destes subscritores com o estudioso ora citado, tem-se o abalizado posicionamento do mui saudoso Rubens Walter Machado [5], advogado paulista também especializado em Direito Marítimo, é muito feliz ao tratar o assunto, ainda que também voltando baterias ao transportador marítimo, sendo certo que tudo que a este cabe, se amolda ao transportador rodoviário, a saber: "Ao transportador, incumbindo-se de transportar mercadorias, cumpre entregá-las ao destinatário no lugar convencionado e no estado e quantidade em que as recebeu, de conformidade com o exposto no art. 519 do Código Comercial: O capitão é considerado verdadeiro depositário da carga e de quaisquer efeitos que receber a bordo, e como tal está obrigado a sua guarda, bom acondicionamento e conservação, e à sua pronta entrega à vista dos conhecimentos. (...) A responsabilidade do capitão a respeito da carga principia a correr desde o momento em que a recebe e continua até o ato da sua entrega no lugar que se houver convencionado, ou que estiver em uso no porto de descarga. (...) Não o fazendo, cumpre-lhe, também, o ônus da prova para elidir a sua responsabilidade pelo inadimplemento do contrato firmado. (...) Sua responsabilidade é, portanto, sempre presumida, amparada pela teoria da culpa sem prova, que tem seu nascedouro na infração das regras pré-estabelecidas da obrigação em si, tal qual dispõe o art. 1.056 do Código Civil, responsabilidade essa que se origina não da culpa aquiliana, mas, sim, do contrato firmado. (...) É presumida a culpa do transportador por motivos óbvios de lógica jurídica, e sua caracterização — tal qual um depositário — predomina nas obrigações de guardar, conservar e restituir

Os dizeres do eternamente estimado Mestre Rubens Walter Machado, enfatizam bem o conceito de responsabilidade objetiva (contratual) e consagram a idéia da culpa presumida, institutos estes afetos a todo transportador, ora com enfoque ao rodoviário, equiparado de fato e de direito com o depositário.

O contrato de transporte, pois, reclama, ainda que às avessas e/ou de forma indireta, o de depósito, não existindo aquele sem que, no plano dos fatos, dos acontecimentos do mundo, tenha havido, antes, este. Nesse sentido, há de se lembrar o quanto disposto no artigo 751 do Código Civil, sem correspondente no Código de 1916, que vaticinou definitivamente a idéia de equiparação máxima entre transportador e depositário.

Afinidade tal que se extrai dos deveres jurídicos de guardar, conservar e restituir, pouca coisa havendo, no mundo dos fatos, a justificar a inobservância de tão rigorosos e inflexíveis deveres.

Por curiosidade, há de se registrar que não só o sistema legal brasileiro conferiu, desde sempre, tratamento rigoroso ao transportador de coisas e bens. De um modo geral, os vários ordenamentos jurídicos espalhados pelo mundo assim se pautam, como, por exemplo, o Direito Italiano, cujo Código Civil, em seu artigo 1693, denominado Responsabilidade pela perda e avaria, assim prescreve: "O transportador é responsável pela perda e pela avaria das coisas a ele entregues para transporte, desde o momento em que as recebe até aquele em que as entrega ao destinatário, se não provar que a perda ou a avaria teve lugar por caso fortuito, pela natureza ou vício da própria coisa ou da sua embalagem, ou de ato do remetente ou de ato do destinatário. Se o transportador aceitar as coisas que devem ser transportadas sem reserva, presumir-se-á que as próprias coisas não apresentam vícios de embalagem."

Finalizando esta primeira fase de abordagem do tema e em homenagem a síntese, sobre todo o exposto, pode-se dizer o seguinte, resumindo os assuntos básicos em tópicos:

1. a responsabilidade civil dos transportadores rodoviários, quando de natureza contratual, é, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, ditada pela teoria objetiva imprópria, aquela em que a sua culpa, em caso de inadimplemento do contrato, é sempre presumida;

2. a presunção legal de culpa, segundo o entendimento do Direito brasileiro, é tão inequívoca que alcança os atos praticados pelos empregados e prepostos dos transportadores rodoviários, em especial os caminhoneiros responsáveis pela condução dos veículos transportadores;

3. o transportador rodoviário tem a obrigação de zelar pelo bem confiado para o transporte tal e qual um depositário, sendo os seus deveres os de guardar, conservar e restituir o bem em condição idêntica a recebida;

4. o contrato de transporte rodoviário só se aperfeiçoa com a perfeita entrega dos bens dados contratualmente para o transporte a quem de direito. Não havendo o adimplemento dessa obrigação, há a presunção legal de culpa do transportador, devendo ele responder pelos prejuízos decorrentes, salvo se conseguir provar, no caso concreto, a existência de alguma das causas legais excludentes de responsabilidade;

E é na arena das causas legais excludentes de responsabilidade que se funda a segunda parte deste trabalho, pois exatamente nela residem as grandes discussões acadêmicas sobre a matéria, discussões estas com reflexos diretos no exercício prático do cotidiano forense, havendo, a justaposição da "law in books" com a "law in action".

Três são as causas excludentes de responsabilidade previstas no ordenamento jurídico brasileiro, especificamente no artigo 102 do Código Comercial, a saber: vício de origem, força maior e caso fortuito.

Tendo-se em conta a vastidão da matéria, a presente abordagem se resumirá ao caso fortuito, ou melhor, a não aceitação do roubo da carga como sendo fenômeno tipificador da causa excludente de responsabilidade em destaque.

Força maior e caso fortuito, são as causas excludentes de responsabilidade mais alegadas pelos transportadores rodoviários e as que são objeto das maiores discussões, sobretudo no plano das lides forenses. Referidas causas fazem parte do gênero fortuidade, sendo diferentes, apenas, no que diz respeito ao agente causador. Explica-se: enquanto na força maior o agente causador é a natureza, no caso fortuito, o agente é o ser-humano.

Há quem considere caso fortuito e força maior expressões sinônimas, sem distinção de qualquer natureza, uma vez que o que é relevante ao ordenamento jurídico é a projeção dos efeitos legais e concretos de um e de outro e que são praticamente os mesmos.

Operando-se o gênero, fortuidade, é possível compreender melhor os institutos e postulados que regem as espécies, força maior e caso fortuito e este último em especial.

Por caso fortuito, ou força maior, tem-se os fatos imprevisíveis, inevitáveis e irresistíveis, que vencem a normal diligência e perícia que se pode razoavelmente esperar do transportador.

São, no dizer de Pedro Calmon Filho[6], "os fatos inesperados que ultrapassam a capacidade do homem de prevenir contra um perigo não normalmente esperado, ou lhe fazer face depois de deflagrado."

O caso fortuito, segundo o entendimento dado pelo Direito brasileiro, é o fato relevante ao mundo jurídico e que foi provocado pela conduta humana. A conduta humana, por sua vez, é entendida como toda ação ou omissão finalisticamente orientada para um dado resultado e que, inserida em um certo contexto fático, interessa ao Direito. Também se fala em conduta involuntária, mas que deságua no mesmo resultado final.

A força maior, por seu turno, é o evento da natureza não esperado, totalmente imprevisível e de força irresistível. É o fato que não depende da conduta humana, superando-a em todos os seus limites. É algo que acontece no mundo concreto, um verdadeiro e devastador happening, ou seja, um fenômeno invencível e que produz efeitos relevantes ao mundo jurídico.

Muito importante observar que a fortuidade reclama os requisitos imprevisibilidade, inesperabilidade e irresistibilidade. São, aliás, requisitos concorrentes e imprescindíveis. Explicando melhor: para haver a fortuidade, faz-se necessária a prova no sentido de ter existido, no caso concreto e ao mesmo tempo, a incidência das três condições. Significa dizer que o transportador rodoviário para se valer da fortuidade precisa provar que o fato que o envolveu foi, ao mesmo tempo, imprevisível, irresistível e inesperado.

Em outros termos, sendo que as repetições são propositais só para se sublinhar a essência maior do tema: a falta de apenas um dos requisitos em destaque tem o condão de afastar eventual caracterização de fortuidade. A força maior e o caso fortuito só existem se existirem os referidos três requisitos, capazes de superar os limites máximos de cuidado do transportador rodoviário em relação aos bens sob sua custódia.

A falta de apenas um deles é o bastante para se ter afastada qualquer pretensão no sentido de se caracterizar a fortuidade. É de vital significado, ter-se como postulado esse entendimento, porque é muito comum os transportadores alegarem, diante dos casos concretos, fortuidade com base em apenas um dos referidos requisitos.

Logo, bem se trabalhando o conceito de fortuidade, é muito difícil, para não dizer impossível, haver, nos dias atuais, um caso concreto em que um veículo transportador, qualquer que seja o modal, no curso de um trajeto, venha a ser colhido por um fato, ao mesmo tempo, inesperado, imprevisível e irresistível.

A questão, bom observar, está praticamente pacificada no Tribunais brasileiros, subsistindo dúvidas não mais ao aspecto jurídico da matéria, mas, sim, quanto ao aspecto fático, vale dizer, se determinado acontecimento é ou não é um fato merecedor de ser amparado pela fortuidade.

No que se refere especificamente ao caso fortuito, a dificuldade de apreciação persiste apenas no fato de se constatar se um sinistro foi ou não objeto de sua incidência, ou seja, se ele está realmente acobertado pelo requisitos inafastáveis para a caracterização da excludente legal, ou seja, se a conduta humana, fato de terceiro a rigor, ajusta-se ou não a figura legal excludente.

Das condutas humanas que mais ensejam, por parte dos transportadores, invocações de fortuidade tem-se o roubo de cargas, verdadeiro drama da logística de transporte no Brasil e um dos itens negativos que mais faz crescer o risco-Brasil e, em linguagem mercadológica, o chamado custo-Brasil.

O roubo, tipo penal previsto no artigo 157 do Código Penal brasileiro, está inserido no capítulo reservado aos crimes contra o patrimônio. É, em verdade, um crime complexo, vez que comporta institutos próprios dos crimes contra o patrimônio e outros afetos aos crimes contra a pessoa. Aliás, sob a ótica da dogmática penal, é o mais emblemático exemplo de crime complexo.

É comum aos leigos tratarem o roubo e o furto como expressões sinônimas. Mas, como sabem os operadores do Direito, furto e roubo não são definitivamente a mesma coisa. Além de estarem previstos em tipos penais diferentes, a natureza jurídica e a essência conceitual deles também são distintas.

Simples entender: o furto é a subtração da coisa alheia sem violência e/ou grave ameaça; o roubo também é a subtração da coisa alheia móvel, mas com violência e/ou grave ameaça. Reside nestes dois últimos itens o seio das alegações dos transportadores rodoviários, haja vista, segundo o entendimento deles e, em princípio, somente em princípio, aceitável, a presença do item irresistibilidade.

Ora, os objetos jurídicos do roubo são vários: posse, propriedade, integridade física, saúde e liberdade individual, daí a razão de o roubo ser considerado um crime complexo. Diante do estudo do tipo penal roubo, cabe a seguinte indagação: é o roubo um fato capaz de caracterizar a excludente de responsabilidade do transportador em razão de inadimplemento contratual?

A mesma indagação, só que em outros termos: há ou não caso fortuito a beneficiar o transportador rodoviário vítima do roubo?

Muitos ainda entendem que o roubo, como fato caracterizador da fortuidade, afasta a responsabilidade do transportador rodoviário pelo eventual inadimplemento contratual. Os que defendem esse posicionamento, fazem-no sedimentados no pressuposto de o transportador rodoviário não se ter desviado das cautelas e precauções a que está obrigado, porquanto o roubo é acontecimento, senão rigorosamente inevitável e/ou imprevisível, é, no mínimo, fato irresistível, rodeado de elevada periculosidade à integridade física da vítima, no caso o preposto do transportador rodoviário.

Mais: para os partidários dessa posição (que ora se pretende combater) não há que se falar em eventual previsibilidade da ocorrência do evento, pois o roubo é, por essência e natureza, um fato imprevisível e inesperado, uma vez que o transportador não sabe exatamente quando e onde será vítima de roubo. Trata-se de uma tese sedutora, é verdade, porém totalmente distanciada do dinamismo das relações sociais e das constantes mudanças do Direito, o que faz dela refém de seus próprios fundamentos.

Hoje, o roubo de cargas de caminhões é um fenômeno habitual e constante no Brasil. Para se ter uma idéia do quão comum, portanto previsível e esperado, é o roubo de cargas, poucas seguradoras se atrevem a celebrar seguro de transporte rodoviário e quando celebram, estipulam prêmio elevado, já que elevado também é o risco e o grau de sinistralidade.

O roubo, portanto, deixou de ser evento esporádico e eventual, tornando-se comum, previsível e esperado. Todo aquele que transporta cargas comerciais por via terrestre sabe que pode ser vítima de roubo a qualquer tempo, momento e lugar.

Em suma, diante da infeliz constatação, oficialmente apurada e inquestionável, de que o roubo de cargas rodoviárias é evento comum, é coerente imaginar que um evento dessa envergadura poderá ocorrer a qualquer tempo e em qualquer lugar, razão pela qual é correto falar em previsibilidade e, falando-se em previsibilidade, impossibilidade de caracterização de fortuidade, entenda-se: excludente legal de responsabilidade.

Com efeito, o fato dessa modalidade de crime ser muito freqüente em todas as estradas e rodovias do Brasil, impede o amoldamento do roubo a figura da fortuidade, sendo previsível e até certo ponto esperada a sua ocorrência, autorizando a afirmação de que, por si só, impede o benefício legal do caso fortuito.

Vai-se mais além: ainda que o local onde se deu o roubo não seja, costumeiramente, palco de crimes, o contexto geral de violência e criminalidade que imperam hoje no mundo, especialmente no Brasil, são critérios suficientes para a caracterização do requisito previsibilidade. Afinal, todo aquele que se dispõe a transportar mercadorias, bens e valores deve estar preparado para as mais adversas situações, assumindo o risco em face da inequívoca previsibilidade delas ocorrerem. O roubo, após o furto, é, com toda a certeza, uma das principais ocorrências a que se tem previsibilidade em se tratando deste tipo de atividade comercial.

Ademais, trata-se de regra elementar do Direito, que aquele que tem um determinado benefício numa dada relação negocial deve arcar com o ônus decorrente da mesma. Nesse sentido, convém trazer a colação importante lição extraída do Direito Comparado, notadamente, do direito norte-americano, através de máxima de eqüidade do Capítulo 49, do Revised Code, do Tribunal de Montana[7]:

§ 101: The maxims of jurisprudence hereinafter set forth are intended not to qualify any of the foregoing provisions of this code, but to aid in their just application. [As máximas de Direito a seguir apresentadas não se destinam a qualificar quaisquer dispositivos precedentes deste Código, mas auxiliar na sua justa aplicação.]

§ 109: No one can take advantage of this own wrong. [A ninguém é lícito beneficiar-se da própria torpeza].

§ 113: He who takes the benefit must bear the burden. [Quem se beneficia deve suportar o ônus.]

§ 118: No man is responsible for that which no man can control. [Ninguém é responsável pelo o que não possa controlar.]

§ 120: The law respects form less tan substance. [O direito respeita a forma menos que a substância.]

A máxima § 118 aparentemente pode ser invocada pelos transportadores vítimas de roubos. Leitura atenciosa e contextualizada, porém, demonstra que mesmo essa máxima fere qualquer pretensão em tal sentido, conquanto é de se observar que no mundo dos fatos os transportadores têm, sim, condições de sobrar de controlar o roubo, evitando-o ou, no mínimo, minimizando seus efeitos nocivos.

Para tanto é que se houve por bem reproduzir a máxima § 120, tendo-se em conta que a substância, em Direito, é sempre preferível a forma, não obstante a importância inquestionável desta. Aliás, em tal sentido, é que se tem a seguinte ilustração: entre a lei e o Direito, este. Entre o Direito e a Justiça, a Justiça.

Deixar de considerar o roubo como sendo causa excludente de responsabilidade, caso fortuito, é, sem dúvida, observar os mais importantes postulados do Direito e, conseqüentemente, operar a Justiça, evitando prejuízos à quem menos deve suportá-lo, ou seja, o consumidor do serviço de transporte, o credor da obrigação de transporte, sobretudo nestes tempos em que se tem como estrela maior da constelação legal, um diploma como o Código de Proteção e Defesa do Consumidor e uma ordem civil publicista, de inegável cunho social, uma ordem cujo valor maior transcende o conceito de segurança jurídica, desaguando na promoção férrea da Justiça.

Dentro da mecânica em destaque, necessariamente vista com as lentes da legislação consumerista, tem-se que o transportador recebe o benefício maior, o lucro, para operar um serviço cujo risco é único e exclusivamente seu. Daí que nada, salvo aquilo que merecer, a um só tempo, os signos de imprevisível, inesperado e irresistível, pode ser considerado como causa excludente de responsabilidade.

Se o evento for previsível ou, ao menos, esperado, impossível falar-se em inevitabilidade. No máximo, pode-se falar em irresistibilidade, pois a ninguém é dado expor a risco a própria vida. Entretanto, como exaustivamente visto, a irresistibilidade não tem, sozinha, o fito de impor a fortuidade, uma vez que o evento que a originou era, como em regra é, previsível e esperado.

Quem transporta bens até pode alegar que não sabe quando, onde e como poderá ser roubado. Entretanto, em face da frieza dos números e dos acontecimentos amplamente notórios e sabidos, lhe é impossível alegar desconhecimento acerca das chances reais, concretas, de que poderá, sim, ser vítima de roubo.

Daí o controle da situação, mediante a adoção de instrumentos de defesa, proteção, precaução, enfim, tudo aquilo que se faz necessário para evitar, de todo o modo, o roubo ou, no mínimo, nunca é demais repetir, dificultá-lo sobremodo ou minimizar seus efeitos danosos.

Os Juízos e Tribunais brasileiros, de uns tempos para cá, em que pese a polêmica que gravita em torno do tema, têm-se orientado um pouco mais favoráveis ao não reconhecimento do roubo como uma causa excludente de responsabilidade do que em tempos passados.

Para que o transportador possa efetivamente se valer da chancela da fortuidade, é preciso provar, em seu favor, a ocorrência dos itens imprevisibilidade, inevitabilidade e irresistibilidade, todos a um só tempo (o que é muito difícil, senão impossível) e, mais, residindo neste ponto a novidade salutar da prova de o transportador não ter havido com máximo zelo e cautela quanto a perfeita e objetiva adoção de sistemas de proteção e vigilância dos bens sob os seus cuidados.

Entender que o roubo ainda configura fortuidade é, com todo e máximo respeito, ater-se posicionamento equivocado e ultrapassado, além de manifestamente injusto, por reclamar institutos próprios da responsabilidade civil subjetiva no âmbito da responsabilidade objetiva. Afinal, o fato de o transportador ter ou não diligenciado seus misteres com cuidado é irrelevante diante do inadimplemento contratual, este sim o item de verdadeira importância a ser operado no caso concreto.

A diligência em destaque é o mínimo que se espera do transportador rodoviário, principalmente nestes tempos em que o roubo deixou de ser fenômeno imprevisível e esperado, da mesma forma que técnicas de contenção e/ou diminuição dos riscos também foram e continuam a ser desenvolvidas em profusão.

O roubo, definitivamente, não é um fato que implica caso fortuito, sendo impossível o seu reconhecimento enquanto causa legal excludente de responsabilidade por inadimplemento do contrato de transporte rodoviário. Se o transportador foi roubado, deve arcar com os prejuízos decorrentes do evento danoso.

Não se pode mais aceitar, como válido, o entendimento de que o roubo ainda constitui exemplo de caso fortuito e, portanto, causa enumerada pela lei para exonerar a responsabilidade do transportador rodoviário em caso de falta total ou parcial (extravio) da carga confiada contratualmente para transporte.

Os defensores da mencionada tese se esquecem do fato de a mesma, por via reflexa, espancar o conceito de fortuidade. Claro, uma vez que se faz necessário tomar providências e cuidados para se evitar o roubo, é correto entender que este é previsível, ou mesmo esperado, fatos inibidores da caracterização da excludente.

Assim colocada a questão, não pode o roubo ser entendido como um fato caracterizador de caso fortuito por lhe faltar requisitos imprescindíveis a sua existência, em especial: a imprevisibilidade e a inesperabilidade. Não é ocioso, tampouco demais repetir, todo aquele que se dispõe a transportar mercadorias e valores sabe que, a qualquer momento, pode vir a ser vítima de um roubo ou de um furto, daí a razão de ser dos referidos cuidados a que tanto se reporta a jurisprudência.

Tem-se isso como certo e valioso porque os elevados índices de criminalidade existentes hoje, em quase todo o mundo, e, em especial no Brasil, servem como indicadores seguros da previsibilidade de ocorrer o fato indesejável, porém fartamente existente no mundo dos fatos. Não é só: há lugares no Brasil em que os atos criminosos em tal sentido acontecem com lastimável freqüência, sendo, inclusive, alvos de amplo noticiário, transcendendo os limites da mera previsibilidade para adentrar naqueles pertinentes a esperabilidade.

Resumindo: não há como entender, hoje em dia, o roubo como caso fortuito, uma vez que é um fato previsível, quando não esperado, devendo o transportador marítimo, em consequência, acautelar-se, ainda mais, contra a sua ocorrência e, não sendo possível, responder pelo inadimplemento contratual.

O roubo não elide o inadimplemento contratual que continua subsistindo, nem exime o dever jurídico de reembolsar terceiro prejudicado. Este é um entendimento embasado na lei, sobretudo, nos princípios gerais do Direito, destacando-se, entre estes, o da Eqüidade.

Nesse sentido, mais uma vez se invoca o Direito comparada a fim de demonstrar o equilíbrio que se espera na aplicação de uma dada regra legal, não só em relação ao suporte fático do caso concreto, mas, em essência, ao conteúdo emblemático e social que se extrai do Direito em prático.

Tem-se, pois, a aplicação do princípio do Verhältnismässigkeitsmaxime, extraído do magnífico direito Alemão.

Este princípio, o Verhältnismässigkeitsmaxime, pode ser traduzido como o princípio da proporcionalidade. Trata-se de um princípio que se constitui num verdadeiro mecanismo de calibragem, ou seja, uma aplicação civilista da famosa teoria dos freios e contrapesos do Direito Constitucional.

A teoria dos freios e contrapesos é normalmente atrelada a idéia de harmonia e interdependência das três funções estatais. Mas é também uma teoria que, guardadas as devidas proporções e feitas as necessárias adaptações à luz da dogmática jurídica, se espraia por todas as disciplinas do Direito, até mesmo para o ramo do Direito das Obrigações.

Tudo, aliás, por conta e ordem da razoabilidade da ordenança jurídica e da boa tradução do Direito em tese para o Direito em prática, e, em razão última, a busca efetiva pelo Justo, pelo ético.

O princípio da proporcionalidade não se encontra expressamente registrado no texto constitucional, ao contrário de outros ordenamentos jurídicos espalhados pelo mundo, como o caso da Constituição de Portugal. Mesmo assim é considerado de índole constitucional, já que implicitamente previsto no texto maior.

Dá-se isso porque a não previsão expressa não impede o seu reconhecimento, já que sua imposição é natural em relação a qualquer sistema legal que trabalhe com os chamados direitos e garantias fundamentais. Não há, com efeito, Estado democrático algum que não observe, ainda que veladamente, o aludido princípio, cujo propósito maior é influenciar a aplicação de todos os demais princípios gerais do Direito e dos princípios constitucionais, como um pêndulo de equilíbrio, espalhando-se por todas as demais regras do sistema.

Ninguém melhor do que o brilhante RIZATTO NUNES para falar do referido princípio, legando: "Esse princípio da proporcionalidade, novo na doutrina constitucionalista, tem servido, de fato, como vetor orientador do intérprete constitucional. Na verdade, foi da experiência concreta dos casos interpretados, nos quais surgiram conflitos de princípios, que a doutrina pôde extrair-lhe a essência para declara-lo existente — e, chegando, como visto, ao status de princípio constitucional expresso."[8]

E, prossegue o professor RIZATTO NUNES, ensinando que: "Isso se deu e se dá porque o princípio da proporcionalidade se impõe como instrumento de resolução aparente do conflito de princípios. Quando um intérprete se depara com uma circunstância na qual um princípio colide com outro, um dos principais meios de que ele pode se utilizar para solucionar o problema é, exatamente, o princípio da proporcionalidade — quer ele declare, quer não; que tenha consciência disso ou não."[9]

Ora, valendo-se do raciocínio a fortiori, pode-se dizer que o que serve para o mais, serve para o menos. Se o aludido princípio serve para solucionar conflitos entre princípios, com mais razão serve para solucionar o enquadramento de um fenômeno fático com a regra legal, de tal sorte que também se afirma, com a certeza dos justos, que, hoje, o roubo não mais se ajusta ao conceito de caso fortuito e, por conseguinte, ao benefício da exclusão de responsabilidade, porquanto a equidade e a proporcionalidade das relações jurídico-contratuais rezam a absorção máxima do prejuízo ao transportador rodoviário.

O posicionamento acima defendido vem ao encontro do quanto disposto em outro princípio, supraconstitucional, que é o Princípio do acesso a uma ordem jurídica justa e em tempo razoável, desenhado na Carta de San José, da qual o Brasil foi signatário e inserido, na forma legal, no ordenamento jurídico constitucional pátrio através de ratificação do Congresso Nacional.

Este princípio aberto, mas de elevado conteúdo semântico, dispõe a justeza que evidentemente deve acompanhar toda e qualquer decisão jurisdicional. O cotejo, pois, da essência deste princípio com a do princípio da proporcionalidade, autoriza ao intérprete uma nova leitura das regras que tratam da fortuidade, sobretudo quando levadas em consideração ao caso concreto.

Nada melhor do que a brilhante teoria tridimensional do Eminente Professor Miguel Reale para justificar a nova e correta inteligência que tem que se dar ao fenômeno roubo.

Partindo-se do pressuposto de ser o Direito uma realidade trivalente, implicando fato, valor e norma, cumpre ao operador do Direito, em especial, identificar corretamente o fato, a norma que irá incidir sobre o mesmo, dando, pois, a devida valoração em termos de aplicação do sistema legal posto em razão da busca do que é certo, do que é justo.

Hoje, aos fenômenos roubo e fortuidade não se podem dar os mesmos significados dados no passado. Os roubos deixaram de ser exceções e se tornaram praticamente as regras da logística do transporte. Antes, o roubo era algo imprevisível, embora relativamente esperado, conforme demonstra a história desde os tempos medievais. Hoje, prevê-se a possibilidade de roubo a ponto de a incidência freqüente do mesmo desmotivar a atuação empresarial de seguradoras e, ainda, alimentar uma poderosa indústria de proteção que se instaura país afora. Impossível, portanto, a valoração do roubo com a fortuidade, pois os fatos da vida já não são os mesmos.

E se o fato mudou a norma, embora continue rigorosamente a mesma, deve ser aplicada de forma diferente, homenageando-se o correto valor a ser atribuído.

No dizer do grande Mestre MIGUEL REALE: "Mas acontece que a norma jurídica está imersa no mundo da vida, ou seja, na nossa vivência cotidiana, no nosso ordinário modo de ver e apreciar as coisas. Ora, o mundo da vida muda. Então acontece uma coisa que é muito importante e surpreendente: uma norma jurídica, sem sofrer qualquer mudança gráfica, uma norma do Código Civil ou do Código Comercial, sem ter a alteração alguma de uma vírgula passa a significar outra coisa."[10]

E é significativo registrar que o que se advoga neste modesto trabalho é ainda mais simples do que aquilo que ensina o Ilustre Mestre de todos, na medida em que além dos fatos da vida e da valoração, a própria norma mudou, diretamente ou através de interpretação sistêmica, já que o arcabouço jurídico brasileiro deixou de lados os grilhões e espartilhos da interpretação e aplicação literal, formalística, dando espaço a uma maneira mais inteligente e arejada de se contextualizar o mundo do Direito, premiando o sentimento de Justiça em lugar de uma exagerada e obtusa idéia de segurança jurídica.

A lição do não menos brilhante e já saudoso PONTES DE MIRANDA bem sinaliza o que ora se pretende transmitir como a melhor visão para o tema:

"Os sistemas jurídicos são sistemas lógicos, compostos de proposições que se referem a situações da vida, criadas pelos interesses mais diversos. Essas proposições, regras jurídicas, prevêem (ou vêem) que tais situações ocorrem, e incidem sobre elas, como se as marcassem. (...) Mediante essas regras, consegue o homem diminuir, de muito, o arbitrário da vida social, e a desordem dos interesses, o tumultuário dos movimentos humanos à cata do que deseja, ou do que lhe satisfaz algum apetite" [11]

Extremamente precisa a lição do saudoso Professor. O Direito existe para regular os fatos da vida, harmonizando o convívio social e distribuindo o Justo, aquele sentimento inerente a natureza humana e que pode ser comparado, em termos metafísicos, com o equilíbrio universal entre as forças da ordem e do caos. Não é só: as palavras do famoso tratadista enfatizam, e bem, a idéia de a regra jurídica ser parte da norma jurídica e esta, do contexto jurídico. A soma dos contextos jurídicos, levada a efeito dentro de uma razão lógica, faz surgir o sistema jurídico e o conjunto de sistemas, isto é, o próprio Direito.

Daí a afirmação, primeira, que os ensinamento de PONTES DE MIRANDA, neste caso em particular, harmonizam-se bem aos de MIGUEL REALE, como estrelas de uma mesma orquestra, grandiosa, cintilante, cujos sons da sapiência encantam à todos aqueles que se dispõem a ouvir a melhor melodia do Direito.

E fazer uso das palavras dos grandes Mestres para a defesa de uma idéia é, em verdade, ousadia. Mas em estando certa a linha de argumentação, trata-se tal ousadia no grande fundamento de validade, a legitimação moral da proposta, que encerra de vez o debate e que demonstra, com a clareza dos sábios, a exatidão em não mais se considerar o roubo como sendo fortuidade.

A valoração da norma conforme os fatos cambiários da vida é a única maneira, observando-se os princípios da proporcionalidade, de se equacionar segurança jurídica com espírito de Justiça.

Mais uma vez, invoca-se o magistério de PONTES DE MIRANDA, através do seguinte e abalizado comentário:

"As proposições jurídicas não são diferentes de outras proposições: empregam-se conceitos, para que se possa assegurar que, ocorrendo a, se terá a'',. Seria impossível chegar-se até aí, sem que os conceitos jurídicos não correspondessem fatos da vida, ainda quando esses fatos da vida seja criados pelo pensamento humano. No fundo, a função social do direito é dar valores a interesses, a bens da vida, e regular-lhes a distribuição entre os homens. Sofre o influxo de outros processos sociais mais renovadores; de modo que desempenha, no campo da ação social, papel semelhante ao da ciência, no campo do pensamento. Esse ponto é da maior importância."[12]

É claro que a relação fatos da vida e regra jurídica é o postulado maior do Direito e a fonte de toda a produção legislativa. É claro, também, que os fatos da vida são infinitos e oriundos dos mais diferentes planos existenciais, razões estas que os fazem objetos de constantes e velozes transformações, quando não abruptas. E por serem tão mutáveis é que muito atento deve estar o Direito, para, sempre, estar devidamente apto a se manifestar no sentido de oferecer, ao caso concreto, a melhor e correta resposta.

Lastreado nesse entendimento e na importância de se observar a mutação do contexto fático e o influxo, no Direito, de outras áreas do saber humano, bem como visando acrescentar um pouco mais de celeuma à dogmática da responsabilidade civil dos transportadores, homenageando, para tanto, institutos afetos a responsabilidade civil em geral, especialmente a correta noção de "risco inerente a atividade" e o princípio da proporcionalidade, é o entendimento que, nos dias atuais, a teoria objetiva imprópria faz não mais reconhecer o roubo, fato previsível e esperado, como causa legal excludente de responsabilidade.

Para que a defesa em destaque tenha pilares de sustentação ainda mais sólidos, comentários técnicos, próprios da logística dos transportes, passam a ser somados aos conceitos jurídicos, conferindo áurea de autenticidade e força a afirmação, repetida e bisada, no sentido de que o roubo, previsível, esperado e relativamente resistível, não pode mais se amoldar a definição de fortuidade.

A saber:

Resumidamente, estas foram as idéias sustentadas até o presente momento no plano estritamente jurídico:

Como se está discorrendo desde o início deste modesto trabalho, o extravio da carga confiada para transporte é grave modalidade de falta contratual, na medida em que caracteriza a desídia do transportador, equiparado, como já se disse mais de uma vez, em suas funções regular a um depositário (deveres legais/contratuais de guardar, conservar e restituir).

Fazendo-se um breve resumo de tudo o quanto ora defendido, pode-se afirmar, com segurança, que aquele que se ocupa de transportar bens, deve ter em relação aos mesmos, máximo cuidado, sendo objetivos os seus deveres e sua responsabilidade Dá-se isso porque tanto a responsabilidade do transportador ser regrada, como várias vezes afirmado, pela teoria objetiva imprópria, que prevê presunção legal de culpa pelo inadimplemento do contrato de transporte, como pelo fato da atividade desenvolvida lhe impor o ônus de suportar os prejuízos ocorridos à carga sob sua custódia.

A parte, beneficiada comercialmente pelo contrato, deve indenizar os prejuízos (que nem precisam ser comprovados, posto serem presumidos) à parte onerada, sendo que o novo Código Civil retira, bisando o que já se tinha fixado pela legislação infraconstitucional, ainda, o ônus do lesado provar que o inadimplente agiu com culpa, bastando que se caracterize o dano e o nexo de causalidade para que surja o dever de indenizar.

Trata-se, pois, do já citado e ora reproduzido artigo 927, com especial ênfase ao seu parágrafo único, que consagra o postulado da atividade de risco:

"Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".

Ainda na seara exclusivamente jurídica, significa dizer que a inexecução de suas obrigações contratuais e/ou dos seus deveres jurídicos importa a idéia de culpa presumida, cabendo a mesma, enquanto transportadora inadimplente, querendo e sendo o caso, provar a existência de alguma causa legal excludente de responsabilidade, caso fortuito, força maior ou vício de origem, mediante inversão do onus probandi.

Ora, para que se possa ter a fortuidade (diga-se: exclusão de presunção legal de culpa pela quebra do contrato de transporte, mediante inversão do ônus da prova), é imprescindível que o evento supostamente fortuito esteja, no caso concreto, revestido concomitantemente dos seguintes requisitos: imprevisibilidade, inesperabilidade (ou inevitabilidade) e irresistibilidade.

A ausência de um só destes requisitos fulmina, a talho de foice, qualquer tentativa de sustentação do eventual benefício legal de exclusão de responsabilidade, dado o rigor com que o ordenamento jurídico brasileiro, mesmo antes do advento da lei do consumidor, trata o tema "inexecução das obrigações contratuais".

Convém citar a redação do artigo 749 do Código Civil, já mencionado, para melhor fixar a proposta de trabalhando, destacando-se a parte que diz: "tomando todas as cautelas necessárias para mantê-la em bom estado". Esta disposição é equivalente a do artigo 99 do Código Comercial e evidencia, definitivamente, o dever que tem o transportador de sempre acautelar-se, contra tudo e contra todos, para a boa execução do transporte das cargas.

Também já houve neste mesmo arrazoado a oportunidade de se afirmar que ao transportador rodoviário, enquanto prestador de serviço chancelado com o signo de relação de consumo, prescreve o ordenamento jurídico brasileiro de tratamento diferenciado e ainda mais rigoroso, harmonizado com a idéia de direitos de terceira geração.

Em definitiva síntese: a obrigação do transportador rodoviário é a de entregar as cargas confiadas contratualmente para o transporte nas mesmas e perfeitas condições recebidas. Não o fazendo, caracterizada estará, ao menos a priori, a responsabilidade da mesma pelo contrato inadimplido (não aperfeiçoamento do contrato).

Sobre os aspectos estritamente técnicos, de logística aplicada, tem-se as importantes consideração, as quais influenciam, sobremaneira, a valoração do binômio fato-norma.

Para tanto, toma-se emprestado, em alguns momentos quase que literalmente, o magnífico trabalho de AUGUSTO HAUBER GAMEIRO in A DEMANDA POR SEGURO E O ROUBO DE CARGAS NO TRANSPORTE RODOVIÁRIO BRASILEIRO.

Trata-se, pois, de um trabalho técnico, idôneo, imparcial, produzido por especialista no assunto e publicado pela renomada e respeitável FUNENSEG – Fundação Escola Nacional de Seguros, em sua publicação regular Cadernos de Seguros.

O trabalho de HAUBER GAMEIRO é tido como importante, porque recente e atualizado, para a construção de argumentos jurídicos ora sustentados, estes também lastreados na experiência forense, nas lides envolvendo o tema em destaque.

Feitos o devidos e justos créditos, enaltecendo-se o trabalho em alguns momentos integralmente reproduzido, passa-se, doravante, ao que efetivamente interessa:

Importante salientar que a expressão "ROUBO DE CARGA" utilizado pelos profissionais do seguro, mencionada em vários sinistros que ocorrem diariamente, é uma simplificação utilizada para a fácil comunicação, que abrange os casos de roubo, furto ou até mesmo desvio de carga, todos caracterizados como crime em nosso Sistema Legal.

A utilização de novos e mais modernos procedimentos de segurança (rastreamento via satélite/escoltas), passam a ter importância fundamental nos transportes de cargas.

As cargas mais visadas são as de fácil escoamento no varejo e de difícil reconhecimento de fontes de origem. Dentre elas, os produtos alimentícios, cigarros, cargas fracionadas, confecções e têxteis e eletroeletrônicos, que em termos de prejuízos acumulados no mesmo período, eles representaram R$ 73,5 milhões[13].

posição

Rio de Janeiro

São Paulo

Bahia

cigarros

TÊXTEIS

Cigarros

fracionadas

fracionadas

Prod.químicos

alimentos

alimentos

Leite em pó

ELETROELETRÔNICOS

ELETROELETRÔNICOS

Calçados

medicamentos

Prod.limpeza

Alimentos

O percentual de registros nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo chegam a 80% dos casos de todo o País e já chegou a deter 90% dos casos, tendo como a Via Anhanguera a rodovia de maior incidência, seguida pela Via Presidente Dutra e Castelo Branco. Logo, antes mesmo de prosseguir, é que se tem por certo, firme e valioso, o entendimento de ser impossível a idéia de fortuidade, diga-se, imprevisibilidade e inesperabilidade com números tão contundentes e expressivos.

No Nordeste, Sul e Centro-Oeste, o roubo de carga cresceu, de 1998 para 1999, 20%, 22,6% e 86% respectivamente. Em algumas áreas de produção agrícola do Mato Grosso, norte do Paraná e interior de São Paulo, os produtos químicos levados para as lavouras são alvos de grande peso para as estatísticas alarmantes do segmento de transporte de carga.

A realização dos assaltos ocorrem em 59% nas rodovias federais e 41% em rodovias estaduais. Os horários preferenciais dos ladrões são no período matutino (42%), entre 8h e 11h, quando as transportadoras fazem a maioria das entregas. Os períodos vespertino e norturno correspondem, respectivamente, a 36% e 22%. Já os dias de maior incidência são, primeiramente, quartas-feiras, seguido das terças e quintas-feiras.

Em se tratando de zonas urbanas ou áreas industrializadas, os percentuais alusivos aos roubos noturnos são incrementados, sendo estas mais significativos do que os roubos matutinos.

O gráfico abaixo[14] é significativo e ilustra bem a possibilidade que tem o transportador rodoviário de, previamente, conhecer os riscos de sua operação e introduzir, com antecedência, sistemas de proteção e minimização de riscos em suas operações regulares, sendo, portanto, mais um elemento em desfavor das alegações pontuais de imprevisibilidade e inesperabilidade (inevitabilidade).

Os prejuízos não se resumem apenas ao valor das mercadorias roubadas e dos veículos. A estas perdas devem ser somados, conforme mencionado anteriormente, os prejuízos das empresas transportadoras de carga que, na tentativa de evitar o roubo de seus produtos, gastam com gerenciamento de risco 20% do custo do frete, o qual encontra-se 44,03% abaixo do ideal para cobrir suas despesas que, conseqüentemente, reduz a possibilidade de renovação da frota e, também, a segurança dos veículos. Os gastos relativos à proteção das cargas estão entre os que mais contribuíram para a defasagem do frete.

De todas as seguradoras existentes no País, apenas seis fazem seguro de cargas contra roubos. Alegam que 52% dos prêmios da carteira de transportes foram consumidos com indenizações o que caracteriza como um índice alto demais para que possam continuar atuando nesse segmento.

Eis mais um motivo pelo qual os Juízos e Tribunais, com todo o respeito, devem enveredar pela linha de defesa ora sustentada, não reconhecendo o roubo como causa excludente de responsabilidade, uma vez que o dano contratual acaba restando por inadimplido e a mecânica do transporte de bens seriamente afetada, importando ônus econômicos e mercadológicos sem precedentes na já sofrida economia brasileira.

Por outro lado, o reconhecimento do roubo como ônus a ser suportado pelo transportador motivará implemento no mercado de seguros, permitindo as seguradoras, após o pagamento da indenização ao segurado (proprietário da carga), buscar em regresso, em face do verdadeiro responsável pelos danos, o transportador desidioso, o valor pago a título de indenização.

Reflexamente, restará no mercado somente os bons transportadores, aqueles com capital e patrimônios suficientes para suportar a dinâmica das operações, arcando com os gastos econômicos do cuidado operacional e da segurança das cargas e, ainda, reparando à quem de direito em casos de sinistros.

Não é exagero nem errado dizer que muitos transportadores são coniventes com os roubos de cargas transportadas por via rodoviária, uma vez que se trata de "mercado" muito lucrativo.

Assim, alterar a mentalidade então vigente, passando a não mais considerar o roubo como causa excludente de responsabilidade é, em última análise, contribuir para o desaparelhamento de muitas organizações criminosas e, até mesmo, diminuir os índices de criminalidade no país.

Hoje, com mercado em geral cada vez mais competitivo e muito mais aberto, o serviço de transporte deve ser alterado, exigindo-se uma revisão em sua regulamentação, mormente no que tange a fiscalização do Estado sobre as transportadoras, já que prestam serviço socialmente relevante e, em especial, a correta inteligência e aplicação das regras legais em casos de sinistros, diminuindo, sobremodo a possibilidade de alegação de fortuidade.

Até porque o mercado dos Transportadores Rodoviários, está enfrentando, ainda, a alteração da unimodalidade para a multimodalidade — a operação logística —, abrangendo todas as formas de transportes, informação e armazenamento, num mundo em que a economia globalizada requer maior velocidade de operações e respostas eficiente, práticas e lucrativas.

Entende-se, hoje, que o evento caracterizado como "incerto", como era o ROUBO DE CARGAS, passa a ser caracterizado como um "evento certo", dificultando as condições para a alegação de caso fortuito, uma vez que o evento está despido de dois, ao menos, dos três requisitos básicos: imprevisibilidade e inesperabilidade.

A Associação Brasileira dos Transportadores de Carga – ABTC, engajada na missão de zelar e preservar pela imagem pública do transporte de cargas de forma a promover o desenvolvimento e defender os interesses do setor, tem como uma das diretrizes básicas de sustentação o apoio à CPI do Roubo de Carga, que investigará, pelo menos, os seguintes pontos:

O FALSO ROUBO: ocorre quando o caminhoneiro simula um assalto, desviando do trajeto da carga e, em seguida, a entrega para um receptador. Ambos recebem um percentual do valor da mercadoria desviada, constante na nota fiscal. O caminhoneiro faz a ocorrência na delegacia mentindo sobre o fato. Em alguns casos, a transportadora é a mentora do falso roubo com a finalidade de obter o valor do seguro e também, lucrar com a revenda do produto desviado;

os FALSOS POLICIAIS: homens vestidos com fardas da Polícia Rodoviária Federal e coletes da Polícia Civil encenam uma blitz e realizam o assalto; em alguns casos, os bandidos agem em barreiras fiscais, onde os caminhoneiros são obrigados a parar para carimbar a nota fiscal da carga, que após ser identificada, é informada por telefone ao grupo de assalto, que já em locais determinados na estrada aguardam o caminhão para efetuar o roubo;

EXTORSÃO: após investigação do roubo, policiais passam a extorquir os criminosos ou receptadores;

ENVOLVIMENTO DE POLICIAIS: após acidente ou qualquer problema que impossibilite o caminhoneiro de prosseguir a viagem com sua carga, o caminhão é levado, a reboque, ao o Posto da Polícia Rodoviária, para posteriormente ser entregue à empresa responsável. Os policiais retiram a carga e relatam no Boletim de Ocorrência que a mesma havia sido saqueada por pessoas residentes nas proximidades, quando o caminhão sofreu o acidente.

As informações acima, literalmente extraídas da página eletrônica da aludida associação, a par de mostrar as boas intenções da mesma, separando os bons dos maus transportadores, prova, de forma muito confiável, que este trabalho está na linha certa em não mais admitir que o roubo de carga seja tido como causa excludente de responsabilidade e, ainda, que essa nova mentalidade pelo Estado-juiz efetivamente contribuirá para o sensível desaparelhamento da criminalidade organizada.

Sobre os autores
Paulo Henrique Cremoneze

Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

Rubens Walter Machado Filho

Administrador de Empresas, Especialista em logística e administração de transportes de cargas, Diretor do IBDTrans – Instituto Brasileiro de Direito dos Transportes

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CREMONEZE, Paulo Henrique; MACHADO FILHO, Rubens Walter. O não reconhecimento do roubo de cargas como causa legal excludente de responsabilidade do transportador rodoviário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 836, 17 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7437. Acesso em: 18 nov. 2024.

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